2001, Ano Zero: Fragmentos do Pós-11 de Setembro Imediato na Cultura Visual

Resumo: Pela ótica da cultura visual, e adotando uma metodologia que aceita a amálgama de estímulos heterogéneos como condição imperativa da experiência humana na pós-modernidade do século XXI, o presente ensaio procura assinalar e isolar objetos artísticos – no caso do cinema – e provenientes da difusão audiovisual da cultura pop – no âmbito dos videoclipes musicais – produzidos ou distribuídos nos meses após os atentados terroristas a 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos da América, e resgatar os sintomas implícitos de consciência do evento como ponto de mudança. Através da exposição dos aspetos cinemáticos e estratégias visuais, pretende-se identificar os estilhaços de um acontecimento sentido simbolicamente à escala global em obras de circulação maciça que, nunca o referenciando diretamente, são inequívocos produtos do seu tempo. Autoria: Henrique Brazão. Revisão de Sílvia Pereira Diogo.

INTRODUÇÃO

Em 2017, no incerto e agitado período após a eleição de Donald Trump para o cargo de presidente do Estados Unidos da América, o historiador norte-americano Timothy Snyder publicou um breve e esquemático livro intitulado On Tyranny: Twenty Lessons from the Twentieth Century.[1] Em vinte curtos capítulos, carregados de axiomas e vocabulário preciso sem traços de ambiguidade, Snyder construiu um manual urgente para o presente e para um futuro próximo, suportado pela natureza circular da história, numa tentativa de imprimir a possíveis leitores um sentido de responsabilidade e agência para lidar com uma situação tão indesejada quanto imprevisível. A publicação do livro, certamente na companhia de tantos outros que procuraram sistematizar uma violenta mudança de paradigma – recordem-se as obras de Zadie Smith ou Slavoj Žižek, escritas nos primeiros meses de confinamentos generalizados, em 2020 – com as ferramentas da realidade anterior, insere-se numa categoria (de contornos imprecisos) de produção (literária, artística, cultural) num imediato ainda não processado. Mesmo que Snyder não mencione Trump nem o Partido Republicano, o livro é um sintoma muito evidente da conjuntura política da qual emerge.

O presente ensaio, com a legitimidade que o intervalo de duas décadas concede, procurará compreender vários objetos heterogéneos – provenientes do cinema narrativo comercial e manifestações audiovisuais da cultura pop[2] televisiva – concebidos ou difundidos no pós-11 de setembro de 2001 imediato e por processar, pelo prisma da ancoragem temporal que os define. Propõe-se assim o resgate de um subtexto (de melancolia, choque ou regeneração) contido nas obras, que poderá ser relacionado com os ataques às torres do World Trade Center e ao Pentágono, e de narrativas (implícitas, porventura não intencionais) de desalento ou superação. Nenhum dos objetos artísticos e culturais em análise referencia o atentado terrorista e alguns foram mesmo pensados antes do evento.

Como base metodológica, valorizar-se-á a amálgama como forma de delinear uma imagem dos tempos, que é indiscutivelmente parcial e parte de processos de exclusão para, através de ligações artificiais entre os exemplos selecionados, encontrar coerência. Simultaneamente, o reconfigurável conceito de visualidade, ligado à redefinição do sentido de visão por relações de poder, contextos e interações sociais (Sturken & Cartwright, 2018, p.22), será tido como eixo de referência para a interpretação (ou, pelo menos, para a tentativa de deteção) de discursos não verbais em conformidade com a atmosfera política e social do pós-11 de setembro.

No plano social (e de certa forma simbólico) ao longo das últimas duas décadas tem sido repetida a ideia de que, subvertendo o rigor cronológico, o século XX terminou com o colapso das duas torres. O atentado estabeleceu um antes – os anos noventa, do crescimento económico, globalização e galopantes avanços tecnológicos, onde a ansiedade do milénio era contraposta com a estabilidade económica sem precedentes, no “Ocidente” – e um depois – do medo, da insegurança e das políticas securitárias, da hipervigilância e da hiperconsciência do outro – e inaugurou uma nova era de relações políticas internacionais. De um ponto de vista fixo no contexto norte-americano, Marita Sturken baliza o período do pós-11 de setembro entre as colisões em Manhattan e a disseminação mundial do SARS-CoV-2 (2022, pp.8–31), coincidente com mobilizações sociais contra a gestão governamental da pandemia e brutalidade policial sobre a população afro-americana, evidenciando a rutura definitiva no status quo que as duas situações representam. No percurso entre os pontos de crise que a autora salienta, a produção textual sobre o acontecimento é praticamente ilimitada, com notáveis discrepâncias quanto a posicionamentos ideológicos e inevitáveis transformações de pensamento, provocadas pela passagem do tempo e pelos sucessivos episódios com ligações evidentes ao 11 de setembro: as guerras no Afeganistão e no Iraque, os atentados terroristas em cidades europeias, ou as violações de direitos humanos na prisão de Guantánamo, por exemplo.

Para o propósito desta reflexão, ainda que haja um apropriado recurso a textos de retrospetiva, sustentados pela ponderação que o tempo permite, será adotada uma ideia de pós-11 de setembro imediato, do choque, da urgência e das visões pautadas pela incerteza e pela procura de sentido. Deste modo, e com a consciência da heterogeneidade[3] dos seus regimes estéticos, as obras selecionadas são em parte pertencentes à cultura pop que, como expresso por Hannah Arendt no contraste entre cultura e entretenimento para as massas, são produtos de consumo que têm como objetivo preencher vazios temporais (1961, p.205): os vídeos musicais, com difusão maciça em 2002, A New Day Has Come, realizado por Dave Meyers, A Thousand Miles, realizado por Marc Klasfeld e Heaven, realizado por Oliver Bradford; e em parte inseridas no campo do cinema narrativo de ficção – numa constante negociação entre arte e entretenimento de massas, com um lugar próprio como detentor de objetos passíveis de serem interpretados (Sontag, 1966/1964, p.15) – In America (2002), de Jim Sheridan e In the Cut (2003), de Jane Campion entre outras manifestações artísticas e culturais que, direta ou indiretamente, veiculam principalmente uma atmosfera sensorial de inquietação ou necessidade de renovação.

