O Cesário de Philèas Lebesgue: Swinburnesco e Adorador do Realismo

Philèas Lebesgue, um francês nascido em La Neuville-Vault, em 1869, foi um profundo interessado pelos aspectos literários, artísticos e sociais do Portugal de finais do século XIX a meados do século XX. Escreveu um conjunto de crónicas a que chamou “Lettres Portugaises”, publicadas durante mais de 50 anos no Mercure de France[1].

Na sua crónica de Abril de 1909 dá-nos uma reflexão sobre o lirismo português seu contemporâneo, apresentando-o como sendo a definição de amor de cada época e sociedade e concluindo que o modo como se concebe a ideia de amor define uma civilização. Consequentemente, apresenta a poesia como um elemento social de primeira ordem, pelo que quanto mais amorosa uma sociedade for, mais lírica será. Constata que a alma portuguesa, sonhadora e apaixonada, é diferente da francesa, já que esta é analítica e tenta conciliar a visão apaixonada do mundo com o intelectualismo e o apelo à revolução. No seguimento desta reflexão, escreve Lebesgue sobre os poetas portugueses:

Nuns, herdeiros mais directos de naturalismo panteísta de Guerra Junqueiro e do realismo adorador, swinburnesco de Cesário Verde, é o instinto de uma vida simples, idílica, à parte dos artifícios da civilização que triunfa; noutros, requer mais, a exemplo de Antero de Quental, a procura de uma fé, e é a glorificação do esforço humano na natureza que consente em chamar a si a inspiração.[2]

Centremo-nos da caracterização que faz de Cesário Verde, a quem classifica como do “realismo adorador, swinburnesco”. Apodar Cesário como realista é, actualmente, uma trivialidade. Óscar Lopes, por exemplo, afirma que o realismo da poesia cesariana se conserva mais vivo, no presente, ao contrário do de Guilherme de Azevedo, Gomes Leal, Guerra Junqueiro, “graças a uma adesão mais serena e completa às tendências de avanços do seu tempo”[3]. O mesmo Óscar Lopes corrobora, mais tarde, o realismo de Cesário, mas desta vez atribui ao próprio esse desejo (“Cesário pode considerar-se um realista, que é o que ele sempre pretendeu ser …”[4]), porquanto o expressa explicitamente em “O Sentimento dum Ocidental”, “III – Ao Gás”, nos versos “E eu que medito um livro que exacerbe/Quisera que o real e a análise mo dessem”[5]. Considera-o, até, mais realista do que Eça de Queirós. José Régio, por seu lado, refere que Cesário captou flagrantes da realidade a partir de uma penetrante atenção ao mundo exterior e, como tal, é “o mais realista dos realistas”[6]. É interessante como Régio parece ecoar Lebesgue: ambos apresentam uma visão hiperbolizante da relação entre Cesário e o Realismo. No entanto, fazem-no a partir de pontos de vista diferentes: Lebesgue, próximo do tempo de criação da obra, afirma que Cesário é adorador do Realismo, colocando o ónus dessa ligação no próprio poeta, enquanto Régio, ao classificá-lo como o mais realista dos realistas, fá-lo a partir de um ponto de vista externo, o seu, enquanto leitor crítico já afastado do tempo de produção da obra.

Mais sui generis é a qualificação de Cesário como “swinburnesco”. Algernon Charles Swinburne (1837-1909) é reconhecido como um dos poetas vitorianos tecnicamente mais hábeis. No entanto, aquilo que o adjectivo passou a designar deriva essencialmente não da sua mestria poética, mas sim dos temas que abordava e do seu próprio estilo de vida. Quanto aos temas, vão desde os ferozes ataques ao catolicismo de Roma, até referências sexuais explícitas de temas tabu como a homossexualidade, o canibalismo e o masoquismo. A sua vida foi recheada de escândalos, resultado das atitudes irreverentes e chocantes (era, por exemplo, adepto da flagelação, uma forma de masoquismo), do seu alcoolismo e de uma forte compulsão para o exibicionismo que o levou, entre outras atitudes, a passear nu com o seu namorado[7]. Assim, o uso de swinburnesco mostra-nos que, do ponto de vista do cronista, há uma aura de escândalo, de depravação e de dissolução na poesia de Cesário (que não na sua vida que, aparte algumas quezílias literárias, foi quase casta, tanto quanto se sabe).

