Uma leitura de King Lear que coloca a culpa do mau caso das coisas na própria Cordélia, espécie de pirralha mimada que se recusa a jogar o jogo da linguagem.

Imagem: King Lear and Cordelia (1849-54) do pintor Ford Madox Brown (1821-1893)

Logo na primeira cena da tragédia shakespereana King Lear, o velho rei, vendo aproximar-se a hora da morte e o momento emocional e burocraticamente terrível das partilhas, pede às suas três filhas que verbalizem o amor que sentem por ele. As duas primeiras, Goneril e Regan, prestam-se rapidamente à cerimónia, acedendo ao pedido, e cobrindo o rei de palavras elogiosas e luxuriantes. A última, mais nova, Cordelia – de nome latino algo semelhante a cordarius – por sinal, a preferida do rei, recusa-se a entrar no jogo. O velho não tolera: “nothing will come of nothing”, se Cordelia não participar; mas a filha, de facto, mantém o silêncio. Seria fácil tentar explicar esse silêncio com a contemporaneidade confortável de uma leitura psicológica, ou com a fórmula vencedora do modelo de tragédia clássica, onde a predestinação e a autonomia das acções coexistem. Nessa primeira leitura, Cordelia seria tomada por emoções de orgulho ou por raiva, recusando-se a participar no jogo cínico que o pai lhe propõe e a que as irmãs tão prontamente acedem. Na segunda leitura, a manifesta incapacidade de Lear para o amor encontraria em Cordelia o seu sujeito sacrificial, processo que se inicia com o seu silêncio e termina com a sua morte; o velho rei, porém, não se purifica nesse sacrifício, mas renasce idêntico.[i] Ainda numa outra leitura, uma interpretação tão transversal quão abrangente, Stanley Cavell, no muito denso ensaio de 1958 “The Avoidance of Love”, parece ler em King Lear um esgotamento do modelo da tragédia clássica, dissolvido na era moderna pós-positivista, onde a extinção da presentness e do acknowledgement, conceitos que dominam o ensaio e muito do pensamento de Cavell, é feita através da existência simultânea da liberdade e da causalidade e na nossa responsabilidade por ambas[ii]; assim, não há catarse na peça, e aparentemente tudo termina em vazio e caos. Os ditos conceitos são indicadores de uma atitude pós-epistemológica face à filosofia, em que a disposição, a atitude, são apriorísticas até em relação às pré-condições kantianas para o conhecimento. E esta é uma perspectiva sem dúvida profunda, que acompanha escolas filosóficas que procuram uma saída do muro epistemológico em que as deixou Wittgenstein e afins.

Mas o silêncio de Cordelia pode ser lido de uma maneira mais simples, não contradizendo qualquer das anteriores leituras propostas, como o silêncio de alguém que tem um problema fundamental o dizer e a sua diferença com o não dizer. Essa recusa em falar é o momento inaugural da peça e, como todo o grande facto literário, não se esgota em leituras mas antes cria explicações – e Shakespeare é, como sabemos, mestre na criação desses artifícios. Podemos pensar assim que o principal problema da filha mais nova do rei é com a palavra em si mesma, com a materialização do signo, e com as consequências que isso tem para a sua consciência do mundo. Ela poderia falar, sente-se quase pronta para fazê-lo, mas não consegue. Qual é a diferença, para ela, entre o silêncio e a palavra? O que significa falar, o que implica, que coisas isso faz aparecer, e o que tem de irreversível? O que acontece quando se faz esse contrato verbal entre a consciência e o mundo? Há algo na realidade exterior e na percepção que se altere fundamentalmente quando, através da palavra, dando nome às coisas e as identificamos? Há um sacrifício de uma parte de nós, de liberdade, de autonomia, de presentness, quando falamos? E se sim, podemos trocá-lo por outro sacrifício menos duro? Existe alternativa?

