Espaço de Género na Obra de Artistas Mulheres

Texto de Marta Silva de Almeida. Revisão de Ricardo Fortunato. RESUMO: As ideias de espaços de género correspondem a uma visão binária que impõe uma distinção entre duas existências. Esta recorrência de separação de género em todos os espectros da vida humana, acaba por se demonstrar em várias áreas, sendo as que este ensaio irá focar: o espaço e arte. As ideias de espaço estão grandemente associadas a um conceito de género: existe um espaço do exterior, da esfera pública que, geralmente está associado ao homem e, um espaço interior, privado e doméstico, associado à mulher. Neste ensaio, pretende-se fazer um paralelo entre estas representações de ‘gendered space’ e o que advém desta separação na obra artística de artistas mulheres. Será o espaço nas obras também ele representado como ‘gendered’ ou a forma como estas são demonstradas servirá como uma crítica a este mesmo conceito? PALAVRAS-CHAVE: espaço feminino, género, mulher, casa, arte

INTRODUÇÃO

Muitas das dicotomias existentes na nossa sociedade partem de ideias binárias que acabam por definir muitas das nossas realidades.

Mulher/ homem, privado/ público, bonito/feio, interior/exterior, emocional/ racional, particular/universal são alguns dos binarismos com os quais lidamos desde o início da nossa vida.

Crescemos numa sociedade que define estes conceitos binários por nós e, assim, somos introduzidos desde logo a estes conceitos opostos. Mulher/ homem, este conceito binário acaba por definir, não só toda a construção social das nossas vidas mas, também, a sociedade em que nos encontramos. Focar-me-ei na noção de espaço, e no como este se divide em público/ privado, o que acaba por ter um significante e um significado distintos do que imaginamos: a esfera pública é masculina e, a esfera privada é feminina.

Sendo que as identidades de género estão associadas a espaços físicos nas suas representações, desde sempre existiu a necessidade de reforçar as diferenças entre ambos, especialmente em termos de espaço.

A noção de um espaço público para o masculino e o espaço privado para o feminino, para além de criar separação física, cria separação de direitos, tarefas e acaba por criar segregação.

A mulher é responsável pela casa, pela lida doméstica e pela família; o homem pode existir no mundo exterior, trabalhar, experienciar a vida, ter carreira política.

Artistas mulheres frequentemente representam temas relacionados com domesticidade, a casa, objetos definidos como “tipicamente” femininos, temáticas relacionadas com o corpo, o espaço e mesmo de que forma este é ocupado.

Em Portugal, várias artistas demonstraram esta dualidade de representação de espaço em função do género e, ao mesmo tempo que o fizeram, também puseram em causa os conceitos relacionados com o feminino – a mulher que cuida, que se submete ao desejo e à visão do homem.

Para exemplificar a ideia de como artistas mulheres exploraram constantemente temas relacionados com o espaço feminino, ou seja: o espaço da casa, usarei a obra da artista portuguesa Ana Vieira como exemplo da representação da ideia de gendered space feminino e, no como a sua obra, para além de demonstrar claramente estas questões binárias de género, apresentava também um cunho social e político.

O CONCEITO DE ESPAÇO DE GÉNERO

A forma como interagimos com o espaço ao nosso redor é, em parte, influenciado por uma construção de género que está instituída no ser humano à priori. Ao crescermos segundo certas e determinadas regras, a nossa visão e comportamento adapta-se a estes conceitos sociais.

Os espaços tornam-se “gendered” porque podem ser adaptáveis às necessidades sociais do dito espaço. Diante disto, se é possível a adaptabilidade do espaço ao género, sendo que o espaço feminino é o interior, o espaço masculino torna-se o exterior e, neste, a mulher pode ser subjugada a regras impostas pela sociedade masculina.

Usualmente este espaço é criado e, muitas das vezes visto por alguém muito específico: um homem branco heterossexual. A forma como as cidades, casas ou espaços públicos são criados parte, frequentemente de arquitetos homens, e os resultados acabam por ser cidades que respondem às necessidades masculinas, com formas oponentes, muitas destas fálicas, criando, ainda que inconscientemente, a ideia de poder do homem e submissão da mulher. Sendo o homem que cria estes espaços, à partida, a forma como a mulher interage com estes e aos quais tem acesso, diz respeito à visão masculina sob a mulher.