VISUALIDADE NA ERA DA INSEGURANÇA

Ao longo da última década do século XX, o crítico cultural Joseph Natoli produziu um significativo conjunto de textos sobre a aproximação do terceiro milénio como ideia em potência no cinema comercial, agrupados em volumes e por ordem cronológica. No último título da série, que compreende os anos 1999 e 2000, o prefácio é sintomático da cisão provocada pela enormidade (visual, simbólica, destrutiva) do ataque em Nova Iorque e no Pentágono. Como que a preconizar um ponto de não retorno, Natoli declara:

[A]gora que tanto a década quanto este projeto literário terminaram e os “imaginários culturais” em que vivemos como americanos foram tão drástica e repentinamente interrompidos, preciso de transpor milénios. O nosso Y2K, aquele cataclísmico evento do milénio que havíamos antecipado, aconteceu. Uma metamorfose atrasada do milénio. Estamos agora num mundo pós-11 de setembro; é diferente. Houve uma mudança de maré cultural na América.[4]

(2003, p.1)

O texto é taciturno e há um tom patriótico prontamente identificável nas palavras do autor, talvez suscitado pela proximidade do acontecimento – o prefácio data de 21 de setembro de 2001 – e pela escassez de ferramentas para a compreensão tanto das causas como das hipotéticas consequências para o “imaginário cultural americano”. A operação quase arqueológica de recuperação de reações imediatas, em textos de opinião, conferências transcritas ou demais manifestações devidamente documentadas, torna clara a dimensão patética dos discursos, acentuada pela maior ou menor proximidade – qualidade que a globalização e o desenvolvimento tecnológico vieram desagregar da posição geográfica – aos Estados Unidos da América, como país e como símbolo. Tendo em consideração o aparato visual extraordinário das colisões e consequentes desmoronamentos, e a proliferação de câmaras de vídeo que permitiu a cobertura de múltiplos ângulos, em reportagens em direto para praticamente todos os territórios do mundo, as referências às imagens são constantes nos discursos sobre o atentado, cujo caráter simbólico – as torres como materialização visual dos invisíveis fluxos financeiros e a opulência arquitetónica – e a conjugação de bandeiras de desenvolvimento como a aviação comercial, a difusão audiovisual e o capitalismo, ocasionou infindáveis interpretações ao longo dos anos. Entre o poético e o incisivo, Jean Baudrillard descreve o “suicídio dos edifícios” como que a corresponder ativamente aos suicídios múltiplos dos jihadistas (2003, p.43) e assinala o impacto e o fascínio que as imagens suscitam, atribuindo aos acontecimentos em Manhattan a “radicalização da relação das imagens com o real” (pp. 26–27). Na literatura do imediato abundam as descrições do abalo como espetáculo visual e o reconhecimento do início de uma era de insegurança (Franzen, 2001b). O colapso sequencial das duas torres, para além das perdas humanas e consequências políticas, económicas, culturais e sociais, é também um acontecimento visual. Na complexa e influente formulação sobre o direito a olhar[5] a partir de uma frase de Jacques Derrida, Nicholas Mirzoeff identifica uma ideia de visualidade que está em crise permanente (2011, p.475) e desenha um trajeto que integra o papel das estratégias de vigilância e relações de poder no ato de olhar nas plantações mantidas por trabalho escravo, até ao século XIX. Para o autor, reivindicar o direito a olhar é uma atitude que contraria o “velho” projeto de visualidade, autoritário e obstrutivo, e coloca sobretudo em evidência que a visão – e todos os verbos, com sentidos próprios, que de si derivam como ver, olhar, observar, contemplar ou assistir – não está capturada a uma atitude passiva. Há códigos e constantes reformulações sociais e políticas que condicionam modos de ver e olhar para os objetos ou fenómenos, e a consciência das forças ditatoriais que detêm as regras da visualidade pode suscitar respostas, individuais e coletivas, de uma “contravisualidade”[6] (Mirzoeff, 2011), que as contestam, pelo direito a ver e ser visto. Paralelamente, a questão da representação e a própria ideia de imagem transcendem a dimensão visual ou visível (Mirzoeff, 2006, p.67) sendo possível atribuir à literatura, por exemplo, a capacidade de edificar imaginários, de produzir imagens – mentais, imateriais – e contribuir para um todo visual de uma época que, neste caso, está circunscrita às semanas e meses após os atentados.

