Desde o advento desta figura no entretenimento nacional, há mais de vinte anos, que esta ganhou notoriedade, num país de campónios, por, além da qualidade para a comédia, ser supostamente uma figura de gabarito intelectual superior à média, fino conhecedor da alta cultura, e dono de uma extraordinária inteligência capaz de produzir argumentos fora do alcance do português comum. Uma espécie de Marcelo Rebelo de Sousa dos palhaços, portanto. Nada disto poderia estar mais longe da verdade e, com toda a probabilidade, é uma quase completa efabulação. Vejamos ponto por ponto.
O talento, que é um talento tanto artesão como comercial, da dita personagem para a produção de programas de comédia adequados ao seu tempo é um talento de uma qualidade inegável. O historial da sua ficção televisiva é de irrepreensível sucesso e, alguns dirão, qualidade certamente superior à mediocridade vigente no país. Não quer isso dizer porém que se trate de um comediante cujo talento se resuma à comédia, mas somente que as contingências históricas lhe proporcionaram a feliz possibilidade de ser representante de uma nova geração de palatos humorísticos. Nesse sentido, o seu papel, e o da pandilha que em tempos o acompanhava, antes de o mesmo se ter radicalmente independentizado — por ser, como é evidente, de acordo com a visão geral do vulgo, uma pessoa de enorme valor e talento, muitíssimo superior aos outros — é um papel de inquestionável domínio e importância.
Mas note-se que sempre foi observável, por algumas pessoas não facilmente rendíveis às modas, que qualquer grupo de amigos imersos numa dialéctica de boa disposição consegue emitir umas larachas de qualidade cuja densidade ficcional e ousadia metafórica é perfeitamente idêntica à deste comediante ou à de muitos outros da mesma geração. Aliás, consegue até dizer-se que muitos grupos desses amigos compostos por pessoas comuns conseguem desenvolvimento humorístico bastante superior com a maior das facilidades.
Já o mesmo não poderia ser dito quanto à comparação do vulgo com, por exemplo, os actores clássicos da revista à portuguesa: nenhum zé da esquina conseguiria suplantar o gigante Vasco Santana, nem nenhuma maria das iscas produziria larachas tão robustas como as da inimitavelmente castiça Laura Alves. Neste campo, o comediante aqui referido é claramente diferente em termos de categoria, e pertence a uma cultura mediática de época em que o medíocre é aceite como excelente e extraordinário.
De resto, a sua vaga inclinação para a literatura — ou seja, o rapaz lê uns livros, e escreveu outros tantos, talvez mais do que aqueles que leu — atestou-o também, neste país que ainda pensa que é um país analfabeto, como uma sumidade da cultura, convidado para apresentar obras, escrever prefácios e autorar paráfrases baseadas em banalidades de estudos literários, passando todo esse conteúdo como grande bagagem. Não é.
Tendo aliás sido colega de alguns dos nossos autores nesta publicação no Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras de Lisboa, sabemos do que falamos: é evidente que se trata de um eterno puto, comum estudante de humanidades em Portugal, e pouco mais culto quanto o bandalho médio que estuda e, nalguns casos, até ensina, naquela faculdade. Efectivamente alguns professores de literatura também não passam da mediocridade, e isso não tem problema nenhum: nem todos nasceram para serem génios ou extraordinários de algum modo. O que não é admissível, ou melhor, é ridículo, é recolherem admiração do comum burgesso pertencente ao público em geral como se se tratassem de figuras admiráveis nessas áreas e não apenas, no caso deste em particular, como profissionais da comédia com vaga literacia adicional noutros campos.
Além disso, a referida pessoa portuguesa é da esquerda política, o que só fica bem, e é compatível com o panorama ideológico dominante em que a classe dos intelectuais do entretenimento, covarde, seguidista e burguesa, se insere hoje — desde os estúdios de Hollywood até ao Bairro Alto e ao Lux. Possivelmente, se o dito rapaz fosse de direita ou, simplesmente — como o comediante Herman José — não fosse uma pessoa política — se calhar não teria tanta graça, não seria tão amestrável, não serviria tão simpaticamente para andar ao colo dessa classe urbana contemporânea, função que tem efectuado quase irrepreensivelmente desde há vinte anos.
