Nota Introdutória
O presente ensaio parte de um excerto da obra L’Entretien Infini (1969) de Maurice Blanchot (1907-2003) e apresenta, a três tempos, aquilo que pretende constituir uma reflexão acerca do mesmo.
Numa primeira parte, parte-se do prisma tradicional do conhecimento que visa tudo conter, para cogitar acerca do perigo da redução de um eu a um tipo (Eu-Tipo) pela asserção da Palavra-Única e pela violência tantas vezes mortífera da Guerra, naquilo que constitui a secção intitulada de A Guerra, o Eu-Tipo & A Palavra-Única.
Seguidamente, explora-se a ideia desenvolvida pelo autor relativamente à Relação do Terceiro Tipo e ao novo tipo de palavra – a Palavra-Plural – por esta inaugurada, refletindo acerca do entrelaçamento proposto entre a Palavra-Plural da Literatura e uma certa viragem à Ética, em que o foco deixa de estar no Conhecimento do Eu e no olhar, tantas vezes dominador, do eu sobre o outro, ponderando-se a relação entre o Eu e o Outro – Outrem, o estranho, o estrangeiro, o que está na outra margem.
Num terceiro e último momento, reflete-se sobre A Literatura como locus de Liberdade.
I
A Guerra, o Eu-Tipo & A Palavra-Única
A guerra não manifesta a exterioridade e o outro como outro; destrói a identidade do Mesmo. (…) Os indivíduos reduzem-se aí a portadores de formas que os comandam sem eles saberem. Os indivíduos vão buscar a essa totalidade o seu sentido (invisível fora dela). A unicidade de cada presente sacrifica-se incessantemente a um futuro chamado a desvendar o seu sentido objectivo. Porque só o sentido último é que conta, só o último acto transforma os seres neles próprios. Eles serão o que aparecerem nas formas, já plásticas, da epopeia. (…)
Levinas,
Totalidade e Infinito (p. 8)
A guerra surge como a violência extrema, não só por ser imposição de um povo a outro povo, que muitas vezes se quer aniquilado ou amalgamado ao nosso, mas por ser imposição de uma categoria a um homem, agora tornado soldado de farda e arma na mão, circunscrito a um autómato capaz de matar, portador da máscara da maldade e do horror, da qual até a mais pura das morais se afasta.[i] O homem deixa de ser homem, torna-se um mero objeto, ao serviço de um poder que o transcende.
Na Europa, o século XX destaca-se como o século das grandes guerras em que regimes que se querem totalitários (Totalitário – Totalizador – Total) instauram um terror em massa em que muitos são colocados no grupo de todos e o eu não encontra espaço senão no outro; período em que se dividem as pessoas por categorias, utilizando critérios como os da raça, da ideologia política, da crença religiosa ou da orientação sexual, e se lhes rouba a oportunidade de ter um futuro que seja verdadeiramente seu, colocando-as em isolamento, ou se lhes impõe uma morte crua, eficaz, também ela totalizadora, usurpando-lhes a singularidade de uma morte própria, vendo-se exterminados em massa, selvaticamente, nessa época terrível em que até a morte se vê metamorfoseada em indústria e o homem animalizado em sub-homem porque reduzido a tipo.
Quando se julga conhecer o outro impõe-se-lhe necessariamente uma direção unilateral com origem numa dada narrativa que dita como um determinado homem é, ou deve ser, roubando-lhe aquilo que, por ser vasto e enorme, por ser mesmo infinito – o infinito de cada homem – lhe permitiria ser, ainda que na sua inenarrável e incontível pluralidade, um e um apenas – um homem livre. Efetivamente, apesar de cada um ser e estar colocado em um determinado horizonte de dúvidas, anseios e expectativas, ao ser posto numa categoria geral específica em que se acredita que pertence, como se não passasse de um mero objeto com uma determinada cor, textura, espessura e cheiro e não fosse um homem, para além daquilo que se vê de fora (o seu aspeto físico) ou o que serve para o identificar como cidadão de uma determinada pátria, conhecedor de uma determinada língua, associado a uma determinada família ou trabalhador de uma determinada secção, tudo isto, aliás, construções sociais que podem ser, desde já, consideradas redutoras e controladoras pois que imposições, perde tudo aquilo que o poderia distinguir do outro que se encontra ao seu lado e fortalece a máquina ditatorial de guerra e violência.