É incontestável a responsabilidade dos meios de comunicação – principalmente da televisão, ainda preponderante no domínio da difusão audiovisual, no início do século XXI – na construção de um imaginário do atentado, pela ostensiva repetição das colisões e desmoronamentos (muito mais proeminentes do que o embate no Pentágono, documentado por uma câmara de vigilância de baixa definição), imagens de um fascínio sombrio que continuam a ser transmitidas pelo menos nos aniversários da data, em noticiários televisivos. Num texto de retrospetiva, preâmbulo de uma longa reflexão sobre representação e verdade no cinema documental depois de 2001, Kris Fallon foca a resposta imediata da sociedade civil. O autor caracteriza a era de instabilidade política ocasionada pelo ataque como obscura (como será demonstrado adiante, há nos objetos audiovisuais em análise um constante recurso à simplicidade da dicotomia luz/escuridão), e emprega o vocabulário das práticas visuais para descrever a situação como desprovida de imagens suficientes, no início de uma era de visão obstruída onde não existem ainda instrumentos para a imaginação ou visualização de uma resposta adequada (Fallon, 2019, p.3). A conceção de uma imagem coletiva – que também influi na definição da memória cultural – está também vinculada aos meios tecnológico e às práticas disseminadas de apreensão do mundo, pela fotografia, pelo vídeo ou pela palavra escrita. 2001 pertence ao período de transição para o digital, durante o qual as práticas analógicas tinham ainda um impacto significativo na propagação de imagens, e os novos meios de comunicação e informação repercutiam-nas. Considerando a hipersaturação de imagens originada pelos telemóveis com câmaras fotográficas digitais incorporadas, e a possibilidade de multiplicação e partilha instantânea que define a cultura visual atual, que resultam numa dissolução da imagem (fotográfica, em movimento, mental), poder-se-á olhar para o início do século como uma altura singular na consolidação do poder das imagens. Como exemplo paradigmático da proximidade permitida pela globalização, o acesso universal em tempo real aos acontecimentos em Nova Iorque e na Virgínia esbateu uma primeira camada de identidade nacional (Sturken & Cartwright, 2018, p.249) – que viria a ser reposta, com a regeneração de um patriotismo adormecido, como estratégia de reforço de aceitação popular para as intervenções militares no Iraque e no Afeganistão – sendo este um evento verdadeiramente global.

Para Susan Sontag – voz controversa que rejeitou o transbordo de uma retórica de lamento e vitimização transmitido pelas televisões nos dias seguintes, e apelou a posturas que fossem para além do choque, da empatia superficial e dos automatismos de retaliação (Sontag, 2001) – os públicos, em parte visualmente disciplinados pelo cinema de Hollywood, viram na espetacularidade imagética uma dimensão cinematográfica, desligada do real (2004, p.17). Reconhecendo o bombardeamento de imagens como condição inevitável, Sontag vê na fotografia a forma visual suprema no que à construção de memória individual respeita. A imagem estática, unidade celular com propriedades sintéticas e metonímicas, foi também, no imediato não processado e nos anos seguintes, um importante meio de definição de estado de espírito coletivo. No dia 11 de setembro, muitos dos membros do coletivo internacional de fotojornalistas Magnum Photos estavam na cidade de Nova Iorque, facto que motivou a existência de um arquivo fotográfico profissional relevante, com rigorosas qualidades estéticas e marcas de urgência inseparável do ethos do fotojornalismo. Os anos seguintes foram documentados com o discernimento que o tempo e o conhecimento proporcionam, numa constelação de imagens que vai muito para além do epicentro em Manhattan: os anos de guerra em territórios iraquianos e afegãos, as manifestações em cidades por todo o mundo ou as cerimónias, oficiais ou espontâneas, de recordação do evento. Uma fotografia de Alex Majoli, tirada nas últimas semanas de setembro de 2001 [Fig. 1] é representativa das possibilidades de construção de um discurso visual, não verbal— como que uma porta para um tempo, um espaço e um (des)ânimo coletivo. O ângulo contrapicado engrandece as formas humanas em primeiro plano, enquadradas (quase aprisionadas) pelas urbanas estruturas de betão. Há um estranho equilíbrio na composição, uma harmonia na disposição dos corpos que parecem cirurgicamente colocados no eixo horizontal. Uma mulher com uma criança ao colo e outra, mais velha, protegida pelo seu braço, evocam os retratos de Dorothea Lange. No espaço à direita do quadro um rapaz segura a mão de uma mulher, provavelmente a mãe, num gesto esparso, quase inconsciente. Atrás, um homem vira o corpo para olhar na mesma direção dos restantes. Seguindo a terminologia de Roland Barthes (1984/1980), há dois detalhes que podem efetivar o punctum na imagem de Majoli, acasos que se apresentam como golpes na sensibilidade do espectador, para além dos elementos formais e informativos. Primeiramente, os olhares das seis pessoas dirigido para algo que está acima e para lá dos limites do enquadramento, acompanhados pela apreensão espelhada nos rostos, remetem imediatamente para a ameaça que vem de cima e para a construção em altura, proeminente em Nova Iorque, simbolicamente transformada em alvo militar. O outro pormenor, a mão da mãe que segura a do filho, aponta para uma necessidade instintiva de proteção, união e segurança, em tempos de instabilidade. Tal retrato acidental demonstra um sentido de união como possível resposta à ansiedade quase tangível, consolidada pelo cruzamento de luz e sombra. A escuridão terrena, no mundo rasteiro do quotidiano contrasta com a excessiva luz do fundo sobreexposto, distante, inalcançável pelos protagonistas. Como exemplo de eficácia da imagem estática na fixação de um estado de espírito, a impactante fotografia de Alex Majoli – tal como uma vastidão de outras, espalhadas pelos meios de comunicação e espaços museológicos ao longo das últimas duas décadas – contribui para a produção de um projeto de memória.

Pertence também à fotografia (principalmente à profissional, artística ou documental, cuja difusão compreende processos rigorosos de curadoria) a responsabilidade na edificação da memória coletiva, que parte de um recorte estilizado de uma hipotética ideia de realidade[7]. Como está expresso num artigo que assinala o vigésimo aniversário do atentado terrorista, a “[m]emória constrói profundas narrativas de vida, que enfatizam errónea e frequentemente a unidade do assunto [fotografado] ao longo do tempo”[8] (Stallabrass, 2021), posição reveladora da consciência de uma certa artificialidade (não necessariamente oposta a uma ideia de verdade) na aglomeração de estímulos, neste caso visuais, para a criação de uma memória, que é absolutamente fragmentária, dispersa e intensamente influenciada pela produção cultural e artística.

