De Nova Orleães para o mundo: recordamos o “embaixador da alegria”, um pioneiro cujo nome é sinónimo da palavra jazz, Louis Armstrong (1901 – 1971).
Aquele que se compreende a si mesmo
Espinosa
e às suas afecções
clara e distintamente alegra-se […]
O embaixador da alegria (cf. Havers, 2013: 38[1]), também cunhado por “Pops”, “Satchmo”, “Dippermouth” ou “Satchelmouth”, o mesmo é dizer Louis Armstrong, oferece um lastro de alegria musical, que se pode encontrar nos álbuns maiores deste artista, tais como “Satchmo At Symphony Hall” (1954), “Ella and Louis” (1956), “Ella and Louis Again” (1957), “Porgy & Bess” (1959) e “Satchmo: Ambassador of Jazz” (2011). No entanto, é pelo modo singular da sua expressão artística, quer seja através do instrumento vocal (o seu Scat singing é lendário) quer pelo uso virtuoso dos instrumentos de sopro, uma espécie de prolongamento de si mesmo, que o músico se destaca e ilumina a máxima de Espinosa.
O dealbar do século XX não poderia ter irrompido com melhor promessa: nascido a 4 de Agosto de 1901, em New Orleans (Havers, 2013: 38), ainda que em entrevista no Dick Cavett Show, datada de 29 de julho de 1970, tenha afirmado ter nascido em 1900, à meia-noite, o músico abandona, anos depois, o seu berço natal, o mesmo do jazz, e junta-se à King Oliver’s Band em Chicago. No entanto, em 1924, passa a pertencer à Fletcher Henderson’s Orchestra, em New York. Acompanha Henderson durante um ano, deixando memoráveis gravações (cf. “Shanghai Shuffle”).
Em 1925, regressa a Chicago para liderar a sua banda, que inclui os seguintes músicos: a pianista e compositora Lillian Hardin Armstrong (1898-1971), a sua segunda mulher, Kid Ory (1886-1973), no trombone, Johnny Dodds (1892-1940), no clarinete, e Johnny St. Cyr (1890-1966) no banjo. A banda começa a gravar em Novembro de 1925, em Chicago e, com a chancela de OKeh Records, saem a lume “Well I’m In The Barrel” e “Gut Bucket Blues”, dando início à era diamantina da história do jazz, com Louis Armstrong e os seus Hot Fives and Sevens.
Em março de 1929, Armstrong grava “Knockin’ A Jug”, a sua primeira sessão de gravação com músicos brancos e afro-americanos: Jack Teagarden (1905-1964), no trombone, Happy Caldwell (1903-1978), no saxofone tenor, Joe Sullivan, no piano, Kaiser Marshall (1902-1942), na bateria, e Eddie Lang (1902-1933), na guitarra. Esta edição marca o fim dos Hot Fives and Sevens.
Em 1932, o músico inicia uma tour pela Europa e pela Grã-Bretanha. Porém, em 1939, os poucos sucessos do músico cingiam-se a remakes de clássicos, como “West End Blues”, “Savoy Blues” e “When The Saints Go Marching In”. Aliás, durante os anos da Guerra, as vendas de Louis Armstrong eram escassas e, não sem o empenho do produtor George Avakian (1919-2017), apenas as reedições dos Hot Fives and Sevens pareciam satisfazer o público jazzístico.
Será, pois, com 45 anos que o salto artístico deste entertainer e performer nato, como lembra o seu cúmplice amigo e fotógrafo Jack Bradley, acontece: em maio de 1947, oferece um concerto tremendo no Town Hall, em New York, e, em novembro de 1947, toca com os seus “All Stars” (Jack Teagarden, Barney Bigard, Dick Cary, Arvell Shaw, Big Sid Catlett e Velma Middleton) no Carnegie Hall. Repete o preceito estelar, duas semanas depois, na Boston’s Symphony Hall. Dois concertos que ficaram gravados para a posteridade.
