O Paradigma da Domesticidade Feminina

A proeminência da mulher trabalhadora no século XIX adveio não do aumento do trabalho feminino, mas da sua visibilidade, decorrente da industrialização. A preocupação com a divisão sexual do trabalho, ao enfatizar as diferenças biológicas que tornariam as mulheres menos produtivas, logo merecedoras de menor salário, concorreu para a segregação sexual do trabalho. O discurso dominante, assente no suposto determinismo biológico que vinculava as mulheres à maternidade e à domesticidade, remetendo-as para os papéis de esposa, dona de casa e mãe educadora, ancorado aos fundamentos da economia política da época, criado e replicado nos discursos de patrões, economistas e políticos, materializou-se numa acentuada divisão sexual do trabalho, segregação laboral e assimetria salarial.

Desde as sociedades primitivas que as mulheres trabalham para suprir as necessidades do quotidiano (Dieh e Senna 2016). Segundo Joan Scott (1994), antes do início da industrialização, as mulheres trabalhavam com regularidade fora de casa, conciliando trabalho, maternidade, cuidados familiares e tarefas domésticas, recorrendo a amas e cuidadoras se necessário, ao invés de desistirem do trabalho remunerado, sendo que a compatibilização entre trabalho produtivo e doméstico não era contestada.

A industrialização concorreu para a visibilidade e problematização da mulher trabalhadora, em torno dos binómios casa/fábrica, maternidade/salário e domesticidade/produtividade, sem que, todavia, originasse um aumento do trabalho feminino, já que as mulheres se encontravam em maior número nas áreas tradicionais do que na indústria.

Numa manifesta continuidade com o período pré-industrial, predominou o trabalho no domicílio, ainda que a ênfase dos historiadores contemporâneos no operariado fabril feminino encubra esta realidade, que os dados estatísticos disponíveis comprovam (Scott 1994, p. 450). A evidência de que era maioritariamente não regulamentado e mal pago, com tempos de trabalho prolongados e intensos que deixavam pouca disponibilidade para o trabalho doméstico (idem, p. 451), leva a concluir que os propagandeados benefícios do trabalho feminino a partir do lar constituem um paralogismo.

O discurso dominante, assente no pensamento de Rousseau e no iluminismo, defendia a “natural” sujeição ao masculino e a exclusão das mulheres do exercício da cidadania (Cobo, 1995). Se até então o discurso reinante era o da inferioridade feminina, herdeiro (não só, mas também) da tradição religiosa judaico-cristã, doravante seria cumulativo com o da domesticidade. Invocavam-se, a propósito do trabalho fora do lar, perigos para a moralidade, assexualidade e infertilidade das mulheres e emasculação dos respetivos maridos (Scott, 1994, p. 468), de entre um leque de argumentos misóginos, assente no suposto determinismo biológico que vinculava as mulheres à maternidade e à domesticidade, remetendo-as para os papéis de esposa, dona de casa e mãe educadora (Pinto, 2008).

Fotograma da comédia musical In the Good Old Summertime (Robert Z. Leonard, Buster Keaton, 1949), em que se pode acompanhar a história de uma mulher que trabalha numa loja de música na época de fin de siècle americano.

Os princípios da economia política oitocentista criaram, nutriram e disseminaram a ideia de que as mulheres, em virtude do determinismo biológico, eram menos produtivas, portanto merecedoras de menor salário, conforme frisa Scott (1994). Fixado como um suplemento aos ganhos globais da família, útil ao patronato, assegurava a dependência económica e reforçava a pertinência do salário familiar. Concomitantemente, o sistema sindical, profundamente patriarcal, advogava igualdade para todos os trabalhadores, mas proteção da vida familiar e doméstica. Considere-se ainda que a regulamentação laboral sexualmente específica empurrou as trabalhadoras para setores menos desenvolvidos, que praticavam salários mais baixos, aprofundando e exagerando a divisão sexual do trabalho.

Na leitura de Scott (1994) a proeminência da mulher trabalhadora no século XIX não advém do aumento do trabalho ou da mudança de local, mas da preocupação com a divisão sexual do trabalho, ajudando a moldar a atividade industrial, mais do que sendo dela subsidiária. O enfatizar das diferenças biológicas e funcionais conceptualizou o género como uma divisão sexual do trabalho «natural», que na realidade deveria ser conceptualizado na retórica capitalista.

Talqualmente, a expansão dos setores comerciais e de serviços, no final de oitocentos, socialmente aceites como adequados às mulheres, contribuiu para a feminização dos mesmos e para a implementação de estratégias laborais como a proibição do casamento e imposição de limite de idade. Terá sido esta minoria de mulheres assalariadas da classe média que fundamentaram a preocupação social de que o trabalho inviabilizasse o casamento e a constituição de família, e não a massa de mulheres pobres que trabalhavam para subsistir (Scott, 1994, p. 453).

As modalidades de trabalho em regime parcial, sob o manto ardiloso da compatibilização profissional e familiar, coadjuvaram no impedimento de construção de carreiras, ascensão na hierarquia laboral e acesso a cargos de direção, ainda que sujeitas aos mesmos deveres e funções dos congéneres masculinos (Scott, 1994, p. 464). Os setores do comércio e serviços replicavam desta forma a mesma divisão e desigualdade do setor fabril.

Estas construções discursivas, ancoradas nos fundamentos da economia política da época, criadas e replicadas nos discursos de patrões, economistas e políticos (idem, p. 456), materializaram-se numa acentuada divisão sexual do trabalho, segregação laboral e assimetria salarial.

