Palavras Mal Usadas #3 — “Gaslighting”, “Mansplaining” e afins

Destacamos hoje novamente um capítulo da rubrica que por vezes evocamos como lembrete de correcção geral em relação a alguns vocábulos de uso comum equivocado. Conhecidas como “chavões”, “buzzwords” ou até mesmo “conversation stoppers”, estas palavras ou lexemas conhecem, nos tempos actuais, usos abusivos desligados dos seus significados originais ou até mesmo total ausência de honestidade dos mesmos.

Começamos com a palavra “gaslight”, hoje frequentemente usada para indicar quando alguém desvaloriza e/ou modifica os argumentos de outro, sugerindo ou indicando frontalmente que a lucidez do mesmo está em causa. Comumente este processo é dirigido da parte de um homem a uma mulher; a palavra tem origem no filme de 1948 intitulado precisamente Gaslight, em que um marido convence a mulher de que ela está louca. O problema é que — muito à imagem da palavra “mansplaining”, a segunda desta nossa lista — o conceito está a sofrer severos abusos no sentido de ser convocado simplesmente quando alguém não gosta de ver os seus argumentos desmontados.

Um político australiano explica a uma colega de comité a desadequação do uso de “mansplaining”.

A terceira é “micro agressões“, conceito que se popularizou com as gerações “millennials” e “Z”, e que aparentemente implica o uso de pequenas palavras ou expressões que fazem alguém sentir-se não exactamente nem necessariamente “ofendido” mas sim desconfortável, entre situações que podem ir desde atribuição acidental de género errado, uso de palavras de conotação sexual ou racial, ou simplesmente levantamento de tópicos para discussão com os quais a pessoa não se sente confortável. Ora em relação a isto é importante lembrar dois pontos: primeiro, é possível que grande parte da sensibilidade levantada em ocasiões que se enquadram neste tipo pode advir de severas deficiências no entendimento de como a linguagem, nomeadamente a metáfora, funciona; e, em segundo lugar, alguém que leve a sério o poder “agressivo“ de coisas insubstanciais como as palavras provavelmente nunca terá levado um soco na cara.

Um divertido excerto da série de comédia Seinfeld, ilustrando uma série de mal-entendidos relacionados com linguagem “micro-agressiva” em relação a ameríndios norte-americanos.

Em quarto lugar, novamente um conceito que temos abordado sobejamente neste e noutros espaços e cujo abuso hoje está provavelmente num dos seus pontos mais altos de sempre; algumas das misturadas conceptuais que se têm levantado em relação a este tema envolvem a ideia, completamente racista aliás, de que não existe “racismo reverso“ e que a raça branca não pode, em teoria, sofrer do mesmo. Ora isso é completamente absurdo e qualquer pessoa versada em antropologia, por exemplo, além de qualquer pessoa com o mínimo de experiência de vida e honestidade, sabe que o racismo é um fenómeno universal, milenar e que é uma versão específica da aversão ao estranho que a espécie humana, assim como qualquer animal, possui como atavismo de defesa.

Uma divertida brincadeira de algumas crianças africanas com um forasteiro asiático, que facilmente pode ser interpretada como um acto de racismo.

O quinto caso é o do abuso da palavra “transfobia”, que mais uma vez parte dos mesmos capítulos invocados por pessoas com debilidades intelectuais e de carácter que usam e abusam covardemente de palavras acabadas em “-fobia” ou “-ista” enquanto “conversation stoppers” de características de superioridade moral. Ora importa notar duas coisas: primeiro, não é por alguém, caso fosse efectivamente o caso, ter realmente “fobia“ de alguma coisa ou ser “-ista” (racista, machista, “especista”, etc.) que tem imediatamente o seu estatuto de interlocutor invalidado, nem é por isso que deixa de poder eventualmente ter razão: é possível a um transfóbico, a um machista ou a um racista dizer coisas acertadas, envolvam ou não essas disposições mentais e morais. Logo parece óbvio que a classificação pejorativa é convocada por mera razão de covardia intelectual. Segundo, na verdade em 90% dos casos em que estas palavras, nomeadamente “transfobia”, são utilizadas, não colhem razão nenhuma: discutir se não é possível mudar de sexo, se o estado não deve validar isso, e se ninguém é obrigado a tratar outra pessoa por nome ou título nenhum que ela entenda que merece, se trata, por si só, de “fobia” de coisa alguma, mas sim de posições perfeitamente permitidas numa democracia liberal que não interferem com a liberdade de ninguém e que contêm, aliás, matéria crítica para importantes discussões.

A sexta questão está relacionada com a palavra e com o conceito de “patriarcado“: pensa-se frequentemente que a evocação do mesmo tem valor por si só e é auto-explicativa, mas isso está longe de ser verdade. Por exemplo, de modo objectivo podemos dizer que em muitas sociedades muçulmanas, ou até em micro comunidades de etnia cigana, existe um patriarcado no sentido de ser um homem o proprietário, o líder, o braço público e político, da família, e todos esses papéis estarem parcial ou totalmente interditos à mulher. No entanto, descrever as sociedades ocidentais na actualidade, em que não existe qualquer diferença a nível de legislação quanto ao estatuto da mulher, e que, meramente por existirem mais homens em certas posições de poder — não todas — do que mulheres, como um sistema de “patriarcado”, parece revelar um notório abuso. É importante que cada pessoa que convoca este conceito saiba explicar exactamente do que é que está a falar.

Em sétimo e último lugar, a palavra “efeminado“, que trazemos aqui também a par da complementar “másculo”, não exactamente como palavra mal usada mas sim como palavra e conceito mal interpretados, parte de uma tendência pós moderna de relativismo tosco que parece pretender negar que existem características de forma inerente tendencialmente femininas e tendencialmente masculinas na espécie humana; é perfeitamente possível um homem ser efeminado tal como é possível uma mulher ser masculina, e estas aplicações de algum alcance metafórico destes conceitos não são, primeiro, pejorativas por si só, embora possam ser em muitos casos, e, segundo, não encerram necessariamente nenhuma conclusão moral. É com estas palavras então que vos deixamos, para reflectir, e aceitando sempre sugestões de mais vocábulos que estejam a ser sujeitos a abuso coloquial.

Fotografia do bailarino Rudolf Nureyev, um artista que agrega poderosas qualidades de força masculina e de graça feminina.