Nos anos 50, mantendo a regularidade dos concertos de “All Stars”, ainda que as presenças fossem gravitando, Satchmo grava com Ella Fitzgerald, sob a égide da Verve. Após as sessões de gravação com Fitzgerald, cuja logística apresentava grandes obstáculos, dado o frenesim itinerante de Armstrong, como fixado por Norman Granz (Havers, 2013: 41), o músico participa de uma sessão de gravação olímpica de um dia com uma orquestra dirigida por Russell Garcia, que se pode ouvir em dois álbuns, editados em 1957: “I’ve Got the World On A String” e “Louis Under The Stars”. Apenas com quatro dias de intervalo, e já contando com cinquenta e seis anos, Pops grava um novo álbum com Fitzgerald, intitulado “Porgy & Bess” (1959), e antes de 1957 terminar, grava ainda com Oscar Peterson (1957).
Vítima de um ataque cardíaco, em 1959, Satchmo decide abrandar o ritmo jazzístico, mas ainda assim os anos sessenta trazem o conteúdo mais aclamado do seu espólio: “What a Wonderful World”, “Hello Dolly” e “We Have All The Time In The World”.
A 6 de julho de 1971, Lucille Buchanan Wilson Armstrong (1914-1983), a quarta esposa do músico, encontra Pops no leito do seu lar, em Corona, já sem vida. O brilho desta estrela, no entanto, perpetuar-se-á. Mais de trinta mil pessoas acompanharam o seu cortejo fúnebre, com a voz de Peggy Lee a entoar “The Lords Prayer”.
Mas a existência incandescente deste artista, sendo o primeiro a chegar ao local dos concertos, não abdicara nem do fruto das paixões, tendo casado quatro vezes, nem do uso recreativo da marijuana. É, aliás, o seu amigo fotógrafo, Jack Bradley, cujo espólio se encontra em Louis Armstrong House Museum[2], quem descreve, em “Louis Armstrong Through the Lens of Jack Bradley”, a parafernália de loções e cremes que o músico transportava consigo para todos os concertos, a par da sua máquina de escrever e do seu Reel-to-Reel Tape Recorder.
Com efeito, além do legado musical e artístico, Satchmo deixa um espólio privado fecundíssimo, que inclui perto de setecentas gravações áudio (algumas dessas gravações privadas revelam a consciência crítica do músico, sempre com um sentido de humor apurado, face às situações de segregação racial, vide “Louis Armstrong special on 60 minutes”), bem como colagens da sua lavra, à boa prática surrealista, dezenas de manuscritos autobiográficos e perto de oitenta álbuns de recortes.
“The Real Ambassador”, apesar da sua aparição em inúmeras capas de revistas (cf. Life Magazine, Time Magazine, Variety) e da atribuição de honras e prémios (Down Beat Jazz Hall of Fame, Rock and Roll Hall of Fame e ASCAP Jazz Hall of Fame e o Grammy Lifetime Achievement Award), não deixou de ser fiel à sua estrela, com a simplicidade de quem, conhecendo a privação e a escassez, se alegra com meia dúzia de ovos no frigorífico, sempre que lhe apetecesse saciar a fome, como lembra Bradley no documentário supramencionado.
As suas aparições, bem como o seu legado musical, transportam uma invariável distintiva: a alegria. Melhor, um acréscimo de ser, como lembra Espinosa, que abarca não apenas o sorriso que desenha por inteiro o seu rosto (um sorriso benevolente e contagiante, que não nasce dos lábios, mas de uma interioridade cheia: não fora os lábios a filtrar a alegria, não aguentaríamos a sua intensidade), mas sobretudo uma compreensão de si mesmo, que encontro disseminada no grau máximo de entrega e expertise.
Satchmo é um outro nome para a alegria traduzida em génio musical.
[1] Cf. Havers, Richard (2013). Verve: The Sound of America. Thames & Hudson.
[2] Em 2005, a Louis Armstrong Educational Foundation cedeu uma quantia avolumada ($480,000) para a aquisição da coleção de Jack Bradley, que se tornou parte integrante de Louis Armstrong Archives. A extensa e riquíssima documentação foi catalogada e digitalizada, graças à Fund II Foundation, em 2016.