Figura 1| New York City two weeks after the September 11 terrorists attacks. 2001. © Alex Majoli | Magnum Photos

No âmbito do estudo sobre a memória, tema prolífero nos estudos sociais e culturais a partir dos anos de aproximação ao século XXI, Andreas Huyssen dedica um epílogo à condição atual de cidade ferida e traumatizada, a braços com o germinar do diálogo sobre estratégias de rememoração (2003, pp.158–163) e traça um paralelismo com a destruição por parte do regime talibã de duas milenares estátuas budistas, no Afeganistão, na primavera do ano 2001. A semelhança entre os eventos – e Huyssen é explícito quanto à linha de pensamento que permite a comparação, revelando um processo de recordação de imagens como estabelecedor de ligação automática entre duas situações – está sobretudo na verticalidade de duas estruturas iguais que colapsam, lado a lado. Sem negligenciar o número incomportável de perdas humanas que o desabamento das torres do Word Trade Center compreende (mortes que são invisíveis mas visualmente inferidas pelas imagens de betão, fumo e fogo, como se houvesse um propositado recurso ao eufemismo), no domínio simbólico há também entre os dois momentos de demolição um plano de ação, vontade humana com motivações políticas e religiosas. Ainda no período instável de incerteza pós-11 de setembro, o autor oferece um conceito para um possível entendimento da nova realidade, o de uma “pós-imagem”[9] (p.163) como lugar de conforto, o rasto que fica depois da devastação (no caso das caves onde as estátuas budistas estavam erguidas, permanecem os contornos das suas formas) e que preserva uma memória que não é extinta por ações humanas, que não está dependente da materialidade das estruturas.

Nos textos de Susan Sontag, Jonathan Franzen, Jean Baudrillard e Andreas Huyssen, produzidos perto do acontecimento, ou nos imensos registos fotográficos que, com sentido de urgência, foram sendo feitos nas semanas e meses após os atos terroristas, para além do conteúdo informativo e valor histórico e documental, podem ser identificadas e trazidas à luz (pelo privilégio do presente), marcas de uma atmosfera do imediato. Com a moldura teórica da visualidade, memória e tempo e, principalmente, com a identificação do domínio da técnica como essencial para a eficácia na veiculação de sentimentos, tenciona-se proceder a uma procura nas margens do discurso, por esses sintomas que podem escapar a uma análise presa à informação, que têm que ver com sensações que estão por vezes no plano do indizível, ou então são marcadamente verbalizáveis e apontam para uma ideologia concreta.

DE CÉLINE DION A JANE CAMPION – MELANCOLIA E REGENERAÇÃO COMO MOTIVOS

Violento e preciso, o ataque aos edifícios do World Trade Center suspendeu o fluxo aparentemente ininterrupto de circulação de conteúdos de entretenimento produzidos nos Estados Unidos da América e consumidos globalmente, representativo de uma posição de supremacia na transmissão de ideologia (ou de um modo de estar no mundo) através de produtos audiovisuais. Entenda-se por suspensão não a paragem efetiva do cinema de Hollywood, das séries televisivas de ficção ou dos vídeos musicais exibidos pela MTV, mas sim a consciência da necessidade de uma reorganização de estratégias e valores, face à dimensão da metafórica ferida. Nos dias seguintes, programadores e decisores em empresas de comunicação demonstraram preocupação com o tom dos conteúdos, dada a prostração e pânico generalizados. A ClearChannel, um grupo detentor de centenas de estações de rádio dispersas pelos cinquenta estados, elaborou e distribuiu uma lista de canções tidas como menos recomendáveis para o momento, músicas pop e rock até então inócuas, cujo sentido da letra fora reconfigurado pelas possíveis associações com as imagens do atentado, tão presentes no imaginário de uma comunidade em choque[10] (CNN.com, 2001). Na televisão, reality shows ou atualizações noticiosas sobre a vida pessoal de celebridades tornaram-se futilidades de um passado (tão recente) e em total desacordo com a crueza da realidade atual (Spigel, 2004, p.241), no entanto, em muito pouco tempo, e priorizando o motor capitalista das indústrias do entretenimento e comunicação, foi defendido um retorno à programação normal como forma de patriotismo (Spigel, pp. 238–239).

Numa primeira fase, interessa para o propósito da presente reflexão, este tempo de regresso à normalidade, e os objetos audiovisuais que não fazem referência ao 11 de setembro, mas que são inevitavelmente produtos do tempo em que se inserem, mesmo que tenham sido pensados ou até executados antes. Dada a reduzida amostra, não está em causa a definição de uma identidade ou modo de estar coletivos, nem a assunção de uma resposta homogénea face a um acontecimento tão disruptivo. Procuram-se os sinais de ancoragem num momento histórico, com a análise de obras dispersas, dissonantes, corroborando a pluralidade de estímulos que define a experiência humana na pós-modernidade do terceiro milénio.

