Existem no mundo contemporâneo no qual nos movemos divergências acerca do que temos vindo a confrontar nos últimos anos, nomeadamente a noção identitária que engloba a sociedade de hoje. No coração da Europa, a França é o palco de ataques aos ideais democráticos através de atentados terroristas ditos de cariz religioso; mais concretamente, islâmico.
No entanto, não só são os valores da democracia aplicada em França que são ofendidos, mas também aqueles que dominam todo o rosto ocidental. Todos nos relembramos do ataque à liberdade de expressão ao jornal satírico Charlie Hebdo,em janeiro de 2015, em plena luz do dia. Ainda em 2015, algumas esplanadas, a sala de espetáculo do Bataclan e o Estádio de França são atingidos para contestar as liberdades de circulação e de convívio que nos são essenciais e inquestionáveis. Os atentados de cariz islâmico já não possuem a finalidade de alianças ou vinganças políticas, tal como aconteceu no terrível 11 de setembro de 2001, mas sim o objetivo de erradicar direitos aos quais temos acesso de forma igualitária e total.
Aqui e agora, é fundamental refletirmos sobre a crise identitária na qual a Europa já mergulha silenciosamente há cerca de 20 anos, que tem estado mais em foco na França, o núcleo do mundo ocidental, berço dos direitos individuais, da liberdade de expressão; isto é, dos conceitos da República que datam dos tempos napoleónicos. É importante debruçar-mo-nos e entender o que constituem estes atentados à democracia e naturalmente à ideologia republicana para assim evitarmos todo o tipo de totalitarismos emergentes.
Já em 1949, George Orwell publicava a distopia por ele imaginada em 1984, no qual Big Eye observava e controlava minuciosamente e sem clemência os habitantes do regime totalitário e comunista que ali reinava. Contudo, Boualem Sansal, em 2084 (2015), vai marcar uma nova vertente da distopia erguendo um mundo controlado não por um regime político mas sim por uma figura religiosa ou, por outras palavras, uma sociedade dominada por uma teocracia. Esta obra, que é naturalmente alusiva à de Orwell, foi no regresso às aulas de 2015 em França (ano no qual o país sofreu o atentado ao Charlie Hebdo) aconselhada pela conhecida revista Magazine Littéraire (nº 559), onde o artigo consagrado à distopia classifica a obra como sendo uma “profecia incomodante nas derivas do radicalismo islâmico, inimigo mortal das democracias”.
Sendo as utopias literárias retratos de mundos oníricos por vezes de âmbito fantástico (Minerva, 2008 : 559), a distopia é o seu par dicotómico e claramente traduz-se numa demonstração de uma realidade desprovida de humanidade e de liberdades. No que diz respeito à utopia, esta última surge resultando da necessidade de evasão através de uma alternativa à realidade na qual se vive. O que leva à sua escrita é a vivência do autor da mesma num mundo dominado por uma autoridade opressiva. Constata-se que o século XVII foi produtivo quanto aos textos utópicos, devido em parte à privação da liberdade de expressão:
« Si au XVIIe siècle l’idéal utopique connaît un essor important, c’est sans doute parce que le conservatisme dominant empêche la libre expression des revendications libertaires dans les domaines de la science, de la morale et de la religion (…) » [Se no século XVII o ideal utópico conhece um trampolim importante, é sem dúvida devido ao conservantismo dominante que impede a liberdade de expressão das reivindicações à liberdade nos domínios da ciência, da moral e da religião (…)] (Minerva, 2008 : 562)
Em contrapartida, a distopia representa uma não-crença num mundo melhor e leva o leitor a conhecer uma sociedade dominada. É, por assim dizer, uma desconstrução da utopia iluminista. No ponto de vista de Krzysztof Pomian, a distopia aparece englobada numa esfera de desconfiança nas novas mutações societais tais como a manipulação genética, a destruição ambiental, a perda dos valores morais e particularmente a fragilidade da liberdade de expressão. Pomian desenvolve:
Le remplacement de l’utopie par ce qu’on appelle maintenant la dystopie et la disparition de la croyance dans le progrès montrent que la transgression n’est plus ce qu’elle était. (…) Elle est supposée, au contraire, être déjà derrière nous et ses effets sont censés n’être que néfastes. À force de vouloir créer des sociétés idéales, d’accroître la puissance technique de l’homme, voire d’en modifier radicalement la nature par des moyens génétiques ou sociaux, nous avons détruit l’environnement, mis en danger la liberté humaine et lancé les sociétés dans une course à l’abîme qui ne peut finir que par une catastrophe. (…) [les visions alternatives] appellent à éviter toute transgression pour vivre en accord avec la nature dans une société métissée, respectueuse de l’environnement (…) Nous n’en avons pas fini avec l’utopie. [A substituição da utopia por aquilo a que chamamos a distopia e o desaparecimento da crença no progresso mostram que a transgressão jamais é aquilo que era. (…) É suposto, pelo contrário, ser já parte do passado e os efeitos só podem ser nefastos. Com o objetivo constante em criar sociedades ideais, de levar ao extremo o poder técnico do homem, até a modificação radical da natureza através de meios genéticos e sociais numa corrida ao abismo que só poderá acabar em catástrofe. (…) [as visões alternativas] incitam a evitar toda a transgressão com a finalidade de viver em desacordo com a natureza numa sociedade mista, respeitosa do ambiente (…) Nós não acabamos de ouvir sobre utopias.] (Pomian : 2016, 1311/1312)
Thomine também comenta que a literatura pós-apocalíptica tem vindo a crescer num terreno fértil devido aos novos atentados às liberdades que nos são naturais: «convulsions d’une époque généreuse en crises, attentats, naufrages (…) » [convulsões de uma época generosa em crises, atentados, naufrágios (…)] (Thomine, 2016 : 32).