Na tradição ocidental greco-romana e judaico-cristã, a palavra é típica e validamente vista como uma conquista apolínea da natureza; se, à partida, seria natural imaginar tal poder de individuação como uma espécie de presente dos deuses, semelhante ao fogo de Prometeu, na verdade a maior parte dos mitos da criação mantêm um estranho silêncio quanto às origens da faculdade verbal – como se fosse, de algum modo, um mecanismo aprioristíco, que não acompanha a criação mas do qual esta está dependente. Tal como o fogo, a linguagem é fundamental para o domínio do mundo; e, também, tal como o fogo, o seu uso implica uma significativa transformação da matéria. Enquanto que a transformação substancial que o fogo realiza consome o objecto e transporta-o para um mundo que, de acordo com a química, é ainda material, a transformação operada pela palavra é mais profunda e puxa o objecto para o reino platónico das ideias. Ao dizermos um objecto, tudo é já diferente da aparição existente desse objecto perante os sentidos, e é assim já aquilo a que chamamos de ficção; isso, teoricamente, é o que nos distinguiria de um pré-linguístico homem das cavernas. Mas tal entidade, apesar de tudo, parece ser absolutamente mítica: toda a antropologia e a filosofia nos indicam que quando há homem, há linguagem – e há civilização, há ética, e até mesmo história, de certa forma. A nossa relação com o signo verbal, porém, parece sempre envolver uma mágoa, uma distância entre o signo e uma suposta coisa, um mundo feito de palavras que nos parece ser ausente e perante o qual pouco sabemos fazer de concreto, como se não estivéssemos preparados ou capazes para ele. Por vezes, navegando na ambiguidade desse mundo, a ficção parece funcionar autonomamente, longe dos seus referentes concretos, fabricando a sua própria razão. Talvez assim o velho Lear quisesse substituir o seu medo, a sua impotência perante a corrosão do seu poder terreno, ameaçado pela hora da morte, por essa ficção do mundo verbal, que, ao funcionar por autogenia, cria signos perenes em que já não é o sujeito volitivo a comandar directamente, nem é inteiramente o sujeito carnal que perante eles existe, evitando assim o acknowledgement na transparência a que o amor o obrigaria, o que culminaria assim num desamparo.[iii] Talvez quisesse trocar a sua mortalidade pelo formalismo da linguagem em que são os signos, as atribuições de significado, tais como as divisões de propriedade nas partilhas da herança, que parecem comandar.

Assim, o rei pretenderia um comércio perverso: trocar presentness por palavras, trocar realidade e acknowledgement por ficção. Mas Cordelia mostrar-se-à incapaz desse jogo, para si dúbio, num mundo onde existe uma coisa que é e outra, diferente, que se diz. Urge aqui perguntar se não é este comércio aquilo que fazemos sempre com a linguagem, e se, sendo assim, Cordelia se está a recusar a algo que é costumeiro fazer-se – e assim a sua recusa do pedido do pai não diferiria em espécie mas apenas em grau de outra qualquer vocalização. Não sacrificamos sempre algo da impressão original, ou mesmo até da sua vida mental enquanto conceito, quando usamos a linguagem, que é imanentemente generalizadora, tendencialmente metafórica em todos os seus processos, e por, definição, abstracta, para construir um mundo outro? É nesse mundo verbal que, aparentemente, reconhecemo-nos, ou fingimos reconhecer, através do dispositivo da ficção, que tanto serve para nos afastarmos do caldo sensitivo em que identificamos, com devidas barreiras, o objecto-em-si, como também para nos aproximarmos de um mundo convencional em que chegamos mesmo a ter um nome próprio, e em que através dele, submissos, escravos do “rei das línguas”, nos encontramos com o outro, submetidos a uma convenção mútua. Importa também perguntar, tentando acompanhar a proposta que temos para o pensamento de Cordelia, para quem, então, dizemos as palavras? Terá ela razão ao recusar uma demonstração pública de amor, e apelar à sua intimidade emocional, extra-verbal, com o rei? Ou não são todas as palavras, não é todo o signo linguístico uma evocação da intimidade conceptual destinada ao espaço público, e não é, assim, toda a palavra essencialmente pornográfica, obscena, nascida como rito de comum acordo? Ou seja, a palavra nunca seria, na verdade, absolutamente íntima, mas é a única forma que temos de fazer coabitar intimidade com outro.