Além disso, é também muito apreciado pelo actual Presidente da República, e os paralelos aqui presentes talvez sejam mais que muitos: essa é uma figura que, enquanto comentador político, emitia também e apenas mediocridades banais, e que, tendo impressionado o país com um tom professoral e uma certa pedalada acima da média, ganhou uma presidência que agora muitos, e em larga medida tardiamente, começam a reconhecer como um espectáculo não muito dignificante.
De modo análogo, o comediante, depois de décadas aproximando-se do modo humorístico de puto esperto amamentado pela dita classe intelectual de esquerda, a fazer as tais piadas que os grupos de amigos com uns copos também faziam, convertidas em formato televisivo sketcheiro, foi ganhando também os seus galões no número de comédia situacional, e agora aventura-se nas águas que afinal talvez sempre lhe tenham interessado — e que, frequentemente, representam uma confissão da sentença de morte criativa do humorista: são as águas do comentário político e da intervenção política. Este campo, no fundo, é aquilo que teria estado sempre latente.
Como é então, na actualidade, o humorista visto pela população urbana que na infância e adolescência o idolatrava? Na verdade, há muito que não se ouve descrevê-lo como “esse tipo é muito engraçado”, mas ouve-se antes alguns dinossauros vociferarem que “é um génio”, mas um génio na recordação deles, etc., justificando-se de seguida que já não tem graça, mas recusando-se a retirarem-no do pedestal em que se acostumaram a vê-lo. Claramente a alegação agora é outra — e sabemos o quanto à terminologia como “o génio” é usada com certa vulgaridade, enquanto que “o engraçado” é, em oposição, usada com certa liberalidade. Paralelamente, na fase de decadência cómica de Herman José, este optou pelo mote anímico de “vou apresentar concursos”, talk shows e o que lhe apetecesse. Ele contava, na altura, com um séquito de admiradores autómatos, e, nessa altura já avançada da sua carreira, a maioria da população achava que Herman José tinha graça porque sim ou então quando estava perante Herman José achava que estava na hora de ter graça. É isto então, de modo idêntico, que se passa hoje com o comediante referido.
Este, no entanto, optou por um tipo de decadência diferente, correspondente ao pior que a sua própria geração tem para oferecer: o sarcasmo e a política, herdeiro do tom horripilantemente condescendente, provinciano e ignorante do norte-ameicano Jon Stewart no seu marcante Daily Show, um prolongado espectáculo de preguiça intelectual e humorística lamentável, já com duas décadas de idade, a ensinar doutrina à geração urbana intelectual do milénio, e a explicar como descartar argumentos alheios aos progressismo da moda usando apenas sarcasmo e punchlines de adolescente charrado.
Esse estado de espírito, domianntte tanto no Jon Stewart de hoje e de sempre, e do referido humorista português do presente, não é o estado de espírito do humorista tout court, mas sim uma rendição, capitalista, servilista e covarde, ao modo mental não-comprometido, pós-moderno, tão sintomático da geração X a que pertence, em que, burguesamente, se arredonda o cu no conforto da poltrona das muito bem-sucedidas civilizações ocidentais, as mais materialmente prósperas do mundo, e, ao mesmo tempo — tal como a banda de música Radiohead ou algumas personagens do cineasta Mike Leigh — criaturas sem qualquer herança cultura de relevo ou conteúdo mental suficientemente complexo são convencidas de que têm jeito para algo mais que serem os heróis do café lá da zona (café burguês, urbano, “intelectual” no sentido em que qualquer puto estúpido vai para a faculdade e se transforma num intelectual) e então entram num modo urbano-depressivo sardónico, derivado também de terem sido horrivelmente ensinados a achar que a culpa de tudo era uma culpa colectiva — lamentável estado psicológico imaturo, derivado de não saberem lidar com o peso individual, e modo de ser esse que se expande para a política frequentemente.