A mulher, na sua representação, é usualmente objetificada sendo que quem a cria nesse espaço é um homem que a controla e como é vista. Esta construção da mulher através de um olhar masculino é o que Laura Mulvey refere de male gaze1. O homem observa a mulher e

  1. Mulvey, L. (1975) Visual Pleasure and Narrative Cinema, Screen, Volume 16, Issue 3, Pages 6– 18, https://doi.org/10.1093/screen/16.3.6

decide como esta deve agir, comportar-se e ser, tendo em consideração o seu próprio desejo e vontade. A essência de cada uma das mulheres representada é perdida a partir do momento que um homem as representa a partir do seu próprio olhar; quase como se a própria mulher nem tivesse controlo sobre a forma que se vê a si própria, uma vez que replica o olhar do homem e não se vê realmente.

O homem que observa é como se estivesse na superfície e apenas fosse essa que quisesse demonstrar ao mundo, de modo a que ninguém consiga aceder à profundidade do objeto (a mulher). Diria que este objeto é certamente um de desejo e que o olhar do homem é um de voyeurismo devido ao seu único caracter de observação.

Esta divisão, na maioria das vezes também remete a uma espécie de sistema social em que cada um dos géneros se pode expressar de forma aberta e ser aceite.

Em diversas culturas, esta divisão passa para outras áreas como trabalho ou mesmo, locais do espaço habitacional em que se pode estar.

The active production of gender distinctions can be found at every level of architectural discourse (…)” 2

Figura 1: Mausoléu, Sir John Soane

  1. Wigley, M. 1992. “Untitled: The Housing of Gender”, Colomina, Beatriz, ed. Sexuality and Space. New York: Princeton Architectural Press, 1992. Print.

O pensamento e a análise decorrentes desta construção arquitetónica em volta de conceitos de género (ainda que, muitas das vezes esta perceção seja inconsciente) parte da própria experiência sensorial dos espaços. Ou seja, a forma como interagimos com o local é quase como uma performance de nós próprios tendo em conta o nosso género. Ao nos depararmos com arquitetura maioritariamente masculina – traços direitos, formais mais geométricas e, muitas vezes fálicas, cores – uma arquitetura que denota poder, sobriedade e austeridade, traços associados ao homem, acabamos por agir consoante isto.

Esta ideia de poder associada ao elemento fálico quase advém da natureza física do género: os órgão sexuais masculinos são expostos e são exteriores, enquanto que os órgãos sexuais femininos são interiores e, escondidos. Esta ideia, para além da questão do espaço, acaba por estar também presente na forma como os espaços ditos femininos (ou mesmo semi- públicos e públicos) são criados.

Figura 2: Oikèma / Ledoux

Os espaços públicos também estão associados ao político, à opinião pública e ao governo, todos eles lugares de homens. Estes espaços são usualmente associados a calma, razão, virilidade e outros adjetivos que se ligam ao comportamento masculino.

Os espaços privados são os que dizem respeito à esfera feminina, ou seja, aqueles em que existem regimes de controle que observam a própria mulher dentro do espaço da casa. A ideia de conforto e intimidade que se costuma associar a uma interioridade, acaba por vezes, ser associada a um certo controlo. Os quartos, o mais privado da casa a uma sexualidade. Este ideal de privacidade e sexualidade leva a um possível entendimento de que, na realidade, nenhum dos espaços pertence realmente à mulher, uma vez que até no espaço privado do quarto, ela se subjuga ao masculino.

“Casa é ventre maternal intocável, mistério de criação3

A casa era sempre associada à mulher. Não só porque era lá que passava a maior parte do seu tempo mas, porque era aqui que cuidava do marido e dos filhos. Era o seu espaço, onde, apesar de subjugada pelo homem, tinha um local onde conseguia lidar. Era na sua casa, que muitas artistas mulheres se dedicavam à sua arte.

A ideia de que a mulher é quem cuida, trata, ajuda é desde sempre incutida na nossa sociedade e cultura, ajudando a criar logo a própria ideia de gendered spaces. Também a ideia de introspeção e sensibilidade associada ao feminino, embora muitas vezes associada a fraqueza, é um dos fortes veículos de criação artística, força e questionamento das regras sociais.

Women are associated with traits of nurturance, cooperation, subjectivity, emotionalism, and fantasy, while ‘man’s world’—the public world of events and ‘meaningful’ work—is associated with objectivity, impersonalization, competition, and rationality.4

  1. Tavares, S. acerca de Ana Vieira em Colóquio-Artes, n .º 22 , 2 .ª série/17.º ano, Abril de 1975, pp. 24 -28
  2. Weisman, K. L. ‘Prologue: ‘Women’s Environmental Rights: A Manifesto”, in Gender Space Architecture, ed. by Jane Rendell, Barbara Penner and Iain Borden (London: Routledge, 2000), pp. 1-5.

