No início de década de 90, Gilles Deleuze, escrevendo para o L’Autre Journal, avançou as bases para a interpretação de um novo momento organizacional. Esta interpretação brotou, em termos analíticos, do trabalho desenvolvido (ao longo de todo o seu projeto filosófico) por Michel Foucault – a sociedade da disciplina. Para Foucault, “disciplina” é um mecanismo de poder que procura regular o pensamento e o comportamento humano a partir de meios subtis, ou seja, a disciplina envolve sempre um conjunto de relações de poder que são orientadas, mas não necessariamente impostas coercivamente. O papel primordial do poder disciplinar constitui aquilo que Foucault apelida de “sociedade da disciplina”. Todd May (2006), na sua reconstrução da obra foucaultiana, propõe uma definição clara do funcionamento desta sociedade:
Disciplina, enquanto termo foucaultiano, é mais específica do que um simples mecanismo de controlo comportamental de terceiros. Poderá ser definida como um projeto acerca da otimização do corpo, tornando o corpo numa máquina otimamente regrada através de uma desconstrução dos seus movimentos nos seus mais ínfimos componentes, seguido de uma reconstrução dos mesmos como um todo altamente eficiente. No entanto, este projeto não se cinge somente a indivíduos. Afeta, também, as suas relações. A disciplina assegura que o espaço é devidamente compartimentado, permitindo que os indivíduos se relacionem entre si de uma forma otimizada e eficiente. Deve, ainda, ser assegurada uma coordenação temporal adequada entre atividades, assim como dentro de cada atividade. É um processo que pode ser aplicado tanto a corpos, como à interação entre os mesmos.
Deleuze, ao longo do seu ensaio, afirma construir o seu projeto com base nas caraterizações avançadas por Foucault, procurando abordar, entre outros temas, a ascensão das forças do capital, as consequências da Revolução Industrial e a permanente evolução tecnológica. A simbiose entre o modo de produção capitalista e a Revolução Industrial permitiu um acelerado crescimento económico, assim como a criação de espaços com o propósito único da criação de bens e serviços por parte de uma classe trabalhadora assalariada. Esta nova classe trabalhadora surge como consequência direta de duas alterações significativas: 1) Urbanização da população, que abandonou o meio rural, pautado por um modo de produção antiquado e limitado, claramente incompatível com as necessidades produtivas cada vez maiores de uma população que crescia quer quantitativamente, quer a nível das suas necessidades individuais; 2) A importação de mão-de-obra e a divisão internacional do trabalho, que requereu uma disseminação mundial e total da organização disciplinar do corpo, precisamente para fazer face a uma tendência de crescimento produtivo que, teoricamente, seria ad aeternum. Esta época, para Foucault, foi o berço da sociedade da disciplina moderna, em que as instituições disciplinadoras e as formas de exerção/manipulação do poder trabalharam em conjunto para permear agentes, grupos e governos.
O modelo de sociedade de controlo tenta ultrapassar a necessidade de um espaço disciplinador para a moldagem dos corpos e das relações de poder. A sociedade contemporânea, para Deleuze, é caraterizada por uma nova forma de violência e manipulação de poder, acompanhada por uma reestruturação das dinâmicas operacionais do capital. Neste ensaio, Deleuze tenta prever e explicar as consequências desta transição. Sumariamente, Deleuze constrói uma visão que coloca a sociedade da disciplina como uma composição de recintos e moldes, essencialmente criando uma sociedade composta por inúmeras instituições e espaços claramente definidos, com os quais os membros integrantes da mesma interagem, sendo os mesmos moldados por esse espaço, passando, posteriormente, a frequentar outros espaços que também contribuem para a moldagem do sujeito. Por contraste, numa sociedade de controlo, existem módulos atomizados entre si, em que a modelagem e a exerção de poder são efetuadas de forma difusa, criando uma ilusão de liberdade e agência para o sujeito, fomentada pela ausência de uma plataforma central e visível de exerção de poder – disciplina transforma-se, desta forma, em controlo.