O ditador dita a verdade e nada existe para além desta pois que ela se transforma em facto. Este crê ter a razão absoluta e conter a verdade perfeita que, por ser a verdade e ser superior, tem de ser imposta a todos aqueles que a não conhecem. A sua palavra, que se julga a autêntica, é assim imposta aos outros, tornando-se na Palavra-Única, nova imperatriz de um mundo que perde o poder de duvidar pois julga tudo conhecer. Essa Palavra-Dominadora indica um sentido (o sentido único), um gesto brutal (o da violência), um pensar (servir o ditador, por este matar e por este, também, frequentemente perder a vista e a vida), nesse timbre redutor que passa quantas vezes a ser o propósito de quem a ouve e de quem nela é, tantas vezes, forçado a acreditar. O eu deixa de ser eu para se integrar na coletividade do Todo.
Todos aqueles que, portadores de pensamentos divergentes, todos os que não toleram totalizar-se, ver a sua unicidade ser integrada no conjunto dos outros, assistir ao despojamento de si e à respetiva integração no plural, em que o eu, afinal de contas, já nem sequer existe, tornam-se uma ameaça para o regime totalitário tão marcado pela voz poderosa do déspota, sendo rapidamente excluídos para o desterro, a prisão ou, até, a morte. Os artistas, particularmente os escritores, são desprezados ferozmente em épocas ditatoriais em que a palavra, que é única, teme a liberdade da Palavra-Outra, que, incapaz de controlar pela sua imprevisibilidade demasiado disruptiva, abafa. As suas obras, temidas por um poder alicerçado em bases quase sempre demasiado fracas, são queimadas em cerimónias abertas em praça pública.
Apesar de tudo, alguns daqueles que se opõem à tirania da Palavra-Única conseguem resistir à experiência ditatorial que julga tudo conhecer e, na sua resistência, a luta. Pela ancoragem já não da verdade evidente mas da dúvida; já não de um regime obrigatório para todos, mas em que todo aquele que quiser pode ter uma voz livre de correntes; já não pela guerra redutora de identidades, culturas e linguagens, mas pela afirmação de um pensamento plural em que o homem jamais possa ser de novo reduzido a um número tatuado na pele mas, erguendo-se, único, constrói o seu próprio caminho. Mesmo quando o ditador perde a sua voz e a Palavra-Única é derrubada, o que sucedeu tem de continuar a ser exposto nos tempos vindouros pois aquilo que aconteceu, ainda que não de maneira idêntica, pode ressurgir. Ainda que noutro tempo, noutra geografia, noutra língua, o horror total pode regressar e, por isso, é preciso falar. Falar para não esquecer. Para que o extermínio em massa nunca mais suceda. Para que o homem possa ser sempre um homem e não já um inseto, não já um tipo, não já um sub-homem despido da sua identidade de homem. Falar. Jamais se calar. Pois mesmo quando falar é impossível, calar-se é interdito.
II
Para afirmar a Palavra-Plural:
O outro como um mundo inenarrável, um horizonte sem fim
Conhecer equivale a captar o ser a partir do nada ou reduzi-lo a nada, arrebatar-lhe a sua alteridade. (…) Esclarecer é retirar ao ser a sua resistência, porque a luz abre um horizonte e esvazia o espaço – entrega o ser a partir do nada. A mediação (característica da filosofia ocidental) só tem sentido se não se limitar a reduzir as distâncias.