Cordelia parece recusar-se a transportar para o mundo da palavra aquilo que não pode ser dito, assemelhando-se a uma posição mística e/ou wittgensteiniana. Mas, para ela, não se trata apenas de achar que o amor não é verbalizável, pois pode dar-se o caso de nada ser verbalizável em absoluto mas mesmo assim o verbo conter uma funcionalidade pragmática, um utilitarismo social, possibilitando movimentos conceptuais que não pretendem absorver objectos da percepção mas simplesmente obterem resultados práticos. Mas pode também tratar-se de mais do que isso, sintoma de um problema maior: sacrificar o presente e o acknowledgement num estremecer de signos que perturba o contínuo do tempo e do espaço, ensaiando assim a separação que a ficção realiza, a negação da presentness, e submetendo as leis do mundo físico à significação do verbo. A fobia de Cordelia assemelhar-se-á ao cepticismo de Wittgenstein, para quem a possibilidade da linguagem objectivar coisas inaugura perfeitas confusões, podendo nomear objectos não existentes, criando problemas irresolúveis e um conjunto de equívocos a que chamamos filosofia. Além disso, para este pensador de ruptura, a linguagem é substancialmente pública e não privada, pelo menos na fase mais tardia das Investigações Filosóficas.[iv] O nome próprio de qualquer pessoa, de Cordelia ou de Lear, destina-se a um acknowledgement que não é inerentemente pessoal e íntimo, e que força o sujeito a sair do seu presente e a entrar na sua substituição por uma estrutura linguística onde a distância entre o objecto e o nome é avassaladora. Para a filha do rei, isto é insuportável, e é o contrário do sujeito que existe linguisticamente de forma natural, e ama, ou faz o que quer que seja, com quer que seja, em silêncio, numa intimidade e num existência puramente emocional que Cordelia, e o espírito feminino, naturalmente acarinham. Wittgenstein, nessa sua fase mais tardia, não via primeiramente a linguagem como denotando irrealidades mas como conjugação de usos e funções; e é precisamente isto que Lear pretende nesse momento inaugural da tragédia, usando assim Cordelia como uma peça no seu comércio de legitimação formal, impedindo-o ao confronto com o amor, cuja força o obrigaria à transparência e ao acknowledgement da mortalidade e da pobreza. Para um filósofo da linguagem comum, sucessor do Wittgenstein das Investigações, Lear será um homem normal, que, apesar de aparentemente pedir uma palavra que defina algo indizível, ou seja, que nada diga mas apenas sirva, está consciente disso, da funcionalidade da linguagem e do equívoco que o uso comum das palavras transporta para o uso incomum; mas sabe, porém, que é sempre assim, e aceita o formalismo, a mistificação e a ficção do rito, mesmo que sirva para justificar uma covardia sua. Cordelia tem aqui um papel muito diferente do rei: parece uma criança equivocada, julgando que a funcionalidade de uma demonstração verbal de afecto que afasta o mundo do presente e do reconhecimento, dissolvendo-o no mundo das ideias, é de algum modo moralmente censurável, quando, na verdade, todas as verbalizações envolvem a construção de uma distância que faz decrescer a intimidade. O seu coração feminino parece não suportar isto; não significa isto que renegue em absoluto o verbo e distância que este cria, mas alimenta-se desse pathos com uma fome muito questionável.