Sendo que existe à priori uma divisão do espaço privado e público, consoante o género, existe, então, à posteriori uma desigualdade no que pode ser acedido por cada género.

O masculino, que frequenta a esfera pública tem acesso a uma vida social fora do espaço privado, trabalha, tem possibilidade de uma educação e ganha dinheiro – para além da questão relacionada com o acesso a certos espaços, e focando na questão financeira, também a mulher não se poderia deslocar para o exterior de modo a poder trabalhar e ter um salário, dependendo do homem para poder ter um espaço onde viver e cuidar da família – e o feminino que permanece no espaço da domesticidade.

Existe ainda um outro problema associado a esta divisão de espaço: o olhar do homem sob a mulher. Sendo que existe uma divisão clara nas esferas, quando uma mulher integra o espaço que “não lhe diz respeito” torna-se vulnerável, observada e policiada nos espaços tradicionalmente masculinos.

Toda esta divisão cria desigualdade a nível de acesso e, para além disso, vulnerabilidade na exposição da mulher no espaço masculino.

A idealização desta ideia de separação dos géneros por esferas tornou-se tão comum que o espaço acabou por se tornar numa espécie de formação de identidade de género. Partindo de exemplos como o espaço a que cada um acabava por ter dentro da casa, a forma como dormia, a forma como comia ou, mesmo, como se sentava à mesma, começou a significar também, que mesmo no espaço feminino, o masculino acabava por ter mais liberdade, deixando as divisões da cozinha ou dos quartos dos bebés para a mulher.

Figura 3: Cartaz exemplificativo de espaço de género

Durante o séc. XIII e XIX na Europa, apenas era possível que as mulheres saíssem de casa sozinhas para visitarem familiares e ir à igreja mas, para tomar café, passear ou fazer uma atividade cultural, tinham que ser acompanhadas por um familiar.

Mulheres que fossem vistas sozinhas em cafés ou restaurantes eram, frequentemente denominadas de prostitutas e, mulheres de classes mais baixas que tinham que trabalhar fora de casa, eram vistas como inferiores e impuras, por não respeitarem as regras sociais de espaço feminino/ masculino.

Uma das outras questões que penso ser interessante e relevante de debater nesta separação dos espaços diz respeito ao próprio espaço da casa, neste caso, a uma das divisões, o quarto. Aqui, surge uma outra dimensão: o espaço da reprodução. É possível reiterar que, de facto, esta separação do espaço faz parte de uma cultura de patriarcado que continua a existir ainda hoje, com a pretensão de definir papéis específicos para cada um dos géneros: a mulher acaba por ter que aceder ao espaço masculino e acaba por deixar de ter o seu próprio espaço. O uso do corpo acaba por ser uma forma de tentar uma validação da própria mulher no espaço

– se o espaço não lhe pertence, o corpo sim.

A forma como o espaço é visto, definido e usado deve ser vista de um ponto feminista, de modo a criar igualdade nas cidades e espaços em que circulamos diariamente. É necessário mudar o foco e questionar a arquitetura do espaço.

O ESPAÇO FEMININO NA ARTE

A igualdade de género nas artes plásticas continua a ser um tema debatido e falado devido à dificuldade que artistas mulheres têm de alcançar o seu lugar na arte e serem tão respeitadas enquanto os seus pares masculinos.

Nos dias de hoje, são conhecidas inúmeras obras de mulheres artistas e conhecem-se diversas histórias de qualidade artística, revolução e movimentos artísticos começados por mulheres mas, será que conhecemos bem toda a história e importância na arte das artistas mulheres5?

A arte era vista e produzida maioritariamente por homens que, devido não só à sua educação, cultura e à própria sociedade, e através tanto de ações diretas como indiretas (como no caso arquitetónico), restringiam as mulheres a um local específico, sendo esse, o espaço privado – o espaço da casa.

Atividades como a escrita e a pintura eram aceites desde que fossem feitas dentro do espaço feminino, mas muitas dessas obras não eram tidas como obras mas sim, como passatempos. Com o passar dos anos, mulheres artistas começaram a tornar a sua obra mais visível e a fugir das regras e da introspeção, saindo para o exterior e mostrando a sua obra.

Maioritariamente, os temas que as acompanhavam eram semelhantes: o corpo (tanto o seu como o dos outros), o espaço que habitavam ou que lhes era inerente por questões sociais (ex. natureza) e o olhar. Também foram comuns as experiências com os meios em que trabalhavam: cruzamentos entre som e imagem, pintura e escrita ou escultura e performance.