A New Day Has Come (chegou um novo dia), vídeo musical da cantora pop canadiana Céline Dion, realizado por Dave Meyers, é possivelmente o exemplo que articula com maior clareza o que se pretende demonstrar. Apresentado na primavera de 2002, a ideia narrativa é simples: Dion é uma entidade divina, assente sobre uma nuvem que se desloca sobre a cidade de Nova Iorque, que canta para a comunidade global [Fig. 2]. Em terra, pessoas em vários continentes (a representação de um real que está concatenado com os processos de globalização) realizam tarefas rotineiras enquanto o dia progride. Empregando códigos dos vídeos musicais da viragem do milénio, próximos da linguagem publicitária, há uma acumulação de planos fugazes e o sentido é apreendido pela justaposição das imagens em consonância com as palavras cantadas por Céline Dion – “I see a light in the sky/ It’s almost blinding me (…) A new day has come” (“Eu vejo uma luz no céu/ Quase me ofusca (…) Chegou um novo dia”) – mais do que através de valores cinemáticos ou fotográficos e de mise-en-scène contidos nos planos como unidades autónomas. Em pouco mais de três minutos, o vídeo apela a um sentido de regeneração verdadeiramente universal, num mundo macerado à espera do nascer de um novo dia. O universo de A New Day Has Come são os centros urbanos, a vida nas metrópoles, lugares de grande densidade populacional, a precisarem do consolo que o entretenimento e a música pop oferecem, para que o quotidiano possa prosseguir com a normalidade desejada. Efetivamente, não são escassas as canções pop de índole motivacional, muitas vezes associadas a desgostos amorosos como ponto de empatia e identificação por parte de uma massa de ouvintes. Contudo, o vídeo de Meyers, quando observado pelo ponto de vista da sua contextualização temporal e geográfica, incide sobre a memória coletiva de um acontecimento tão recente quanto abrangente. Dion abre a segunda estrofe com a frase “Where it was dark now there’s light/ Where there was pain now there’s joy” (“Onde estava escuro agora há luz/ Onde havia dor há agora alegria”), sobre um plano aéreo da Estátua da Liberdade ao amanhecer [Fig. 3] seguida de curtíssimos planos de passageiros num transporte público, de volta às atividades banais. No último minuto, a cantora e protagonista desce ao plano terreno, o Sol põe-se, o tempo passa e o vídeo assegura – sem menções concretas a acontecimentos ou realidades políticas – que a vida (para os cidadãos comuns) continua.

A New Day Has Come (2002), realizado por Dave Meyers.

Assumindo a impossibilidade de aceder a uma intenção definitiva da equipa criativa quanto aos preceitos do videoclipe – a instrumentalização capitalista de um discurso apelativo, para o reforço da popularidade da canção e da artista, ou a necessidade de transmissão de sentimentos pessoais por via da comunicação audiovisual, ou a tentativa de responder a um novo paradigma de produção de conteúdos de entretenimento num período sensível – e a favor da interpretação como processo automático, subconsciente, o vídeo é um produto do pós-11 de setembro, portador de uma atmosfera que é consequência dos reajustes de representação que os ataques exigiram.

Figura 4| Fotograma de A Thousand Miles (2002), realizado por Marc Klasfeld. 00:03:39.

Jaap Kooijman identifica duas estratégias de reação da cultura pop americana no período em questão: por um lado, as respostas marcadamente patrióticas (frequentes na música country por exemplo, onde os tropos de uma suposta identidade americana e símbolos nacionais são abundantes) com propostas de retaliação baseadas na simplificação dicotómica de um “nós” magnânimo e um “eles” do terror e da opressão e, por outro, foi adotada também uma posição de inocência, que procurou esbater os limites nacionais e camuflar as decisões de política internacional dos Estados Unidos, ao evocar os valores da liberdade e da oportunidade na construção de uma “comunidade imaginada” (Kooijman, 2008, pp.44 –45). O vídeo de A Thousand Miles da cantora e pianista Vanessa Carlton, realizado por Marc Klasfeld, estreado também nos primeiros meses de 2002, encapsula toda a inocência que os seus quatro minutos permitem. Composta no final dos anos 1990 e, portanto, sem qualquer ligação factual aos atentados de 2001, a extremamente popular canção de Carlton descreve uma paixão atribulada pela distância física, numa linguagem naïf e de alcance abrangente, própria do universo pop adolescente. No vídeo promocional, a cantora destapa um piano numa garagem de uma casa suburbana e senta-se para começar a tocar. O piano torna-se ambulante e Vanessa afasta-se, tocando e cantando enquanto percorre um caminho que a trará de volta à garagem no subúrbio, durante a noite. Tal como o exemplo anterior, em A Thousand Miles o dia nasce e termina, a continuidade dos ciclos naturais é representada como uma subliminar insistência numa normalidade aparentemente perdida. À porta de casa, num detalhe em segundo plano e fora de foco, um homem de fato e gravata despede-se de uma mulher que segura uma criança (presumivelmente, na vaga narrativa do vídeo, compõem o núcleo familiar da cantora) numa representação modelar da família tradicional como instituição a ser preservada, essencial para a identidade de uma América estável, pronta para o regresso à rotina. No decorrer do dia diegético, o piano itinerante aproxima-se progressivamente de um centro urbano (Los Angeles), passando por autoestradas, pelo deserto e pela praia. O regresso à vida na cidade, numa altura em que a economia refletia um medo generalizado (Rozhon, 2001) é um motivo silencioso do vídeo. A cidade é um espaço dinâmico, vivo e seguro, onde é possível continuar a estar. Um plano contrapicado do sopé de um arranha-céus de arquitetura retilínea, ao anoitecer, tingido por uma suave luz azul [Fig. 4] relembra as estruturas derrubadas no outono anterior, mesmo que de forma totalmente acidental. Como sintoma de uma era de instabilidade, o vídeo e a canção de Vanessa Carlton dão continuidade ao plano de regeneração através da cultura pop, com uma sensibilidade quase ingénua e num registo sonoro próximo de Céline Dion— canções serenas, sem artifícios de maior.

A Thousand Miles (2002), realizado por Marc Klasfeld.

Como exemplo adicional no campo dos videoclipes comerciais com difusão maciça, Heaven (2002), reinterpretação de uma canção de Bryan Adams da década de 1980, realizado por Oliver Bradford, foi intensamente promovido na Europa, Estados Unidos e Oceânia. Trata-se de um produto de eurodance com a autoria do espanhol DJ Sammy, o alemão DJ Yanou e voz da cantora neerlandesa Do. A atualização de uma melodia impressa no arquivo musical coletivo gera familiaridade, e a escolha de uma voz suave corrobora a estratégia de veiculação de conforto. Uma co-produção europeia[11], este objeto audiovisual exacerba sem subtileza uma agenda de multiculturalismo, através da amálgama de símbolos e situações em cenários “futuristas” e hipersaturados, a par com a estética publicitária do novo milénio e técnicas digitais na conceção de uma imagem do presente[12]. Crianças de diferentes nacionalidades, um casal com um bebé, uma jovem com uma esotérica bola de luz nas mãos, todos interpelam a câmara com o olhar, entrecortados com grandes planos da sorridente cantora, enquanto frases desconexas de intuito motivacional aprecem e desvanecem [Figs. 5–7].