O verbo que Cordelia recusa falar é antepassado da razão, o logos grego. Ao ser, ou fingir ser, naquele momento, absolutamente presente, sensacionista, Cordelia antagoniza-se com a perenidade da estrutura verbal, que transgride o tempo e o espaço comuns. Se a linguagem é um instrumento de comunicação do mundo, que aproxima, ao mesmo tempo também participa na sua transcendência: a palavra faz-nos chegar ao outro de uma maneira em que já não somos nós mas um nosso simulacro – e encontramos algumas notas disto no pensamento de Santo Agostinho. O logos é uma construção ficcional que é transcendente, cumulativa, social, civilizacional – interrompendo a presentness. Cordelia recusa esta abstracção, resumindo-se a ser uma criatura sensitiva, filha do presente e das impressões sensoriais. E isso tanto a empequena como engrandece.

Aliás, a linguagem nunca é absolutamente presente, já que carrega sempre consigo a história de si própria. Não existem palavras virgens: elas são a absoluta corporização do seu uso. A sensibilidade de Cordelia arrepia-se com esta impessoalidade, chocada com a obrigação de ter de falar o amor com palavras que não são suas mas são sempre dos outros, como se fossem dinheiro; não são as suas palavras, pois não se inventam palavras e muito menos palavras exactas. O que lhe é pedido é que troque a presentness do seu amor por uma espécie de moeda do pensamento, mas ela não suporta esse carácter de constante transferência, a metáfora como princípio omnipresente da linguagem[v], em que se recusa perder; perder-se seria transformar o amor em comércio intelectual, seria o risco de transformar a impressão sensitiva que possui numa cadeia associativa, ligada a outras formas do mundo e da sua matéria mental, que arrisca a dissolução: aí, o seu amor poderia perder-se, desaparecer, tal como num negócio em que nem sempre todos saem a ganhar. Suas irmãs agem de modo diferente, menos contido: os seus orgulhos, mais sólidos, permitem fingir tão completamente, emitir alegremente as metáforas solicitadas pelo rei e jogando o jogo que lhes é pedido. Mas o mundo de afecto em que vive Cordelia é pré-verbal, onde não existe palavra que possa realmente contratualizar verdades comuns: o seu afecto é de puro pensamento – ou até mesmo menos do que isso – não corruptível pelos comércios da linguagem, e perante o qual nenhuma linguagem se compara. Deste modo, a filha mais nova e o velho são unidos por uma semelhança improvável: também ela, tal como o pai, pretende esconder o seu amor do mundo; também ela se recusa à evidência possível que a linguagem pudesse dar, evitando um acknowledgement em que não se veria exactamente reflectida – como nunca ninguém se vê. Assim, ela na verdade esconde não apenas parte mas a totalidade do seu amor porque esconde a sua única forma comunicável, negando assim a sua existência excepto para si própria, numa espécie de solipsismo pré-verbal. É no seu silêncio que ela ama sozinha, escondida, sem que os olhos do mundo recebam as formas duplicadas e imitadas da linguagem. Essa é a sua prisão, tal como a prisão física em que Lear, no final, vai encontrar a possibilidade do acknowledgement, por não ser visto pelo mundo.

O trabalho que a imagem literária pede ao leitor é semelhante ao trabalho que Lear pretende ver exibido pelas filhas para distrair o seu medo, evitando o acknowledgement e a transparência que Cordelia oferece com o silêncio. Lear quer a ficção do discurso, o jogo dos signos, palavras que fixam um contrato e que, inscritas desse modo, no ar e na memória, são duradouras como a propriedade que oferece em troca do verbo. O medo da mortalidade e do silêncio fazem-no exigir a palavra como um simulacro do eterno; medo do amor, do acknowledgement, de aparecer tal como é. Usa assim a propriedade como um suborno para obter uma demonstração pública de amor, à qual Cordelia se recusa ou para a qual se mostra incapaz. Lear pretende a convenção e a ficção, transformando-o em imitação da eternidade, sobrepondo-se à perecibilidade do amor sem palavras, mortal, inseguro. O rei, no entanto, sabe que é apenas um simulacro, e as únicas eternidades  palpáveis que tem ao alcance são duas em que não se reconhece e que rejeita: as do presente onde se expor e a da morte onde desaparecer. Rejeitando as duas, Lear pretende afogar-se em ficções faladas, primeiro; e, mais tarde, o desaparecimento é feito enquanto naufraga na loucura, à chuva.