“This, on the surface of it, seems reasonable enough: in general, women’s experience and situation in society, and hence as artists, is different from men’s, and

  1. Nochlin, L. ‘Why Have There Been No Great Women Artists?’

certainly the art produced by a group of consciously united and purposefully articulate women intent on bodying forth a group consciousness of feminine experience might indeed be stylistically identifiable as feminist, if not feminine, art.”6

Com a tendência de aparecimento de vanguardas e de recusa de seguir as normas classicistas e académicas instauradas, surge uma arte no feminino, pronta para criar arte transgressiva, muitas vezes criando arte multidisciplinar, fugindo ao anteriormente visto.

Atentando na frase acima de Linda Nochlin, embora nem sempre esta arte de mulheres fosse criada com a intenção de um olhar feminista, é impossível pensar em arte feita por mulheres sem esse cunho, sendo que a criação de arte por uma mulher acaba por ser quase que um manifesto pessoal e social. Uma demonstração das suas capacidades e, acima de tudo, da sua liberdade artística.

Na sociedade portuguesa, a arte muda após a Revolução do 25 de Abril, e com isso, surgem diversos olhares sobre a cena artística em Portugal, que partem de uma rutura estética, um corte com os cânones e um questionamento acerca de género e identidade. O trabalho destas artistas foi inovador, especialmente em termos do uso de várias disciplinas artísticas desde a pintura, escultura, colagem, performance e vídeo. A utilização do espaço privado e do próprio corpo foram fortemente mostrados e esta representação não só parte da vivencia da mulher nestes espaços como, na rutura de um ideal da representação feminina.

Artistas como Helena Almeida trabalharam o seu próprio corpo no espaço que as rodeava, cruzando diferentes meios como a fotografia e a pintura, abrindo espaço a uma autorrepresentação. A sua obra é reconhecida pelo seu uso do corpo como protagonista no espaço à sua volta.

“A minha obra é o meu corpo, o meu corpo é a minha obra.7

  1. Nochlin, L.‘Why Have There Been No Great Women Artists?’
  2. Helena Almeida

Figura 4: Dentro de mim, 2018. Helena Almeida

Podendo ser associada ao movimento de body art, a sua obra é performativa não só devido à utilização do seu corpo como ponto fulcral da obra mas, também, devido à intersecções que usa na introdução de outras obras artísticas: a pintura sobre fotografia sendo a sua mais particular experiência e estética.

Figura 5: 2 Passos, 2006. Helena Almeida

Muita da sua obra tem conotação feminista, usando como temas frequentes a censura da mulher (isso é visto através de obras como Ouve-me, em que a representação de uma mulher sem voz é clara: para além de a própria autorrepresentação performativa da artista, o uso das faixas pretas associadas a repressão e censura, as palavras escritas acentuam esta forte ideia). A sua arte representa, também, muitas vezes a questão do binário e questiona esta dualidade de homem/ mulher.

Figura 6: Ouve-me, 1979. Helena Almeida

Considerando o conceito de gendered space do qual tenho vindo a falar, Helena Almeida trabalha o espaço completamente desprovido de ideais de género. Devido à sua performatividade através do uso do seu próprio corpo, o espaço, no seu trabalho é quase como uma tela em branco. Limpo, minimalista e vazio, o espaço vive da interação do seu corpo com o mesmo, não existindo qualquer essência associada a isto. Podemos pensar que a utilização de um espaço tão cru é uma tentativa de controlar o próprio espaço, sem estar associada ao espaço tipicamente feminino.

A CASA NA OBRA DE ANA VIEIRA

Ana Vieira foi uma artista plástica portuguesa que trabalhou nas interseções das diferentes tipologias artísticas. Tendo um longo percurso artístico, começou como pintora mas rapidamente encontrou a sua vocação na experimentação artística. Criou ambientes nos quais representou a domesticidade feminina, o privado, a mulher e a opressão. A poesia do seu trabalho transformou estes espaços geralmente associados à mulher, em espaços de deslumbramento e curiosidade. Munida de crítica social, Ana Vieira criou a sua identidade artística através da representação dos espaços que a oprimiam.

O seu trabalho pode ser visto como feminista, especialmente num meio tão fechado como as artes plásticas. A sua obra não diz respeito a uma só mulher, mas sim a todas as mulheres que perderam a sua identidade nos gendered spaces associados à feminilidade. Representava “traditional scene of everyday domestic life8”, demonstrando que também estas serviam quase um propósito de observação e voyeurístico por parte do outro.