Levinas,
idem (pp. 30-31)
N’A Conversa Infinita, Blanchot conduz-nos, pela mão de Levinas, a uma nova ideia do outro (Outro – Outrem), grandemente afastada da conceção postulada por grande parte da filosofia ocidental, para quem o outro é normalmente considerado justapondo-se ao sujeito (Eu), em posição subalterna em relação a este – como o eu vê o outro, o que o eu pensa do outro, o que o eu sabe acerca do outro – isto é, focando-se no conhecimento que o eu tem do outro, transformando-o num objeto passível de ser manipulado.[ii] A ideia defendida por Blanchot é a de uma separação radical, na qual o Outro ultrapassa absolutamente o Eu, naquilo que constituiria um novo ponto de partida para a filosofia, cujo foco passaria a estar na Ética (o Outro) e não já no Conhecimento do Sujeito (o Eu).
Para melhor desenvolver o seu argumento, o autor diferencia três conjuntos de relações entre os homens. Na primeira relação, reina a lei do Mesmo, em que o sujeito deseja a unidade e o que é idêntico, almejando a transformação do outro no eu. Essa transformação pode ocorrer de três maneiras diversas, que são a adequação, a identificação e a luta e o trabalho na história. Na adequação, o outro é transformado ou moldado até se adaptar ao eu, como uma chave que tem de ser adaptada à fechadura para poder nela caber. Na identificação, o outro é identificado com o eu. Finalmente, na luta e no trabalho da história, são estabelecidas relações estratificadas de poderio entre os homens, em que cada um ocupa uma dada posição. Logo, para que não haja desigualdade, é afirmado o Todo através de palavras de supremacia, confronto e negação, sendo a relação entre o eu e o-outro-que-se-deseja-que-seja-eu uma relação de luta e de violência, ancorada numa base de poder e dominação.
A segunda relação corresponde a um vínculo de êxtase, fusão e fruição em que a soberania deixa de estar no eu e passa a estar no outro. Unindo-se completamente ao outro, o eu perde a sua identidade no seio deste.
Por último, no terceiro caso, é proposta a Relação do Terceiro Tipo, em que o Outro é o Outrem. O Outro é estranhamente misterioso, ele é o Estrangeiro que não surge em nenhum horizonte representável.[iii] Ele está na outra margem, em outra pátria que não a do Eu e é por essa relação de separação que o Outro se impõe ao Eu como o ultrapassando infinitamente: “A relação com o outro que é outrem é uma relação transcendente, o que quer dizer que existe uma distância infinita e, em certo sentido, intransponível, entre eu e o outro, o qual pertence à outra margem.” (p. 99)
O Outro é o irremediavelmente e completamente Outro, aquele que não podemos pretender conhecer pois que essa tentativa de conhecimento constituiria um atentado em relação ao Outro, porque um fechamento, uma etiquetizaçãoimposta pela visão do sujeito em relação ao Outro, transformado em tipo, e, logo, uma violência. A separação proposta entre o Sujeito e o Outro permitiria ao primeiro considerar o segundo, naquilo que seria já não uma relação de apropriação ou opressão, mas uma consideração a partir da separação, sem desejo de uniformização ou de junção, uma relação com o absolutamente fora: o Outro (Outrem). Esta seria a relação sem soberania, onde a possibilidade da violência, do desejo de posse, da tirania e da brutalidade acaba. Esta relação não alteraria em nada os termos da mesma (nem o Eu nem o Outro), excluindo todo e qualquer tipo de dominação, incluindo o medo, a participação mística e a apropriação, a conquista e também a compreensão (sentida, neste contexto, como uma forma de controlo ou hegemonia).
Na relação do terceiro tipo, em que jamais o Sujeito é compreendido pelo Outro, nem forma com Ele um conjunto, uma dualidade ou uma unidade, um é totalmente desconhecido para o outro.