Embora Deleuze afirme que que a sua construção de uma sociedade de controlo deriva diretamente das construções disciplinárias do projeto foucaultiano (Deleuze, 1992, p.1), não existe nenhuma clara base analítica na obra foucaultiana que aborde diretamente esta transição. Contudo, esta afirmação poderá ser entendida como uma tentativa de clarificar aquilo que o próprio consideraria deficiências na aplicação do projeto foucaltiano a uma sociedade que poderá não corresponder àquela sobre a qual Foucault escreveu. Para Deleuze (1992, p.1; p. 4), as instituições que mais contribuíram para a criação da sociedade disciplinante – a escola, a família, a prisão, o hospital, a fábrica – encontram-se numa crise profunda de legitimação, “(…) isto é, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação”. As fundações destas instituições encontram-se num ponto de rutura de tal forma significativo que as lógicas disciplinárias subjacentes se tornaram ineficientes na constituição do sujeito. Consequentemente, a moldagem do sujeito torna-se diluída e fluída em todas as camadas do processo social: “Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas o controlo é uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto para a outro.” (Deleuze, p.2). A compartimentação espacial da instituição disciplinante transmuta-se para um oceano de controlo indireto, subjacente e permanente.
Assumindo um colapso das fundações das instituições disciplinárias, então a distinção entre o intrassocial e o extrassocial dilui-se. Esta diluição é acompanhada por uma mudança holística na forma como o poder delineia o espaço durante a transição da modernidade (disciplinadora) para a pós-modernidade (controladora). Num plano macro como, por exemplo, o da soberania do Estado-Nação, o poder é exercido sobre um território definido (seja ele legitimamente reconhecido ou não), que se encontra em constante contato com o exterior desse território (outros Estados-Nação). Para os teóricos sociais modernos como Rosseau e Hobbes, a ordem civil encontra-se limitada a um espaço interior, que contrasta com o espaço exterior da ordem natural (o estado de natureza). Num plano cultural, a análise antropológica de sociedades ditas “primitivas” normalmente corresponde a um Outro que define as barreiras da sociedade civil a partir de uma relação dialética (Hardt, 1998). Neste contexto, o processo de “modernização” de qualquer sociedade está intimamente conectado a uma interiorização do Outro, isto é, da cimentação da amalgamação das caraterísticas do estado da natureza num estado civil reconhecido pelos seus agentes constituintes.
Contudo, no mundo pós-moderno, a dialética entre o interior e o exterior, entre a ordem civil e a ordem natural, tornou-se praticamente inexistente. Os fenómenos e as forças aparentam uma artificialidade e hibridade irreconhecíveis para os modernos, transmutando-se para um jogo de relações, graus e intensidades. O plano exterior e extrassocial também declinou naquilo que é a relação do espaço público e do espaço privado. Os espaços públicos da sociedade moderna – que, para a teoria política liberal, constituem o epicentro de análise – encontram-se em declínio, sendo a sua dissipação expectável durante o desenvolvimento do mundo pós-moderno. A tradição liberal coloca o sujeito como uma entidade que diferencia entre o espaço privado (a sua casa, por exemplo) e o espaço público (a escola, o local de trabalho, o hospital, etc.). O exterior (o espaço público) é o locus da política por excelência, onde o sujeito renuncia à sua esfera privada e é exposto a terceiros, com a finalidade de ser reconhecido como um agente participante no sistema sociopolítico. Contudo, na pós-modernidade, o espaço público torna-se cada vez mais num espaço privatizável. A paisagem urbana, atualmente, atravessa uma transposição da praça comum e do encontro público para um espaço fechado recheado de autoestradas, condomínios e centros comerciais. Existe uma tendência crescente para que a arquitetura e planeamento urbano das grandes cidades seja excludente ao acesso público generalizado e para que cada interação (fora de um espaço compartimentado) entre os seus agentes constituintes seja marcada por uma quase mera aleatoriedade temporalmente irregular, criando, por sua vez, uma primazia por espaços interiores e isolados que moldam as possibilidades de interação. O espaço público foi paulatinamente privatizado, atingindo, na pós-modernidade, um ponto de rutura que sugere que qualquer análise que tente compreender a organização da sociedade utilizando a dialética espaço público/espaço privado estará condenada ao fracasso. Se o espaço público da política liberal moderna tem vindo a desaparecer, então o teor politizado do mundo moderno desaparece com ele.
Para autores como Guy Debord (1994), a sociedade pós-moderna é uma sociedade de espetáculo que, atualmente, tem lugar num espaço virtual ou, mais precisamente, dentro de um não-espaço politicamente inerte. As imagens, instituições e estruturas que unem o tecido social são, quando aplicados ao meio virtual pós-moderno, uma projeção artificial e difusa, que esbate as barreiras entre o interior e o exterior do sujeito, o natural e o social, o privado e o público. A noção liberal de “espaço público” – o espaço exterior onde o sujeito age em relação com terceiros – foi simultaneamente universalizado (a partir de uma vigilância panóptica de normas, regulamentos, leis, etc.) e sublimado nos espaços virtuais do espetáculo. O fim do espaço público corresponde, portanto, ao fim da conceção liberal de espaço sociopolítico.