A casa na obra de Ana Vieira não é apenas uma casa; é um espaço de integração do pensamento e das emoções. Transporta para o seu trabalho a evocação de ser mulher e o que isso significa. Dotada de uma incrível qualidade artística, a crítica social que Ana Vieira faz acerca das normas e costumes do feminino/ masculino são sublimes na sua criação e, a meu ver, ideias para sustentar a tese de ambiente privado e público associado aos gendered spaces de que tenho vindo a falar.

Em obras como Sala de Jantar/ Ambiente de 1971, Ana Vieira coloca o espectador no espaço casa através da sua representação de uma casa com materiais transparentes que torna possível a entrada no espaço sem entrar nele. Ana Vieira cria espaços domésticos que apelam a uma enorme vivência sem lá existir um corpo. Existe uma noção forte de intimidade neste espaço e somos convidados a entrar no mesmo, sem realmente entrar, experienciando até uma sensação de voyeurismo, porque, na realidade, não queremos sair do local.

Figura 7: Sala de Jantar/ Ambiente, 1971. Ana Vieira

  1. Colomina, B. 1992. “The Split Wall: Domest Voyeurism”, Colomina, Beatriz, ed. Sexuality and Space. New York: Princeton Architectural Press, 1992. Print.

A casa, na obra de Ana Vieira, surge como o espaço que é habitado pela família, pela mulher, e usualmente demonstra cenas do quotidiano. A casa é habitada mas também habita quem lá vive9, e é um elo de ligação entre as emoções e os pensamentos pois é nela que lá vivemos.

Neste Ambiente de 1971 são projetados sons de como se a casa estivesse habitada e isso remete o espectador para uma vida que sabe existir na esfera privada mas que não presencia.

Figura 8: Ambiente, 1972. Ana Vieira.

No Ambiente de 1972, continua a existir a evocação ao elemento que une: a casa.

O observador entra num espaço de intimidade em que a casa se torna a dimensão espacial da mulher, quando ninguém a vê. O espaço que é fechado e pode ser claustrofóbico, pode tornar- se num local de experiência e manifestação.

Em Santa Paz Doméstica, Domesticada de 1977, Ana Vieira traz-nos uma instalação que mostra a dimensão feminina através dos seus objetos. Existe, uma vez mais, a sensação de

  1. Conceito de Ana Vieira

voyeurismo ao observar a casa de alguém que não está lá, mas a forma como isso nos é mostrado é muito marcante.

Ao contrário de Helena Almeida, Ana Vieira usa a representação do espaço usualmente denominado de feminino para criticar a opressão sentida e passividade feminina através de uma certa sexualização do trabalho doméstico; existem nestes objetos uma tensão sexual, mas ao mesmo tempo, na introdução de elementos como o cesto com os novelos de lã, apela a uma caricatura de mulher submissa e domesticada.

Figura 9: Santa Paz Doméstica, Domesticada,

Figura 10: Santa Paz Doméstica, Domesticada,

“Sim, acho que a sociedade em geral é bastante machista , onde quer que seja.

Nos grandes centros, onde é mais disfarçada, ou nas margens, onde é transparente. Onde posso criticar a mulher é de não reivindicar a sua situação de maioridade, seja ela qual for, e de não afirmar a sua “diferença” e a sua capacidade de ir mais ao fundo de si própria…10

O espaço da casa, também se torna espaço de opressão. No trabalho Ocultação / Desocultação, existe uma desmaterialização do espaço mas, ao mesmo tempo, a ideia de segmentação do mesmo é, objetivamente, uma separação da própria mulher.

Figura 11: Ocultação / Desocultação, 1978

  1. Entrevista realizada por Hans Ulrich Obrist a Ana Vieira. Excerto relativo à obra Paz doméstica, domesticada. 13 de Novembro de 2011 | fonte: www.anavieira.com

Figura 12: Ocultação / Desocultação, 1978

Ana Vieira cria este espaço de casa na sua obra que se liga memória e que, ao mesmo tempo, critica a domesticidade feminina.

Existe uma sensação de ausência mas, ao mesmo tempo, de vivência. Nos objetos espalhados, na mobília decorada, nos pratos meio cheios existe a vivência e, no espaço vazio, a ausência. Ana Vieira quase que parece criar um mundo em que existem envolvimentos com o público e o privado (sendo o espectador, o público), apelando a uma ideia de corpo, sem existir corpo na própria obra. A sua obra tão marcada pelo espaço da casa é indicadora de uma ligação entre o próprio espaço da casa e o seu espaço enquanto artista feminina.

BIBLIOGRAFIA

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Butler, Judith. 1992. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge.

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PAPERS

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