Relação que designamos como múltipla, unicamente porque o Uno não a determina, relação móvel-imóvel, inumerável e sem número, não indeterminada mas indeterminante, sempre deslocando-se, não tendo lugar e como que parecendo atrair-repelir qualquer ‘Eu’ fora de seu lugar ou do seu papel que ele deve no entanto manter, transformado em nómada e anónimo num espaço-abismo de ressonância e de condensação.
(cf. p. 121)
De facto, nela o foco é colocado no estranhamento existente entre o Eu e o Outro, na separação que coloca cada um dos dois numa ilha diversa em que o Outro é o eterno desconhecido – é o Altíssimo, que se encontra muito longe do Eu. Apesar da distância dividindo os dois, o Altíssimo pode surgir ao Eu em forma de rosto, quando se revela ao Eu como o absolutamente fora e o absolutamente acima de, no lugar onde o poder cessa e a representação deixa de ser viável pois que o próprio poder é desarmado e transformado em im-possibilidade.
Ora, essa estranheza ou infinidade entre o sujeito e o outro, faz com que exista, na linguagem, a interrupção que introduz a espera. Interrupção, neste contexto, não se refere à pausa ordinária que existe no discurso e permite a troca, em que um falante se cala para dar lugar ao discurso do outro falante. Efetivamente, Blanchot distingue dois tipos de interrupções. No primeiro caso – a pausa ordinária entre falantes em que um se cala para o outro poder falar – o que se deseja é afirmar uma verdade unitária que dê azo ao entendimento entre os participantes na conversa. Contrariamente, no segundo tipo de interrupção, que o autor apelida de mais enigmática e mais grave por introduzir a espera que mede a distância entre dois interlocutores, não se trata mais de uma busca unificadora. O mais importante é a estranheza entre os falantes, tudo o que separa um do outro, separação infinita, que deixa o Outro infinitamente afastado do Eu, mas também funda a relação do Eu com o Outro.
(…) alteridade pela qual ele não é para mim, (…) nem um outro eu, nem uma outra existência, nem uma modalidade ou um momento de existência universal, nem uma sobre-existência, deus ou não deus, mas o desconhecido em sua infinita distância.
Alteridade que se mantém sob a denominação de neutro. (…)
(cf. p. 134 , destacado meu)
Essa diferença referente à interrupção corresponde a dois tipos de experiências de palavras. A primeira interrupção tem a ver com a palavra dialética, a que tende para a unidade (Palavra-Única). A segunda interrupção, que aqui mais nos interessa destacar, tem a ver com a palavra da escrita, que carrega uma relação de infinidade e de estranheza, em que se sai do fascínio da unidade e se afirma uma palavra plural (exigência não dialética da palavra). Esta interrupção é marcada por uma alteração na forma ou estrutura da linguagem, em que falar (escrever) é cessar de buscar o pensamento-único e fazer das relações entre palavras dissimetrias, onde um nível de linguagem até aí enclausurado se liberta, ganhando o poder de se exprimir de uma maneira intermitente e não constante (falar, i.e., escrever, não é ditar), que não visa à unidade e que consegue ultrapassar as duas margens, sem todavia preencher o espaço que dista entre elas. A linguagem seria a relação onde o Outro e o mesmo, mantendo a sua ligação, podem simultaneamente perdê-la. A linguagem, aqui, dá-se no dirigir-se ao outro, é uso da palavra com a qual se entra em relação com o Outro, permitindo essa mesma palavra reconhecer a elevação do outro e aprender acerca da incompletude do homem. Falar, aqui, deixa de ser ver (no sentido em que ver pressupõe um conhecer, um apropriar e um destruir). Ao falar ao outro, eu apelo ao outro.[iv] Não denomino o outro, não o defino, não o julgo, não o limito. Chamo-o. Invoco-o na sua desigualdade e pela sua desigualdade (pois, se ambos não fossem desiguais, que necessidade haveria de fazer uso da palavra?). Acolho-o na sua impossibilidade, no seu afastamento, não o confrontando, não o afirmando nem o negando, nada declarando que não a distância infinita da separação entre Eu e Ele.