O vídeo cria uma mescla, de tempos, de gerações, de estratégias visuais, e apregoa sentido de união – por vias muito diferentes da fotografia de Alex Majoli, por exemplo – através de um excesso sonoro e visual que preza a fragmentação e rejeita a linearidade. Apesar de tais escolhas sinuosas, e tendo em conta o alcance mundial, é identificável a ideia de salvação pelo encontro cultural, contrapondo as crescentes divisões e posições islamofóbicas que alastraram no rescaldo dos ataque.

Heaven (2002), realizado por Oliver Bradford.

Por várias razões, o cinema como meio de expressão audiovisual distancia-se largamente do universo dos promocionais videoclipes musicais. Pela complexidade técnica trabalhada ao longo da sua história centenária – criação e padronização de códigos narrativos e de montagem, por exemplo – pelo impacto cultural na transmissão de preceitos ideológicos, pela influência na conceção de imagens coletivas e como veículo de sensações e experiências por intermédio do dispositivo cinematográfico, o cinema afasta-se dos curtos vídeos destinados à repetição exaustiva (muitas vezes independentemente de escolha ativa por parte das audiências, antes da introdução de canais como o YouTube). Muitos exemplos poderiam ser convocados para a definição de um retrato cinemático do pós-11 de setembro: 11’09’’01 (2002), antologia composta por várias curtas-metragens de cineastas de vários países, que procura expressar a multiplicidade de olhares sobre o acontecimento e encontrar sentido pela composição de um mosaico, The 25th Hour (2002), realizado por Spike Lee, possivelmente uma das primeiras inclusões do Ground Zero no cinema comercial, num filme que lida abertamente com a ferida metafórica deixada em Nova Iorque (por metonímia, em lugar do país e dos problemáticos valores de um “Ocidente” fragmentado), o documentário Man on Wire (2008), de James Marsh, que recorda a travessia do funâmbulo Philippe Petit entre as duas torres do World Trade Center, na década de 1970, filme que nunca refere a queda dos edifícios, mas que a coloca sempre em potência pela sua consciência generalizada, ou o experimental World Trade Center Haikus (2010), de Jonas Mekas, uma colagem de retalhos em super 8, memórias filmadas da presença dos imponentes edifícios entre as décadas de 1970 e 1990.

Aqui, serão destacadas duas longas-metragens narrativas de ficção, In America (2002), do realizador irlandês Jim Sheridan e In the Cut (2003), da cineasta neozelandesa Jane Campion, obras que têm a cidade de Nova Iorque como espaço diegético. Aparentemente não relacionados com o atentado, ambos são sintomáticos de um período pós-traumático com indícios, principalmente visuais, de um lento e necessário processo de regeneração.

O autobiográfico filme de Sheridan narra o percurso de uma família irlandesa – Sarah Sullivan (Samantha Morton) e Johnny Sullivan (Paddy Considine) e as suas duas filhas Christy (Sarah Bogler) e Ariel (Emma Bolger) – recém-chegada a Nova Iorque, na demanda pelo utópico “sonho americano”. Maria Mcgarrity – num artigo que aborda a representação da personagem afro-americana Mateo (Djimon Hounsou), o vizinho enigmático dos Sullivan, através de mitos e lugares-comuns, próprios de uma visão eurocêntrica – sublinha a escolha do bairro de Hell’s Kitchen para a instalação da família, como um pormenor que aponta para a imprecisão temporal da narrativa, dado ser uma zona marcada pela gentrificação à altura de distribuição filme, tornando-a inverosímil para a fixação de uma família sem recursos. Para a autora, In America passa-se num “presente constante contemporâneo com a combinação de imagens das décadas de 1980, 1990 e 2000”[13] (2008, p.304), e é precisamente esta dispersão cronológica – intencional ou motivada por contingências de produção – que atua como um sintoma de reação a uma conjuntura indesejada. Como representar uma cidade recentemente privada de dois dos seus monumentos arquitetónicos mais proeminentes e identificáveis, para uma audiência totalmente consciente do estado das coisas? Como modo de operação visual, a construção meticulosa de uma cidade atemporal (que não está nem antes nem depois do ponto de viragem que o dia 11 de setembro de 2001 constitui, mas sim numa linha temporal paralela, onde os prédios não existem e portanto nunca foram derrubados) permite não só a suspensão da descrença que está em evidência em qualquer representação ficcional como, do ponto de vista da produção, a renúncia da adoção de um ponto de vista sobre as marcas do real no universo representado.

Para além da configuração de uma imagem da cidade que está além do tempo cronológico, vários aspetos narrativos podem ser realçados como indicativos de uma conjuntura pós-11 de setembro[14]. Por um lado, a progressão narrativa e a descrição de arcos de personagens revelam um tom otimista, de superação de dificuldades, materializado no plano individual/familiar pela melhoria da situação económica através do esforço e do trabalho, que permite finalmente a estabilidade desejada e a conquista de um espaço inicialmente inóspito, domado pela perseverança e sentido de unidade familiar. Em concreto, dada a motivação trágica para a migração transatlântica (a morte de um dos filhos do casal Sullivan), cumpre-se um trajeto circular, com o nascimento de uma nova criança, em circunstâncias difíceis e em simultâneo com a morte de Mateo[15]. A vida e a morte acontecem em In America com a inevitabilidade que lhes é própria, numa cidade extraída do fluxo temporal do real, mas cujos ecos da situação para lá do seu universo diegético são manifestados por um pathos que emerge das situações narradas pelo dispositivo cinematográfico.