Em 2084, Sansal representa uma sociedade teocrática, dominada pelo deus único Yolah. As assimilações com a religião islâmica são desde aí evidentes; não obstante, é possível salientar mais semelhanças. Esta religião, de caráter conquistador, na qual a criação de uma comunidade unificada (a chamada Umma) é encarada à letra, não deixa de consistir, nesta obra, de um fruto imaginário, apesar do seu caráter explicitamente acusativo, dado que hoje esse mesmo terrorismo religioso justifica as suas ações pela vontade de conquista de território.
A distopia de Boualem Sansal relembra inevitavelmente Submissão (2015), a ficção de Michel Houellebecq. Publicada poucos dias após os atentados islamistas à redação de Charlie Hebdo, sem que tal fosse propositado – embora tenha adquirido uma conotação simbólica de riposta ao ataque à liberdade de expressão – é, segundo o autor, diferente da distopia, chegando a considerar-se o texto do autor argelino como um cenário desmotivante onde já se deu a vitória dos extremistas, realçando porém que esta é possível no mundo atual, onde a democracia já se encontra no seu estado mais débil. Sansal remete ainda para a importância destes textos de antecipação, dado que envolvem o leitor emocionalmente; este assiste à degradação cada vez mais alarmante da realidade na qual vivia a personagem que acompanha ao longo da leitura.
A personagem central de 2084, Ati, acorda num sanatório no início da narrativa, desconhecendo todo o passado, e por sua vez o seu próprio passado, antes de ter ali chegado, diagnosticado com tuberculose. Ao decorrer do texto de Sansal, Ati recorda vaga e incessantemente uma palavra em particular que por si só lhe sugere o interdito: a liberdade. Igualmente, Sansal ligou a sua obra à de Orwell desde o início do seu relato:
Quand le sanatorium avait été érigé, il y avait fort longtemps – un cartouche gravé dans la pierre au-dessus du berceau du monumental portail de la forteresse révélait une date, si c’était bien une date, 1984, entre deux signes cabalistiques effrités, année qui était peut-être celle de son inauguration mais le court texte en légende, qui sans doute le confirmait et indiquait la vocation de la bâtisse, était dans une langue inconnue (…) [Quando o sanatório foi construído, há muito tempo – um ornamento gravado na pedra debaixo do monumental portão do forte revelava uma data, se bem que fosse uma data, 1984, entre dois signos cabalísticos desgastos, ano provável da inauguração mas o curto texto que servia de legenda, que sem dúvida o confirmava e indicava a vocação do estabelecimento, estava escrita em língua desconhecida (…)] (Sansal, 2015 : 42)
Além desse aspeto, em 2084 é forte a noção da inexistência de uma “sociedade” ou “cultura” conforme as entendemos, visto que o mundo é por inteiro dominado pela teocracia vigiada por Bigaye, o que não lhe possibilita a criação de fronteiras e, por sua vez, fortalece o totalitarismo predominante naquela distopia.
A amnésia que se sente ao longo do percurso de Ati é preocupante. Esta não tem origem nítida, o que leva a concluir que provavelmente poderá ter sido progressiva, tal como a ascensão dos totalitarismos, que fazem parte da nossa história. Quer isto dizer que a instalação de um regime totalitário é subtil e não abrupta, e que, desta forma, existe uma aceitação por parte de que quem vive nesse mesmo regime. E é precisamente esse aspeto que o autor pretende levar à reflexão: a possibilidade do totalitarismo já estar instalado no seio do Ocidente, tal como Boualem Sansal o alerta numa entrevista chamada de «Boualem Sansal: ‘‘Nous sommes dans une société qui murmure, avec une incapacité à dire les choses’’, [Estamos numa sociedade que murrmura, com incapacidade de dizer as coisas] dada ao jornal francês Libération : «Abistan já se encontra em curso e já está em estado muito avançado.» . É esta a realidade incomodativa que Sansal deixa em suspenso.