Não era este o caso com Herman José: tal figura dedicou-se, na fase mediana e agora muito mais tardia da sua carreira, ao entretenimento puro e duro, e está-se nas tintas para politica e futebol, vendo-as como migalhas que o povo torpe aprecia comer do chão. Curiosamente o humorista abordado neste artigo adora essas duas dimensões da cultura. Isto diz muito.
Resta referir que o trabalho que se requer para um programa televisivo de comédia sobre politica é completamente preguiçoso: basta fazer umas montagens torpes com políticos a falar, interrompê-las quando entendem, e juntar umas larachas a seguir. Era possível fazer isto com padres, com espectadores de futebol (já existiu uma produção sobre isto: a Liga dos Últimos), com activistas dos direitos humanos, com personalidades do entretenimento (era muito esse o interesse de Herman José), com pobres da Cova da Moura, com ricos de Cascais, com pescadores. O comediante em causa entende fazê-lo com políticos por uma simples razão: porque compatibiliza o seu interesse adolescente de idealismos mal formados, e de menoridade mental pouco evoluída desde então, com a facilidade logística que tais caricaturas requerem.
Tudo isto reflecte e é a consequência natural daquilo que foi sempre a sua comédia, que, na tradição burguesa e de pretensão intelectual, é apenas gozação observacional, não tendo nada de paródia mímica, de farsa gramática, quase nada disso. É a figura do burguês confortável observando as restantes personagens do burgo. O tipo de comédia deste prodígio e da sua pá filha foi sempre apenas o invólucro onde uma geração com imaginação, mas com um certo tipo de castração mental e comportamental — a vidinha custa muito — projectava as suas fantasias de liberdade humorística e de criação com associações livres, narrativas do absurdo e observações sumárias, aquelas a que eles próprios, na sua limitação mental e social, não conseguiam suficientemente dar corpo sozinhos. Tristes gerações.
O humorista foi, assim, preenchendo esse lugar — e certamente num nível superior à qualidade vigente, ainda pior que a sua própria mediocridade, tanto no público em geral como nos poucos sem qualquer talento relevante que foram para a comédia como poderiam ter ido para engenharia ou para enfermagem. A comédia dele, apesar de superior em grau, nunca foi diferente dessa comédia geral dessa gerações em espécie, e, reduzida a termos simples, nunca passou da larachada de um miúdo pós-moderno do século XXI, perdido na vergonha judaico-cristã do falhanço da ideologia — nomeadamente a comunista, a sua —, e preso numa adolescência perpétua. Isto vai desembocar , irremediavelmente, no papel do comentador e activista político a fingir que é comediante — e não é.
Hoje restam só essas larachas intelectualmente posicionadas — e, já que todo o urbano adulto contemporâneo se encontra, para seu infortúnio, irremediavelmente comprometido com política e com ideologia, essas se tornam quase todas também dependentes desse substância horrorosa, e assim se explica o seu decaimento, e o decaimento aberrante, indigesto, lamentável, como de outros como Trevor Noah ou John Oliver, no sub-género pouco frutífero e pouco duradouro do comentário político com graçolas à mistura. Este parece ser o mundo da Revista Maria dos intelectuais frustrados — e, de facto, como se supõe que o nível daquilo que entendemos como intelectualidade tenha uma densidade e uma qualidade exigentes, correspondentes ao conceito, ao contrário do popular, mais lasso, confessamos que muitos de nós acabarão por preferir a Revista Maria, mais condicente com uma categoria credível.
Por último, uma declaração de interesses (de desinteresses): há mais de vinte anos que programas dos engraçados a comentar política vicejam na televisão generalista e nos canais noticiosos do contexto português: o Eixo do Mal, o Governo Sombra, as Irritações, os vários programas do referido humorista, etc. Confessamos assim que, no nosso caso, o somatório de tempo assistido de todos esses programas juntos não ultrapassará os trinta segundos no total. Ao longo de vinte anos. Ou seja, ou entre nós temos o hábito de assistir pouco a televisão, ou esses programas são de facto muito maus. Admitimos que a segunda hipótese é muito mais provável.