Efectivamente, a poesia cesariana comporta ideias ou a descrição de comportamentos que, à época, seriam escandalosas, indecentes e imorais, podendo-se inferir que as mesmas estiveram na origem da comparação entre Swinburne e Cesário. Sem pretensão de os esgotar, vejamos alguns exemplos: a descrição do café onde o sujeito se encontra, em “A Débil”, como um “café devasso”[8] e, no mesmo poema, a referência à cidade como uma “Babel tão velha e corruptora”[9]; o assumir de um fetiche no final do poema “Proh Pudor”, “Todas as noites ela, oh, sordidez!/ Descalçava-me as botas, os coturnos, /E fazia-me cócegas nos pés.”[10]; o masoquismo presente em “E quero asfixiar-me em ondas de prazer”[11] e ainda em “Eu também me faria gordo frade /E cobriria a carne de cilícios”[12], e até algum sadismo presente no poema “Cinismos” onde declara esperar pelas lágrimas de dor da amada para lhes responder com sonoras gargalhadas (“E há-de chorar, chorar enternecida / E eu hei-de, então, soltar uma risada…”[13]). O paroxismo é atingido no poema “Ele”, dirigido ao Diário Ilustrado, que tanto maltratava a sua poesia, e em que descreve um banquete real que termina com o rei a vomitar “nas pedras da calçada”, o que deu origem, na manhã seguinte, ao referido jornal: “- Nascera o Ilustrado – o vómito real!”[14]. Complete-se a descrição deste episódio com alguns dos mimos oferecidos na caracterização do festim e dos que nela participaram: “deboche”, “devasso”, “bebiam doidamente”, “vinolenta”, “sordidez horrível e avinhada”, “tripúdio infrene”.

Confirme-se esta recepção da poesia cesariana como escandalosa através, por exemplo, da reacção de Teófilo Braga ao poema Esplêndida[15], publicado em Março de 1874, tinha Cesário dezoito anos. Os versos que especialmente o incomodaram encontram-se nas seguintes estrofes:

E eu vou acompanhando-a, corcovado,

No trottoir, como um doido, em convulsões,

Febril, de colarinho amarrotado,

Desejando o lugar dos seus truões,

Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,

A minha independência e o meu porvir,

Para ser, eu poeta solitário,

Para ser, ó princesa sem sorrir,

Teu pobre trintanário.[16]

Teófilo considerou inadmissível que o poeta se tivesse colocado numa posição de subjugação humilhante ao dizer à “princesa sem sorrir” que desejava “o lugar dos seus truões”[17]. Teófilo terá dito a Henrique das Neves, que o transmitiu a Cesário, que “um poeta jovem e moderno” não desce “ao lugar dos lacaios” para cortejar uma mulher[18]. Acaba por ser irónico, e pouco abonatório para Teófilo (apesar de Bacharel, Licenciado e Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, foi aceite como lente da cadeira de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras), que não reconheça aqui marcas dos códigos de amor cortês das Cantigas de Amor trovadorescas. Ainda que certamente empoladas pela visão juvenil e inexperiente do jovem poeta, encontram-se neste poema marcas da lírica amorosa medieval, como sejam a total submissão do enamorado à sua dama[19], prestando-lhe, voluntariamente, vassalagem, e a descrição da amada como admirável, mas fria e distante. Repare-se neste excerto de uma cantiga de Airas Nunes, em que o trovador declara o seu amor e se queixa de ter sido desprezado pela sa senhor:

Falei noutro dia com mia senhor

e dixe-lh’ o mui grand’ amor que lh’ ei

e quantas coitas por ela levei

e quant’afan sofro por seu amor;

foi sanhuda e nunc’ a tanto vi,

e foi-se e sol non quis catar por mi

e nunca mais pois com ela falei.[20]

Como se constata, tanto na cantiga de Airas Nunes como no poema de Cesário verificam-se movimentos de baixo para o alto (do vassalo para a senhora), mas o inverso não ocorre e em ambos o sujeito é desprezado.