Longa-metragem atípica na filmografia de Jane Campion, In the Cut (2003) é baseada num livro policial, escrito na década de 1990. Como tal, não tem como ser (no que ao argumento concerne) uma resposta ao outono de 2001. Contudo, por ter sido filmado em Nova Iorque no verão de 2002, ostenta abertamente uma silenciosa autoconsciência do presente, totalmente visual. Cruzamento entre a narrativa policial e erótica, no plano da informação, o filme – que explora os desígnios da sexualidade num ambiente marcadamente misógino, onde os corpos femininos estão em constante estado de alerta – tem a professora de inglês Frannie (Meg Ryan) como protagonista, implicada por acaso numa investigação policial conduzida por Malloy (Mark Ruffalo), um detetive com quem desenvolve uma relação de contornos sexuais e, consequentemente, afetivos. A decapitação da irmã de Frannie, Pauline (Jennifer Jason-Leigh), descose todas as certezas sobre as motivações das personagens e Frannie julga ter em Malloy o responsável por sucessivos homicídios. Mais tarde, nas últimas sequências do filme, Frannie descobre o culpado, Richard (Nick Damici), um colega de esquadra de Malloy, e mata-o em auto-defesa, num ato simbólico de extermínio do machismo e da violência sobre as mulheres. Para lá da narrativa de comunhão entre corpos como símbolo da união humana que permite uma fuga ao desencanto do real (o filme fecha com um plano da ensanguentada Frannie abraçada ao inocente Malloy), não há no guião reflexos de um estado de espírito do pós-11 de setembro imediato, já que este parte principalmente de um texto de 1995. É puramente no campo visual[16] que Campion fixa o universo ficcional num presente que transcende a diegese. Em rápidos (quase indiscerníveis) apontamentos de caráter documental, ou pelo reforço do plano simbólico na apresentação de certas imagens, os vestígios do presente são visualmente desvelados, nos meandros da intriga policial. In the Cut abre com uma imagem do amanhecer – metáfora recorrente nos objetos em análise – num plano geral da vista para Manhattan [Fig. 8], onde há uma ausência visível: a exclusão das torres gémeas gera a desconfortável presença do seu desaparecimento. Como se de um prólogo se tratasse, a imagem desvanece para negro e a primeira sequência começa, como se este primeiro quadro isolado, mais do que informar sobre a hora do dia, situasse o próprio filme no tempo e no espaço, no ano 2002 do calendário gregoriano, onde as imagens possíveis são da ordem da urgência, do resgate de uma continuidade que fora interrompida por uma destruição tanto física quanto simbólica. No decorrer do primeiro ato, quando Frannie é conduzida de carro até à esquadra por Richard e Malloy, é exposta a vontade consciente da realizadora (ou do dispositivo) em aludir ao estado atual da cidade, de luto pelos que morreram e pelos que perderam alguém, pelo colossal fosso deixado na sua extremidade a sul e pelo estado de medo constante, através da inclusão de rapidíssimos planos que mostram memoriais improvisados nas ruas de Manhattan [Fig. 9] e bandeiras nacionais nas fachadas de edifícios [Fig. 10], como que a tentar suspender o avanço da autoritária trama que procede sem tempo para introspeção.

Por fim, quando a protagonista regressa a casa, depois de descobrir a identidade do assassino e de o matar, extinguindo assim a fonte de perigo, fá-lo a pé, descalça e coberta de sangue [Fig. 11], numa sucessão de planos onde o tempo abranda, após a resolução do conflito, que é também um desmoronamento figurativo. A propagação em massa de imagens do dia do atentado contemplou também os corpos em fuga, a pé, pelas avenidas e pelas pontes, fragmentos pertencentes à memória coletiva prontamente associados ao percurso que a personagem de Meg Ryan faz até casa.

Em In the Cut, as escolhas fotográficas e de mise-en-scène, tal como a construção de uma temporalidade estilhaçada (principalmente através da montagem incisiva e dos movimentos de câmara erráticos), imprimem uma permanente atmosfera de melancolia e perigo, e uma ansiedade quase palpável: o cinema como espelho dos tempos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: LITERATURA DO AGORA

O filósofo italiano Giorgio Agamben estipula uma compreensão da ideia de contemporaneidade alicerçada numa cisão da “coluna vertebral” do tempo (2009, pp. 65–66) e propõe a transposição da rigidez da cronologia, e o resgate daquilo que fora deixado na escuridão do passado. Tal como os exemplos visuais apresentados anteriormente, também a literatura pode acrescentar a esse processo de resgate, na composição de uma imagem dos tempos.

Roland Bleiker nomeia modelos literários como resposta ao 11 de setembro de 2001, focando-se em obras que abordam com precisão factual as causas e consequências do evento, sugerindo a possibilidade de uma literatura que privilegia a dimensão emocional, de apelo à imaginação (2006, p.83) que, para o intuito do presente texto, tem a capacidade de delinear um retrato (sempre parcial, imperfeito, limitado) de um período histórico. Na literatura norte-americana do princípio do século XXI, há em certos exemplos, com circulação considerável e reconhecimento crítico[17], a constatação de um estado de espírito, pejado de melancolia e desesperança, e a insistência num clima de instabilidade, principalmente quanto à instituição “família tradicional americana”. The Corrections, de Jonathan Franzen, foi publicado dias antes dos ataques. Contudo, ao ser lido principalmente nos meses subsequentes, período de ansiedade social e insegurança política, uma interpretação da extensa narrativa – o livro expõe as conturbadas relações de um casal com os seus três filhos adultos – é automaticamente politizada, tida como um reflexo da inquietude predominante. Desta forma, desligada causalmente do atentado, a obra de Franzen permanece próxima das preocupações da época, pela relevância fortuita que lhe foi concedida[18], e por representar também a herança de um passado (o século XX) que se imiscui naturalmente no processo de produção literária. Similarmente, a antologia You Are Not a Stranger Here (2002), de Adam Haslett, reúne contos dispersos, unidos por uma linguagem mordaz – com recurso frequente à ironia e a um humor incongruente, como The Corrections, ou muitos outros exemplos da literatura contemporânea americana – e por um sentimento de perda e desalento, onde as políticas do contacto humano são tornadas visíveis: a homossexualidade como questão identitária por processar nos corpos adolescentes, o confronto geracional, o esquecimento, a alienação social, entre outros temas urgentes que contribuem para a edificação de um imaginário coletivo da contemporaneidade.