O homem fundado neste tipo de relação é o que surge enquanto palavra, palavra essa que é a daquilo que permanece radicalmente separado, na outra margem (aquilo que não se chega a conhecer), afirmando uma relação sem unidade nem igualdade (uma relação na qual a comparação não é possível) – o neutro.Devido à presença do neutro, o que não se pode comunicar, existe uma distorção, ou anomalia fundamental, que impedem qualquer comunicação que seja direta e exigem ser carregadas pela palavra, mesmo sem que seja preciso dizê-las ou significá-las (dizer sem dizer, dizer sem significar). Essa relação não pode ser alcançada nem pela afirmação nem pela negação, sendo neutra, o que vem exigir da linguagem uma possibilidade-outra de dizer que diga sem afirmar nem negar o ser, isto é, sem o dogmatizar nem o repudiar, uma linguagem-além, libertária, que não visa a unidade nem a castração. Essa linguagem-outra seria a exposta pelo ato literário e sustida pela escrita.
Deste modo, a uma palavra dialética, única, tantas vezes utilizada para esclarecer, dizer e ditar, opõe-se uma possibilidade de dizer-outra, a da escrita, que não é circunscrita pelas regras do mundo do conhecimento. Efetivamente, escrever não pressupõe saber o que quer que seja ou apropriar uma dada realidade, não pretendendo definir ou caraterizar um homem de tal modo que esse se integre na matéria do Mesmo. Se há espaço que vai para além do conhecimento, da apropriação, da definição e da caraterização, esse espaço é o literário, habitat sem limites da linguagem sem limites onde o conhecimento não está em primeiro plano. Lugar em constante mudança, no qual as ideias propiciam novas ideias, e as vozes novas vozes, em que é possível que certas certezas se estilhacem para dar lugar a dúvidas.
A palavra da escrita pode propor uma narrativa outra, para além da filosófica, histórica e científica, que não a ditada pelos imperativos da técnica, quantas vezes prisioneira do pragmático, do óbvio e do imediato. Afirmando a palavra escrita, permite-se uma relação de estranheza infinita, em que a unidade é destronada e a palavra plural afirmada, “Palavra que precisamente encontra sempre de antemão sua destinação (sua dissimulação também) na exigência escrita.” (p. 141). Falar sem poder (sem dominar nem impor), manter a palavra (na distância infinita que separa o Outro do Eu). A linguagem não é já, então, uma forma de conhecer ou uma maneira de ver, de ter ou de afirmar o poder, logo, de julgar, de quantificar e de objetificar, antes um modo de ser, modo de ser esse imune à contestação, à significação, à determinação, à clarificação e à discussão, daí decorrendo a sua elevação, que lhe permite situar-se acima de todo o horizonte da representação.
O homem, incapaz de abarcar a incomensurabilidade do outro homem, fica como que impossibilitado de o julgar, podendo-se deste modo abrir caminho à extinção/supressão dessa narrativa violenta baseada em jogos de poder entre homens e em estratificações sociais e desigualdades de todos os géneros perpetuada por uma certa filosofia baseada no conhecimento e na instrumentalização e pela história, radicada em relações de dominação e violência. Interrompidas estas ideias de filosofia e de história, a moral (ethos) poder-se-ia então afirmar, provocando um enorme abalo no pensamento, “(…) [a] denúncia de todos os sistemas dialéticos, e também da ontologia, e inclusive, de quase todas as filosofias ocidentais, daquelas pelo menos que subordinam a justiça à verdade ou não aceitam como justa senão a reciprocidade das relações.”, o que poderia permitir “a afirmação de um poder de julgamento capaz de arrancar os homens da jurisdição da história” (p. 107).
III
A Literatura como locus de Liberdade
Escrever não mostra o que fica mas o que falta.
Para tocar o fundo. Disso se morre, de escrita.
Mas nada vale senão morrer.