Na crítica de Teófilo fica ainda bem visível um outro aspecto que o escandalizou e que tem a ver com uma forma marcadamente estratificada de olhar a sociedade: um jovem moderno não pode descer à condição de um lacaio. Esta visão da sociedade é contrariada por Cesário, por exemplo, no poema “Num Bairro Moderno”, onde o sujeito, um pequeno burguês, está calmamente a dirigir-se para o seu emprego, já tarde, e “com os sintomas de uma apoplexia”. No final, foi uma pobre vendedeira, que carregava à cabeça uma giga, que lhe transmitiu “as forças, a alegria, a plenitude”[21], ficando bem evidente que, afinal, o fraco era ele:

E, pelas duas asas a quebrar,

Nós levantámos todo aquele peso

Que ao chão de pedra resistia preso,

Com um enorme esforço muscular.

«Muito obrigado! Deus lhe dê saúde!»

E recebi, naquela despedida,

As forças, a alegria, a plenitude (…).[22]

Por fim, temo que esta referência tão particular a Swinburne para classificar a poesia de Cesário tenha sido mais circunstancial do que decorrente de uma análise da obra cesariana, uma vez que esta crónica foi escrita no exacto mês e ano da morte do iconoclasta poeta, dramaturgo, novelista e crítico inglês. Não me voltei a cruzar, em todas as leituras que fiz, com mais nenhuma sugestão de um paralelismo entre os dois autores (o que não quer dizer que não exista, mas sim que é, decerto, rara). É um facto que ambos os poetas escandalizaram a sociedade da época, Swinburne duplamente, na sua vida e obra, Cesário apenas na obra e que, convictamente ou não, apesar de tudo, Lebesgue nos chama a atenção para tal. Mas enquanto o poeta aristocrata conseguiu triunfar no seu tempo, o poeta comerciante, não.

Notas biográficas:

Todas as citações da obra de Cesário Verde encontram-se em:

SERRÃO. Joel. Obra Completa de Cesário Verde. Livros Horizonte.8ª ed. 2003 (1ª edição: 1964).

Todas as citações e referências relacionadas com Philéas Lebesgue encontram-se em: LEBESGUE. Philéas. Portugal no Mercure de France. Aspectos Literários, artísticos, sociais de fins do séc. XIX a meados do séc. XX. Roma Editora. Lisboa. 2007.

  1. Philèas Lebesgue, Portugal no Mercure de France. Aspectos Literários, artísticos, sociais de fins do séc. XIX a meados do séc. XX.

  2. p. 195.

  3. Óscar Lopes, Modo de Ler, p.197.

  4. Óscar Lopes, Álbum de Família, Ensaios Sobre Autores Portugueses do Século XIX, p. 179.

  5. est. 5, vv. 1-2.

  6. José Régio, Crítica e Ensaio 2, p. 156.

  7. A título de curiosidade, refira-se que Aleister Crowley, o mágico amigo de Fernando Pessoa e que desapareceu no Guincho, desejava ser visto como o legítimo herdeiro da poesia de Swinburne, dedicando-lhe a sua obra poética.

  8. est. 2, v. 1

  9. est. 2, v. 3.

  10. est.4, vv 1-3.

  11. “Flores Venenosas -I- Cabelos”, último verso.

  12. “Cantos de Tristeza”, dois últimos versos.

  13. est. 5-6.

  14. Último verso.

  15. Cesário refere-se a esta reacção numa carta (carta 1, p. 201) que escreve a Silva Pinto, acrescentando que Teófilo, depois de ler os seus versos, referiu que Guilherme de Azevedo “era talvez o único que no futuro poderá representar a poesia moderna, por ser quem trilha a verdadeira senda (…). Ainda que não o mencione directamente, nota-se uma tristeza que advém da incompreensão desta postura de Teófilo.

  16. est. 7 e 8, p. 72.

  17. est. 7, v. 4.

  18. Carta 1 a Silva Pais, p. 201.

  19. “O trovador comporta-se para com a sua dona exactamente como o vassalo, o om liges, se comporta para com o seu senhor; tem de servir com fidelidade, de a honrar, depois de lhe ter prestado a homenagem, ajoelhado perante ela, em posição humilde. Obedecerá aos seus desejos e ainda aos seus caprichos. Não a molestará com atitudes violentas e desmesuradas, princípio da ética antiga que se insinuou, como veremos, em tôda a poesia trovadoresca”, Rodrigues Lapa, Lições de Literatura Portuguesa, Época Medieval, pp. 18-19.

  20. B 884, V 467.

  21. est.15, v.3.

  22. est. 14 e 15.