O acknowledgement cavelliano é feito de transparência, contrariamente à palavra que confunde, turva, e sedimenta, substituindo um presente límpido e talvez impossível por imitações de eternidade e coagulações de memória. A palavra impossibilita a presentness, sendo o alfabeto mais natural da consciência, que funciona como uma espécie de dupla imagem do sujeito; e tal como para Wittgenstein o objectivo da filosofia é fazer desaparecer a filosofia, ou como para o céptico o mundo desaparece quando o forçamos ao presente[vi] – ou seja, usamos a filosofia para esforços especulativos que ultrapassam aquilo de que ela é capaz – para Cordelia a palavra significará a morte do seu amor, enquanto que para Lear significa a sua revelação. Mas o medo que os une é semelhante: ambos temem a crua luz do mundo, intermediada pela palavra exterior à experiência, impossibilitando o acknowledgement, quebrando a presentness. Assim, a linguagem, repositório do conhecimento, interrompe o mundo,[vii] permitindo-nos conhecê-lo mas, ao mesmo tempo, já não o reconhecendo – o que, para Cavell, o filósofo pós-epistemológico, é sintoma da nossa relação com o mundo ser mais um assunto de proximidade do que de conhecimento. Identificamo-lo, tornamo-lo nosso, submetido aos nossos nomes e usos, e já não alheio e de potencial infinito; assim, perdemo-lo, num equilíbrio entre a eventual autonomia do signo que usamos como intermediário e a nossa apropriação que o identifica, transportando-o para longe do material e erguendo-o como conceito interpessoal, imortalizando-o. Assim, tal como uma emoção tão totalizante como o amor é desaprendida,[viii] encolhida e filtrada para adequar-se a compromissos, individualizações, também a palavra reduz o mundo à impalpabilidade do conceito, do significado, circunscrevendo-o numa forma equilibrista entre uma teia de relações com outros – definindo-se por oposições – e a sua tendência universalista – em que todos os significados se acolhem em potência. Assim, aprendemos a não amar tal como aprendemos a falar, aceitando a proximidade possível – proximidade essa que começa por uma enorme distância.

Assim, o silêncio de Cordelia é fundamentalmente a recusa de jogar o jogo da palavra e da ficção. Ela receia transformar impulsos mentais em representação, em signo, fugindo assim à nossa pessoalidade e ao nosso controle, ou melhor, à nossa proximidade: mesmo que tais impulsos não sejam dominados pela razão, são mesmo assim nossos. Se a linguagem é convenção, uma barreira que trava o mítico acknowledgement cavelliano, que vida, no entanto, teríamos sem ela? A palavra, para Cordelia, assemelha-se à palavra que constitui o texto da tragédia e que, representada no palco, nos acompanha: o seu tempo coincide com o nosso, mas existimos separados em mundos diferentes. De igual modo, Cordelia mantém-se cerrada no seu amor, e não pretende sair fora dele para o mundo do discurso, uma espécie de terceira via construída sobre o seu mundo interior e exterior. O edifício de conhecimento daí sucedâneo é, para Cordelia, o término da vida e do seu afecto. Ela parece ser precursora de uma modernidade onde a dimensão salvífica das palavras e dos actos verbais já não faz o mesmo sentido e se dissolve no abismo do indivíduo e do privado: a palavra já não representa um logos capaz do acknowledgement na coisa comum, no outro, mas antes um relativismo niilista, dissolvido em razões privadas e solilóquio freudianos.[ix]

A postura da filha do rei não deixa de ser intensamente feminina, um apego à natureza selvagem que não admite outro amor que não o verdadeiro, rejeitando a falsa moeda dos símbolos e preferindo o lume brando da vida, mesmo que tão indisciplinada e tão crua; a frieza mortal da carne é a mais quente expressão de si mesma, mais do que as palavras. Com todos os heróis da tragédia, e como Lear, ela está predestinada e simultaneamente possui um arbítrio próprio: Cordelia vive e morre num presente sem convenções e formalismos da linguagem, e é aí que a sua inacção inicial, ao recusar-se a responder ao rei, é mais acção do que a das irmãs, tal como em Hamlet a inacção é o principal veículo agencial do protagonista. Dado que que a palavra tem necessariamente um autor e um cenário onde é proferida,[x] é eminentemente ritualística, e logo perigosa, motivada: essa função assusta-a. Cordelia prefere uma mortalidade sem ídolos, sem iconificação do imaterial: no seu modelo, o comércio proposto por Lear não funciona.