Em finais do século XIX, o trabalho doméstico, ao ser entendido como destituído de valor mercantil, deixou de ser considerado “verdadeiro trabalho”. Destaque-se, todavia, a amplitude do trabalho feminino (Scott, 1994, p. 448) e a inserção massiva em variados setores da economia informal, que representavam percentagem considerável dos recursos financeiros familiares (Pinto, 2008, p. 157).

Os censos, ao classificarem estas trabalhadoras como “desocupadas”, levaram a que a taxa de atividade feminina caísse para metade (Scott, 1994, p. 476; Pinto, 2015, p. 229). As fontes oficiais, as estatísticas e as medidas regulamentadoras do trabalho feminino nas indústrias, implementadas no final do século XIX, consubstanciaram mecanismos eficazes na ocultação do trabalho mercantilizado (Pinto, 2015, p. 228).

As mulheres sempre trabalharam, pois “só as pessoas ricas podiam permitir-se não fazer trabalhar a mulher” (Hall 1990, p. 62, apud Pinto, 2015, p. 228). Nos meios operários e pequenos burgueses “a mulher que não concorria para o orçamento familiar era malvista, preferindo-se a mulher ativa à mulher preguiçosa” (Sohn, 1996, apud Pinto, 2008, p. 159), o que não impediu que o ideal familiar da burguesia vitoriana – um pai provedor, uma esposa não-trabalhadora e filhas que contribuíssem monetariamente para o lar até ao casamento (Scott, 1994, p. 479) – perpassasse as sociedades industriais. Postulava-se assim um quadro onde feminilidade e domesticidade andavam a par, e no qual a família, lugar de socialização por excelência, se constituiu como garante da estabilidade e pedra basilar da sociedade (Pinto, 2008, p. 156).

A centralidade do paradigma da domesticidade feminina oitocentista colaborou para projetar uma errónea ideologia da domesticidade sobre as sociedades pré-industriais atribuindo-lhe um cariz intemporal e uma abrangência global (Pinto, 2008, p. 161), que expõe o olhar eurocêntrico, patriarcal e colonialista sobre uma realidade que é plural, constituída na imbricação de vários fatores, escamoteando a existência de sociedades com diferentes contextos sociais, religiosos, económicos e culturais (Silva, 1999; Zamparoni, 1999).

Atente-se que às mulheres que desempenham funções assalariadas exige-se que continuem a cuidar do âmbito privado, criando uma dupla jornada de trabalho (Dieh e Senna, 2016, p. 36). Como eximiamente conclui Rose-Marie Lagrave, “as diferenças sexuais, cristalizadas nas estruturas e incorporadas nas mentalidades, aparecem tanto mais naturais quanto não deixam perceber a incessante construção social de onde procedem” (Lagrave, 1995, p. 527).

Conforme revelam Annie Rouquier e Chantal Février (2000), Tereza Beleza (2002) ou os trabalhos coordenados por Anália Torres (Torres et al., 2018), não obstante os níveis elevados de escolarização e de inserção das mulheres no mercado do trabalho, bem como de avanços judiciários e legislativos relevantes, o paradigma da domesticidade persiste até à atualidade. Continua patente nos valores de trabalho precário e parcial, discriminação persistente nas contratações e carreiras, disparidade no tempo dedicado ao trabalho doméstico, assimetrias nas remunerações independentemente das categorias profissionais, forte feminização do trabalho não pago e desigual representação na vida política.


Uma típica dona de casa sul-europeia.

Referências bibliográficas

Beleza, Teresa. 2002. “Antígona no reino de Creonte – O impacto dos estudos feministas no direito”. Revista ex aequo n.º 6: 77-89.

Cobo, Rosa. 1995. “La democracia moderna y la exclusión de las mujeres”. Mientras tanto (62): 107-119. http://www.jstor.org/stable/27820222

Diehl, Bianca., Senna, Tassiara. 2016. “A construção da identidade da mulher no espaço público: um processo relacionado ao poder”. Revista Humanidades, v. 31, n.º 1, jan-jun: 23‑41.

Lagrave, Rose-Marie. 1995. “Uma emancipação sob tutela. Educação e trabalho das mulheres no século XX”. In Duby, Georges, Perrot, Michelle. (Dir.). História das Mulheres no Ocidente, vol. 5. Edições Afrontamento: 501-539.

Pinto, Teresa. 2008. “Industrialização e domesticidade no século XIX. A edificação de um novo modelo social de género”. In Henriques, Fernanda (Coord.), Género, Diversidade e Cidadania. Edições Colibri: 155-168.

Pinto, Teresa. 2015. “A construção da invisibilidade das mulheres trabalhadoras. Uma perspetiva histórica”. In Percursos Feministas: desafiar os tempos, organizado por Ferreira, Eduarda. et al. UMAR: 225-240. https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/6944

Rouquier, Annie; Février, Chantal. 2000. Brève Históire des femmnes. Femmes sans qualités ou héroines. https://www.pedagogie.ac-aix-marseille.fr/upload/docs/application/pdf/2011-08/aro006_breve.pdf

Scott, Joan. 1994. “A mulher trabalhadora”. In Duby, G., Perrot, M. (dir.), História das Mulheres no Ocidente, vol. 4, Fraisse, Geneviève; Perrot, Michelle. (Dir.), O Século XIX. Edições Afrontamento: 443-475.

Silva, Maria. 1999. Um Islão Prático. O Quotidiano Feminino em Meio Popular Muçulmano. Celta Editora

Torres, Anália et al. 2018. Igualdade de Género ao Longo da Vida – Portugal no contexto Europeu. Fundação Francisco Manuel dos Santos

Zamparoni, Valdemir. 1999. “Gênero e trabalho doméstico numa sociedade colonial: Lourenço Marques, Moçambique, c. 1900-1940. Afro-Ásia, (23): 145-172.