Herberto Helder
No mundo em que a luta pelo conhecimento reina, o outro, reduzido a objeto, é apropriado pelo sujeito, que o contém em si mesmo, roubando-lhe a sua liberdade e autonomia. O desconhecido é comprimido, colado ao conhecido. Todas as dúvidas se eclipsam pois só há um saber e esse saber está escrito (inscrito) nas páginas que todos têm de conhecer, extinguindo-se as hipóteses de um pensamento-outro que não se reduza ao Eu-totalizador e ao que este sabe.
No mundo da literatura, por outro lado, o conhecimento não impera, antes o tateamento ou a procura daquilo que sempre escapa ao saber e, por isso, jamais se possui. Esse mundo, se é que de mundo se trata, a existir, não tem uma forma concreta. Não tem uma massa que se possa medir nem uma superfície que se possa descrever e, por isso, abre-se como espaço de procura de todas as possibilidades de expressão, oferecendo-se como local de liberdade por excelência, onde pode ser proposta uma sociedade em que a moral e os valores sirvam, não como desculpas ou limites, mas como a afirmação de uma certa maneira de ser feliz; em que o homem não pensa sequer em dominar o seu semelhante, aprisionando-o ou controlando-o seja de que maneira for; esse espaço infinito dentro do qual quanto mais se perscruta menos se vê e quanto mais se avança menos se sabe.
A literatura pode, de facto, aliar uma certa ética à estética,[v] sugerindo uma ideia de homem que, por muito que tentemos delinear, resiste sempre à nossa apreensão. Um homem que seja o Outro (e não somente o outro). Ela pode rejeitar as coisas, os lugares comuns; pode olhar para o lado (para onde ninguém olha e para onde, por isso, se torna necessário olhar) e não em frente (para onde todos olham); pode, até, quem sabe?, introduzir a ideia de um pensamento impossível ou pensar o impossível de ser pensado, como uma sociedade em que o poder e o capital não são o farol que guia as almas ou, mesmo, uma sociedade sem capital e sem poder. Daí que ela possa ser assustadora e mesmo tornar-se indesejável, como um elemento a ser suprimido – ela não só não sabe nada como não pretende saber nada. Todavia, ao mesmo tempo, contém tudo. É por isso que ela é plural, que ela é a palavra-além que se desnuda em simultânea liberdade e exigência. Precisa de falar – falar sem poder, sem desejar dominar, impor uma visão unívoca; falar mesmo que não possa falar; falar mesmo que o próprio falar tenha sido proibido – contra o comum, o funcional e o diário. Manter a palavra – de liberdade, de autonomia, de abertura e de contestação. Palavra-palco, que mete em cena toda a geografia humana sem, mesmo assim, pretender conhecê-la ou transformá-la numa parte do Todo. Estando dentro, estar de fora da sociedade do conhecimento, escrever para além dele, contra ele e apesar dele e por isto ser perigosa, revelando-se altamente indesejada nos momentos de fechamento – de ideias, de opiniões, de geografias e de felicidades, de modos de ser e de estar – pois que ela questiona todo aquele que quer conter tudo e todos no mesmo sítio, que quer colocar todos na mesma categoria, numa tentativa de uniformização, de perda de identidade, em que o outro é forçado a ser eu e o eu é forçado a ser como o outro, em que todos são todos, e todos são iguais, todos são o ninguém em que se transformaram. Ei-la, que nos invoca, que nos apela, a imaginar, com uma linguagem própria, fora da linguagem estandardizada do dia a dia, um mundo em que o foco não seja o conhecimento, a apropriação de ideias e saberes que tantas vezes nem sequer nos ajudam a conduzir uma existência mais justa. Ei-la que vem convidar-nos a mergulhar numa pluralidade de perspetivas onde há também espaço para o Outro – não apenas para o eu, onde também há lugar para a Ética, não somente para a Epistemologia, onde a abertura não vive enclausurada pelo que sabemos dela, mas, livre, nos convida a colocar todas estas questões. Sem a literatura, rodeados pelos imperativos do conhecimento e da sua subserviência ao capital e à política tantas vezes imperialista, avançaríamos cada vez mais em frente pelo túnel negro da formatação total do indivíduo em que este, tendo-se esquecido do que significar duvidar, se julga detentor de todas as certezas e livre de todas as responsabilidades e, logo, saídos do túnel negro, encontraríamos a boca sempre aberta do abismo.