Mas nada há de anormal no que Lear exige. Ele pede-lhe apenas que fale. E Cordelia, usando a desculpa do orgulho, ou de uma infantil revolta contra a hipocrisia, ou assaltada por uma pesada e íntima consciência da impossibilidade da palavra poder realmente ser, em vez de apenas tornar-se ser, vai assim recusar-se ao jogo. Curiosamente, ela não consegue, com esse acto, ser menos pública, menos social, mais privada, mas antes o oposto: as consequências de não falar tornar-se-ão muito mais públicas e dramáticas do que se tivesse falado. Para Cordelia, o pai está a pedir-lhe que minta; porém, talvez no pensamento de Lear toda a palavra seja mentira e sacrifício, tentativa de vida eterna erguida contra a hora da morte e do desconhecido. Equivocada, Cordelia pensa que lhe está a ser pedido para mentir o amor que na verdade sente, ao contrário do amor que julga que as irmãs não sentem. É concebível que Goneril e Regan possam amar também, mas o que conseguem fazer, e que Cordelia não consegue, é participar no jogo da forma, pagar o preço que Lear pede. Já que não o consegue, e sabe-se incapaz disso, Cordelia sacrifica-se. Vê-se assim encurralada perante um pedido para si irrealizável, não se julgando capaz de fingir aquilo que se é. Assim, a única diferença entre ela e as irmãs é que a mentira da sua palavra iria cobrir e poluir um amor que sente como verdadeiro, e a mentira das irmãs não cobriria amor nenhum.

Cordelia tanto escolhe o silencio como está predestinada a não falar: tal como na ideia kantiana da vida dupla do sujeito cognitivo, ela vive em dois mundos simultaneamente, inteiramente livre e inteiramente predestinada.[xi] O mesmo peso vive em Lear, de quem Cordelia é reflexo: o amor deste é de igual medida ao de Cordelia, mas só encontra réplica no espaço privado, na prisão,[xii] onde, longe do mundo, pode arriscar ser visto. Nem Lear nem Cordelia querem verdadeiramente falar, ou não se sentem merecedores do problema que isso levantaria. Lear, evitando o acknowledgement, fugindo do amor mortal, só no esconderijo da prisão profere algo da palavra que o revela e expõe. Ele, na verdade, ama, embora fuja disso e pretenda substituir esse preço e essa vulnerabilidade pelas palavras dos outros e por comércio de propriedades. Cordelia não quer falar porque se equivoca, julga não conseguir fingir aquilo que na verdade é, mas a sua escolha , se fosse coerente, implicaria um silêncio permanente, se levasse até ao fim a teimosia da sua pureza quase extra-humana. Lear, assim, usa a palavra para desconhecer o mundo, negando-se ao acknowledgement, à exposição e à mortalidade. Cordelia recusa-se a usá-la por temer que o conhecimento signifique a morte: ao traduzir o seu amor para palavras, ele será já outro, ou mesmo desaparecerá.


[i] “Lear is reborn, but into his old self. That is no longer just tragic, it suggests that tragedy itself has become ineffective, out-worn, because now even death does not overcome our difference.”

[ii] “…what was wrong, what became insufficient to explain our lives, was to read this chain as if its first link lay in the past, and hence as if the present were the scene of its ineluctable effects, in the face of which we must Learn suffering. With Kant (because with Luther) and then Hegel and Nietzsche, not to say Freud, we became responsible for the meaning of the suffering itself, indeed for the very fact that the world is to be comprehended under the rule of causation at all. What has become inevitable is the fact of endless causation itself, together with the fact of incessant freedom. And what has become the tragic fact is that we cannot or will not tell which is which.”