Numa perspetiva macro, i.e., no âmbito da ordem mundial contemporânea, o espaço exterior também desapareceu. Quando autores liberais como Francis Fukuyama afirmam que o momento histórico contemporâneo é marcado pelo fim da história, o argumento baseia-se na proposta de que a era dos grandes conflitos históricos, marcados por espaços/blocos claramente definidos, chegou ao seu fim. Consequentemente, o conceito de “poder soberano” esvazia-se, visto que não existe uma hostilização para com um Outro visível, mas sim uma ramificação de inúmeros conflitos e confrontos, que caminham para a (re)construção de uma ordem mundial que é simultaneamente homogénea e auto-replicável. Não está aqui em causa se esta ordem mundial é ou não a de democracia liberal ocidental, nem sequer se, de facto, existe uma homogeneização em favor de um determinado pilar civilizacional – algo que foi, é e continuará a ser altamente disputado dentro do espaço de debate académico. Trata-se, acima de tudo, da admissão de que a época do imperialismo, inter-imperialismo e anti-imperialismo findou, tendo em conta que estes fenómenos, em si mesmos, já foram desconstruídos numa multitude de micro-fenómenos que agem de forma independente do fenómeno do qual originaram. Todos os conflitos são, neste momento, simultaneamente locais e globais: uma guerra civil encontrará sempre agentes extra-estatais nos seus beligerantes, uma ação policial sobre manifestantes terá ramificações mundiais e os atores que reagem a estes acontecimentos englobam outros atores, que englobam desde o cidadão comum a organizações internacionais. Estes fenómenos deixaram de ser o centro da modernidade; manifestam-se. Somente. enquanto ramificações de uma origem tendencialmente indefinida. Em contraste com a ordem mundial da Guerra Fria, em que os conflitos no espaço externo eram marcados por dois blocos opositores, e em que os conflitos internos respeitavam a mesma índole (todos os membros opositores às ações de cada bloco eram vistos como pertencentes ao outro bloco), a pós-modernidade dilui todas as oposições. Era este Outro que garantia coerência e definição ao mundo moderno e aos seus conflitos. As binariedades que definiram a época moderna encontram-se, então, mais indistinguíveis que nunca. O Outro que delimitava o espaço do sujeito (e do soberano) tornou-se fraturado e indistinto. O momento atual é caraterizado por um Outro que não é visível e em que os opositores internos e externos permeiam todas as camadas da existência sociopolítica. O fim da modernidade deu lugar a uma proliferação de inúmeros epicentros de crises indefinidas dentro de uma sociedade de controlo, que se limita a definir os espaços localizados e as normas/termos contingentes aos mesmos.
Por fim, o triunfo do capitalismo de estado tardio é a principal manifestação do momento pós-moderno. O capitalismo de mercado, derivando das suas caraterísticas imanentes, tem como principal prorrogativa o esbatimento do espaço interno e o externo. Sujeitos que são excluídos da lógica global do mercado são ativamente perniciosos para o bom funcionamento do mercado, que prospera quando o Outro é transformado num “Eu”; lucros são gerados somente quando existe contacto, intercâmbio e comércio. A concretização de um mercado verdadeiramente global é o zénite desta tendência, pelo que, na sua forma ideal, não existe nenhum Outro: o Mundo inteiro deve prestar vassalagem às lógicas do capital. Da mesma forma que Foucault reconhecia o panóptico como o diagrama do poder moderno e da sociedade da disciplina, o mercado global serve como o diagrama para as relações entre poderes soberanos e, simultaneamente, para as dinâmicas internas da sociedade de controlo. A pós-modernidade representa uma época em que os principais fenómenos carecem de legitimação e identidade pela ausência de um Outro que sirva como um parceiro de dança dialético. O poder (e a sua exerção) carece de um locus – encontra-se em todo o lado, mas, simultaneamente, é também invisível e indivisível.
A progressiva ausência de uma distinção clara entre o plano interior e o plano exterior durante a transição da sociedade moderna para a sociedade pós-moderna acarreta importantes implicações na produção social da subjetividade. Uma das principais teses da teoria social moderna, no respeitante à análise institucional, é de que a subjetividade não é algo imanente ou pré-concebido, mas que é, por outro lado (pelo menos parcialmente), concebida no campo das forças sociais (Hardt, 1998). As subjetividades que interagem no plano social são, em si mesmas, substancialmente criadas pela própria sociedade onde estão inseridas. Neste sentido, estas análises institucionais esvaziaram progressivamente qualquer noção de subjetividade pré-social; a produção da subjetividade encontra-se, desta forma, profundamente enraizada no funcionamento quotidiano das principais instituições sociais da vida do sujeito, tais como a família, a fábrica, a escola ou a prisão.