Crédito das Fotos: Henrique Souto – “Clouds/Nuvens”
https://www.henriquesouto.net/gallery_465503.html
Bibliografia
Blanchot, Maurice. 2010 [1969]. “A Conversa Infinita” in A Palavra Plural. São Paulo: Escuta. Pp. 95-142.
___. 2018. [1959]. “Para onde vai a literatura?” in O Livro por Vir. Lisboa: Relógio de Água. Pp. 219-274
Levinas, Emmanuel. 2008 [1961]. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70.
Monteiro, Hugo. 2014. Maurice Blanchot: A Literatura nos limites da filosofia. Coimbra: Palimage.
Semprun, Jorge & Wiesel, Elie. 1995. Se Taire est Impossible. Paris: Éditions Mille et une nuits.
[ii] “A filosofia ocidental foi, na maioria das vezes, uma ontologia: uma redução do Outro ao Mesmo, (…).
O primado do Mesmo foi a lição de Sócrates: nada receber de Outrem a não ser o que já está em mim, como se, desde toda a eternidade, eu já possuísse o que me vem de fora. (…) A neutralização do Outro, que se torna tema ou objecto – que aparece, isto é, se coloca na claridade – é precisamente a sua redução ao Mesmo. (…) O ideal da verdade socrática assenta, portanto, na suficiência essencial do Mesmo, na sua identificação de ipseidade, no seu egoísmo. A filosofia é uma egologia.” (cf. Levinas, op. cit. 30-31, destacado meu)
[iii] “(…) o Estrangeiro quer dizer também o livre. Sobre ele não posso poder, porquanto escapa ao meu domínio num aspecto essencial, mesmo que eu disponha dele: é que ele não está inteiramente no meu lugar. Mas eu, que não tenho conceito comum com o Estrangeiro, sou, tal como ele, sem género. Somos o Mesmo e o Outro. A conjunção e não indica aqui nem adição, nem poder de um termo sobre o outro. (…)” (cf. Levinas, idem: 25)
[iv] “Todo o discurso está, pois, posto em cautela, na obrigação ética que dita a não redução do Outro ao alcance económico do Mesmo.
O Outro nunca é um tema ou uma tese – é intematizável -, o que invalida a tarefa de se falar dele, transportá-lo ou conduzi-lo num discurso que o contenha. Todo o discurso deve deslocar-se, por isso, da tematização para a invocação: não se falará sobre ele, mas a ele, respeitando (e respondendo, nesse respeito) a distância infinita que o aparta e que o furta à familiaridade de um tratamento por “tu” – exige-se a terceira pessoa, o “ele” estranheza do Outro em questão no pensamento, na escrita…” (Monteiro, 2014: 96-97)
[v] “A escrita, ao constituir-se como terreno de plena e ilimitada liberdade, por impossibilitar a ambição da unidade e da soberania indivisa, é o espaço ético que combate qualquer aspiração totalitária, nela se construindo uma liberdade de afirmação que impede toda a prevalência do ‘diktat’. (…)
A escrita de Blanchot comporta pois, desde cedo, uma conceção enérgica do que pode a literatura, enquanto espaço privilegiado do pensamento político enquanto desconstrução do poder, da liberdade, do pensamento e do ser em comum. Porque não há literatura que não seja combate, que não esteja imersa num amplo e decisivo combate contra as mais virulentas diatribes do homem face ao homem, face ao outro, face ao que não cabe no sistema e nos pressupostos estritos de qualquer abordagem sistematizante.” (Monteiro, idem: 403-404)