[iii] “Mortality, the hand without rings of power on it, cannot be lovable. He feels unworthy of love when the reality of lost power comes over him. That is what his plan was to have avoided by exchanging his fortune for his love at one swap. He cannot bear love when he has no reason to be loved, perhaps because of the helplessness, the passiveness which that implies, which some take for impotence.”

[iv] Wittgenstein, Ludwig, Philosophical Investigations, John Wiley and Sons Ltd, 2016

[v] “That metaphor is the omnipresent principle of language can be shown by mere observation. We cannot get through three sentences of ordinary discourse without it.” Richards, I.A., The Philosophy of Language, 1936

[vi] “He forgoes the world for just the reason that the world is important, that it is the scene and stage of connection with the present: he finds that it vanishes exactly with the effort to make it present.”

[vii] “We will hardly say that it was because of the development of the new science and the establishing of epistemology as the monitor of philosophical inquiry that Shakespeare’s mode of tragedy disappeared. But it may be that the loss of presentness-which is what the disappearance of that mode of tragedy means-is what works us into the idea that we can save our lives by knowing them. This seems to be the message both of the new epistemology and of Shakespeare’s tragedy themselves.”

[viii] “Avoidance of love is always, or always begins as, an avoidance of a particular kind of love: men do not just naturally not love, they Learn not to. And our lives begin by having to accept under the name of love whatever closeness is offered, and by then having to forgo its object. And the avoidance of a particular love, or the acceptance of it, will spread to every other; every love, in acceptance or rejection, is mirrored in every other.”

[ix] “For a first person account is, after all, a confession; and the man who has something to confess has something to conceal. And the man who has the word “I” at his disposal has the quickest device for concealing himself.”

[x] “It is not, therefore, that I mean something other than those words would ordinarily mean, but rather that what they mean, and whether they mean anything, depends solely upon whether I am using them so as to make my meaning. “

[xi] “…that these figures are radically and continuously free, operating under their own power, at every moment choosing their destruction. Kant tells us that man lives in two worlds, in one of which he is free and in the other determined. It is as if in a theater these two worlds are faced off against one another, in their intimacy and their mutual inaccessibility. The audience is free-of the circumstance and passion of the characters, but that freedom cannot reach the arena in which it could become effective. The actors are determined-not because their words and actions are dictated and their future sealed, but because, if the dramatist has really peopled a world, his characters are exercising all the freedom at their command, and specifically failing to.“

[xii] “Now, at the end, Lear returns her pledge with his lover’s song, his invitation to voyage (“. . . so we’ll live, and pray, and sing, and tell old tales, and laugh …”). The fantasy of this speech is as full of detail as a day dream, and it is cLearly a happy dream for Lear. He has found at the end a way to have what he has wanted from the beginning. His tone is not: we will love even though we are in prison; but: because we are hidden together we can love. He has come to accept his love, not by making room in the world for it, but by denying its relevance to the world. He does not renounce the world in going to prison, but fiees from it, to earthly pleasure.”

Bibliografia:

Cavell, Stanley, Avoidance of Love, Must we mean what we say?, Cambridge University Press, 2002

Wellek, René, Image, Metaphor, Symbol, Myth , Rene Wellek, Theory of Literature, pp 190-218

Schovlovsky, Viktor, Art as device, Theory of Prose, Dalkey Archive Press, 1983

Cavell, Stanley, Aesthetic Problems of Modern Philosophy, Must we mean what we say?, Cambridge University Press, 2002

Stambovsky, Phillip, The Depictive Image: Metaphor and Literary Experience, University of Massachusetts Press, 1983

Todas as citações apresentadas são de Cavell, Stanley, Avoidance of Love, Must we mean what we say?, Cambridge University Press, 2002, excepto quando indicado.