O totalitarismo marca desta forma uma pegada na ficção distópica, que atualmente é maioritariamente francófona, tendo em conta o islamismo engrandecendo no contexto francês, para que o leitor seja confrontado com um cenário semelhante à sua realidade de forma a suscitar nele reação e observação. Como o afirmam José Domingues de Almeida e Mustapha Harzoune nos seus trabalhos, a literatura tem esse mesmo papel: «(…) n’entend pas susciter la résignation ou la capitulation, mais plutôt la résistance, si ce n’est le rejet » [não pretende suscitar a resignação ou a capitulação, mas sim a resistência, e até a rejeição] (Almeida, 2015 : 53); « Le roman invite aussi, explicitement, à réfléchir, à ‘déconstruire’, ce qui structure nos cadres conceptuels et nos imaginaires depuis au moins le XIXe siècle, à commencer par les notions de peuple, d’identité ou de frontière » [O romance convida também, explicitamente, a refletir, a ‘desconstruir’, o que estrutura as nossas noções conceptuais e o nosso imaginário desde pelo menos o século XIX, começando pelos ideais de povo, identidade ou de fronteira] (Harzoune, 2015 : [s.p.]). Por sua parte, Orwell apelava para a possibilidade de a democracia cair devido à mão política totalitarista. Hoje, Sansal continua a narrativa do autor de 1984 de modo a associar o totalitarismo ao domínio da religião que já hoje se instala através do terror delineado pelos extremistas ditos do islão.
Através dos atentados, cada vez mais solitários e menos coordenados, o terrorismo religioso tende a instaurar o medo e desta forma engendrar uma perda de costumes societais e de liberdades individuais que constituem a livre circulação e a livre expressão. Vivendo num clima de receio de afirmar o que será politicamente incorreto, e o Ocidente tem hoje uma espada de Dâmocles prestes a cair a qualquer momento e em qualquer espaço. Especificamente em França, verificou-se o crescendo de vozes intelectuais que, através de romance, ensaios ou ainda artigos jornalísticos, pretendem desarticular os conceitos e aprofundar as pesquisas de modo a fornecer ao público dados qualitativos, levando assim à reflexão tendente a impedir um domínio totalitarista em qualquer parte do globo e mais em pormenor no território ocidental.
Devemos, nesta maré, prosseguir a nossa análise da questão islâmica que nos rodeia, apoiando-nos nos textos francófonos que nos propõem, tal como a obra distópica de Boualem Sansal, 2084. São necessários um despertar e uma tomada de consciência, mas retraçar os conceitos da democracia será uma tarefa delicada, tendo em conta a predominante ideia do politicamente correto e a pressão islâmica que já existe para uma maior tolerância dos seus costumes numa esfera tradicionalmente cristã.
Bibliografia
ALMEIDA, José Domingues de (2015). « Lire Soumission entre Charlie Hebdo et le Bataclan – L’islamisation selon Michel Houellebecq. Provocation (suite) in Intercâmbio. 2e série, vol.8, pp. 43-54.
HARZOUNE, Mustapha (2015). « Boualem Sansal, 2084. La fin du monde », in Hommes&Migrations, 1312. Publicado dia 2 de junho de 2015. Disponível em http://hommesmigrations.revuesorg/3543. [Consultado dia 21 de outubro de 2020].
HOUELLEBECQ, Michel (2015). Soumission. Paris : Flammarion.
LE TOUZET, Jean-Louis (2015). « Boualem Sansal : ‘Nous sommes dans une société qui murmure, avec une incapacité à dire les choses’ », in Libération. Publicado dia 11 de outubro de 2015. Disponível em http://www.liberation.fr/planete/2015/10/11/boualem-sansal-nous-sommes-dans-une-societe-qui-murmure-avec-une-incapacite-a-dire-les-choses_1402019. [Consultado dia 21 de outubro de 2020].
MINERVA, Nadia (2008). « Le paysage utopique : les aires dominantes. France », in Histoire transnationale de l’utopie littéraire et de l’utopisme. Coordenado por Vita Fortunati et al. Paris : Honoré Champion Éditeur. pp. 559-578.
POMIAN, Krzysztof (2016). « Temps », Dictionnaire critique de l’utopie au temps des Lumières. Coordenado por Bronislaw Baczko et al. Suíça : Edições Médecine et Hygiène Georg. pp. 1291-1313.
SANSAL, Boualem (2015). 2084. La fin du monde. Paris : Gallimard.
THOMINE, Camille (2016). « Romans post-apocalyptiques », in Magazine Littéraire, número 571/setembro. pp.32-34.
Webographie
« Michel Houellebecq – On n’est pas couché 29 août 2015 ». Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=UyGX14yz-8w. [Consultado dia 21 de outubro de 2020].