O filme “Sunrise: A Song of Two Humans”, a primeira incursão de F. W. Murnau no cinema americano, conta a história da queda e redenção de um homem honesto e bondoso que se deixou seduzir pelos prazeres mundanos. Este é tentado a matar a sua esposa e vender todos os seus bens de modo a fugir para a cidade com a amante. A história tem as suas raízes cristãs, pois o relacionamento do casal simboliza o caminho a seguir para a salvação do homem.
Levantamos assim a questão: poderá um adúltero, já impregnado pelo pecado, retornar ao estado anterior?
O homem, com sinais de afeição, chama a sua esposa para um passeio de barco, com o único objetivo de afogá-la. Na cena aparece um cão que tenta impedir o ato, mas é retido pelo marido adultero. A cena, ainda que momentânea, possui um profundo simbolismo. O cão representa o guia e protetor da alma humana, acompanhando-a a vida inteira até à morte. A figura mitológica de Cérebros, protetor dos portões do Hades, tem precisamente essa representação. Deste modo, o que há por detrás da cena é a ambição de transgredir o curso do tempo, visto que a morte da mulher não se encontrava nos planos divinos.
Mas para alguém que, aparentemente, virou costas à providencia, quanto é que esta lhe valeria? Ora, para um simples adúltero surge o assassinato. O filme mostra os efeitos que as paixões, na sua conceção mais filosófica, têm nas pessoas: quanto mais se cede, mais se cai. Quem mais despreza os seus valores acaba por se aninhar no que há de mais egocêntrico. Ao ver o filme percebemos que o homem não era psicopata ou um louco, mas sim um simples jovem seduzido por uma vida supostamente melhor. Ao tentar praticar o ato ele hesita, chora. A sua circunstância é o que mais se assemelha ao inferno, pois vive um tremor onde a alma recorda o amor de Deus, mas é incapaz de abraçá-lo devido às escolhas que fez.
A cena ainda se passa num lago, que, devido às suas águas, tanto simboliza os desejos como o oculto. Como tal, o homem queria afogar a mulher nas suas paixões. A imagem refletida por tal cena é, de facto, a de um rito sacrificial. Por sua vez, é-nos mostrado que o que os antigos inimigos do Homem – a carne, o mundo e o diabo – mais querem é que sacrifiquemos os nossos maiores bens, arrastando com eles a nossa consciência e, consequentemente, a alma, para a concretização das paixões. Tal é uma marca na condição humana: devemos sacrificar os valores pelas paixões ou as paixões pelos valores?
No momento derradeiro, no entanto, a mulher ajoelha-se e une as mãos em oração. O homem não consegue matá-la e desilude-se das suas aspirações, retornando, como que por um último grito celeste, à razão. Percebemos que a mulher possui esta qualidade frequentemente esquecida: é mansa e inspira piedade. Existe todo um mistério no ser feminino que sempre inspirou poetas a realizar as maiores artes e reis a sacrificar os seus domínios em benefício da proteção das suas amadas, como no épico caso de Helena de Troia, cuja guerra por sua pessoa moldou o imaginário Ocidental. Mas o ponto é: não é intimidando ou amedrontando que a mulher vence a sua causa, mas sim com a sua beleza, que não se limita ao aspeto físico.
Naquele momento, a esposa conseguiu ter mais força que a amante, pois o verdadeiro poder do ser feminino é fazer lembrar a misericórdia de Deus, suprimindo os instintos mais perversos, uma vez que no seu acolhimento encontra-se lugar para a bondade de coração. O ato da esposa religou o marido a Deus. Ora, aqui podemos encontra mias um paralelo simbólico, desta vez sobre a dualidade entre Eva e Maria. Enquanto a primeira, através da sedução fez com que o Homem se esquecesse da sua promessa para com o Senhor, Maria, com sua paixão, relembrou-o.
Longe da esposa ter sido indefesa ou fraca. Na verdade, ela foi bastante forte. O marido, ainda que fisicamente poderoso, não foi capaz de lidar com a influência da amante e resignou-se a um destino do qual não desejava fazer parte. O seu corpo vigoroso e a sua experiência de vida não foram suficientes para conter o seu interior. A sua mulher, no entanto, possuía uma sensibilidade aguçada e uma forte intuição, tornou-se na figura predominante do filme.
Tal é, porem, infelizmente esquecido nas produções cinematográficas contemporâneas. Atualmente a mulher quando antagoniza o homem é masculinizada de modo a ter destaque, dando-se um a inversão da simbologia clássica. A mulher de “Sunrise”, no entanto, eleva as relações conjugais ao nível máximo e, no seu ideal cristão, não nos ilude quanto ao mal no mundo nem nos desilude com os efeitos desastrosos dos casamentos infetados por eles, mas recupera a esperança com a possibilidade de redenção.