Importa ressaltar dois vitais aspetos da produção de subjetividade. Primeiramente, a subjetividade não pode ser entendida como algo fixo ou assumido. É um processo de constante geração e reprodução, que poderá, inclusive, ser facilmente identificado nos mais aparentemente inócuos aspetos da nossa vida. A relação social entre um estudante e o seu professor, por exemplo, cria uma subjetividade a partir das práticas, rituais e socializações que ocorrem entre os agentes. De uma forma quase reflexiva, o sujeito é constituído e moldado a partir das suas próprias ações. Segundamente, as instituições da modernidade providenciam locais discretos (como a casa, a capela, a sala de aula, etc.) nos quais a subjetividade é produzida. As inúmeras instituições da modernidade devem ser entendidas como um arquipélago de fábricas de subjetividade (uma ideia que Deleuze herda do conceito de “arquipélago carcerário” de Foucault). Ao longo da vida de qualquer membro de uma sociedade moderna, é expectável que o mesmo atravesse, de forma quase sempre linear, cada uma destas instituições (da casa para a escola, da escola para a fábrica/empresa, entre outras), sendo moldado em todas as fases deste processo constitutivo: “O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com as suas leis” (Deleuze, 1992 p.1) Cada instituição tem o seu próprio conjunto de regras, normas e regulamentos, que subjetificam a experiência do sujeito. Não-obstante, o sujeito encontra-se (de forma parcial) protegido dos inputs de outras instituições, i.e., se um indivíduo se encontra na escola, então não estará a ser moldado pela instituição “família” da mesma forma que estaria caso se encontrasse em “regime de exclusividade” para com essa mesma instituição. A separação concreta entre o espaço interior e o espaço exterior é vital para o funcionamento das instituições da modernidade, visto que a delimitação do espaço disciplinante cria um meio estável para a exerção de poder sobre o sujeito.
A transição para a sociedade pós-moderna mantém a criação da subjetividade dentro de um espaço, talvez de forma ainda mais intensa. A construção social de uma realidade torna-se ainda mais acelerada, passando a ser reconhecida como inteiramente artificial. Esta transição torna-se, portanto, não numa oposição dicotómica, mas sim numa aceleração dos processos subjetificantes. A crise das instituições contemporâneas tem, como consequência mediata, a dissipação dos espaços claros de subjetificação, permitindo que esta aconteça em toda a esfera social, em detrimento de somente incidir sobre os espaços onde a disciplina pode ser exercida (a escola, a prisão, entre outros). Consequentemente, o espaço interior torna-se indistinguível do espaço exterior, afetando a forma como certas instituições se legitimam perante o corpus social. A crise do conceito de “família nuclear”, por exemplo, não pode ser entendida como um enfraquecimento da narrativa do patriarcado – pelo contrário, discursos e práticas relativas a “valores tradicionais” encontram-se cada vez mais difundidos pelas esferas sociais do nosso quotidiano. Por outro lado, a crise do sistema prisional – um alvo de contestação ativa por parte de várias parcelas da sociedade – manifestou-se numa nova organização social em que os seus discursos e práticas imanentes se disseminaram, de forma menos visível, para outros campos do nosso quotidiano. A disciplina, torna-se, portanto, num agente constante na vida do sujeito, deixando de estar condicionada a espaços onde é, a priori, expectável que esta seja exercida. O sujeito continua a ser moldado na escola ou na prisão, mas sem a necessidade de se encontrar fisicamente em qualquer um destes espaços. Na sua crise de legitimidade, as instituições disseminam- se, mas não quebram, tornando o seu funcionamento mais extenso e, possivelmente, ainda mais intenso. A sociedade de controlo de Deleuze corresponde, portanto, a uma intensificação e generalização do poder da disciplina, agindo para lá dos seus espaços originários de forma corrompida, mas sempre panopticamente presente para o sujeito.
Bibliografia
Debord, G. (1994), Society of the Spectacle, New York: Zone Books; Deleuze, G. (1992). Postscript on the Societies of Control; The MIT Journal;
Hardt, M. (1998) The Global Society of Control, Gilles Deleuze: A reason to Believe in this World, Wayne State University Press;
May, T. (2006). The Philosophy of Foucault, McGill-Queen’s University Press.