Por fim, a utilização das ferramentas da literatura para conservar uma experiência sensorial individual é manifestada em Don’t Let Me Be Lonely: An American Lyric (2004), composto como um diário de colagens. A poetisa Claudia Rankine testemunha e documenta o presente com a impulsão e intuição de uma cidadã nova-iorquina, que acompanha o desenrolar da atualidade através da televisão (meio supremo na transmissão de uma imagem recortada do real) e de visitas ao Ground Zero, descrevendo o ambiente, os cheiros, a aura.

A infinitude de produtos artísticos e culturais que permeiam a experiência humana – aqui muito próximos de uma ideia de finitude da humanidade, quase como se cada objeto fosse também um memento mori, dadas as circunstâncias extraordinárias que marcaram o início do milénio – define a interpretação ou entendimento de uma conjuntura, não forçosamente por desígnios verbais, reflexos de uma intenção definida, mas por elementos (muitas vezes acidentais), que escapam pelas fendas do discurso, sintomas de um posicionamento, de uma fixação inexorável no tempo e no espaço.

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  1. Editado em português no mesmo ano com o título Sobre a Tirania: Vinte Lições do Século XX, pela Relógio d’Água.

  2. O anglicismo será utilizado em detrimento de “cultura das massas”, num reconhecimento consciente da hegemónica presença da língua inglesa nos objetos em questão.

  3. Todos os exemplos têm expressão cantada, falada ou escrita em inglês, o que representa homogeneidade, pelo menos quanto à língua, uma vez mais aludindo aos mecanismos de globalização e hegemonia cultural.

  4. “[N]ow that both the decade and this writing project are over and the “cultural imaginaries” we live in as Americans have so drastically and suddenly been interrupted, I need to bridge millennia. Our Y2K, that cataclysmic millennial event we anticipated, has happened. A belated millennial metamorphosis. We’re in a post–September 11th world now; it’s different. There has been a cultural sea change in America.” Traduções para português feitas por mim.

  5. The right to look”.

  6. Countervisuality”.

  7. Muita da cobertura fotográfica dos ataques, pelo sensacionalismo e choque associados, foi tópico de controvérsia, tabu e censura editorial, reafirmando a dificuldade sentida pelos órgãos de comunicação na gestão de uma realidade sensível, para a qual os instrumentos metodológicos não estavam ainda definidos, (ver Munteán, 2013).

  8. “Memory builds meaningful life narratives, which often falsely emphasize the unity of the subject across time.”

  9. Afterimage.”

  10. Por exemplo: “Crash into Me” (colide comigo), balada rock de Dave Matthews Band, Aeroplane (avião) dos Red Hot Chili Peppers ou até Walk Like an Egyptian (andar como um egípcio) do grupo musical The Bangles, e canções que, ao incitar à paz entre os povos rejeitam uma posição de neutralidade como Peace Train (comboio da paz) de Yousuf Islam/Cat Stevens. A empresa refutou acusações de censura e negou qualquer tipo de intenção de obrigar os animadores de rádio a considerarem a lista.

  11. Os ecos de solidariedade europeia para com a situação norte-americana, espelhados na produção cultural e artística, reforçam a ideia do atentado como um acontecimento global, (ver Kooijman, 2009).

  12. Na internet, é possível encontrar duas versões do vídeo musical, com ligeiras diferenças na montagem. Os registos temporais, na legenda de cada imagem, correspondem à versão referenciada no fim do texto.

  13. “Sheridan’s film is set in a kind of contemporary ever-present with images from the 1980s, 1990s, and 2000s combined.”

  14. Note-se que o filme de Jim Sheridan teve impacto considerável junto do público e da crítica, recebendo três nomeações para os prémios da Academia de Hollywood em 2004, reforçando a sua posição como objeto artístico ou cultural significativo na edificação de uma imagem dos tempos.

  15. Apesar de pertencer ao território onde a família irlandesa é estrangeira, Mateo é a representação do outro do ponto de vista dos protagonistas, através de contrastes evidentes: a exposição ostensiva do seu corpo nu, o estilo de diálogo ou a sua postura e movimentação perante os espaços em que se desloca.

  16. Manifestamente, não se propõe uma desagregação dos elementos que compõem um filme como se de unidades autónomas se tratassem. Porém, como forma de aludir ao discurso não verbal de In the Cut, importa desligar o material que serviu de base ao argumento das estratégias visuais adotadas na adaptação de Campion.

  17. As obras de Jonathan Franzen e de Adam Haslett receberam nomeações para os prémios Pulitzer.

  18. Pode ainda ser convocada a série de televisão criada por Alan Ball, Six Feet Under exibida entre 2001 e 2005 (curiosamente representando uma família americana com a mesma morfologia do romance de Franzen), que tem a morte como motivo nuclear e que, em retrospetiva, é uma porta para um estado geral de melancolia e apreensão, uma aproximação sensorial e temática à primeira metade da década. A renovação como possibilidade, face à brutalidade inevitável da morte, é também um motivo recorrente da série.