Em consequência das Cortes de Lisboa de 1371, algumas foram as terras que tiveram reclamações a fazer ao Rei, mediante incongruências entre os Capítulos gerais das Cortes e a Legislação específica local, que o Rei logo procurou esclarecer e correger. Lisboa, note-se, acabou por ser uma dessas terras, e as suas reclamações, com as respostas régias, detêm certos aspectos da vida quotidiana que gostaria de elucidar aqui, para o conhecimento geral [Chanc. D. Fernando – fol. 84v-87]. O Concelho enviou um seu Procurador, que se encontrou com o do…
…Rei, para a elucidação de reclamações dos vizinhos do Concelho – o Rei respondeu argumentativamente aos capítulos expostos. O Rei inicia a exortação, recorrendo ao Foral da Cidade, outorgado por D. Afonso Henriques: os mercadores daquela terra tinham opções na questão do tributo – isto é, podiam optar por pagar o soldo por cabeça e anualmente [o nosso imposto convencional atual], ficando isentos de pagar portagem, ou o inverso. O Concelho argumenta que esta é uma prova cabal que ficam, pagando o soldo, escusados de pagar qualquer tipo de portagem, o que o Rei não concorda, pois afirma que a “portagem” mencionada no Foral é ambígua, e não faz menção a produto algum. As restantes argumentações do Rei vão, pois, a essa questão, pois o Concelho elucida a D. Fernando que, aquando da data, os moradores de Lisboa tinham privilégio na importação do pescado seco, nas especiarias, nos couros, mel, azeite, anil, e alguns outros produtos que mencionaremos depois. D. Fernando interpreta uma outra frase do Foral, dizendo que, de facto, existia uma isenção da portagem, mas para: a) os produtos que trouxessem das suas próprias terras para a subsistência; ou b) os produtos que vendessem e comprassem na vila ou no termo [arredores] dela, e complementa com um exemplo: diz que todo o vizinho [morador] de Lisboa que tivesse pão, azeite e figos em Santarém ou outros lugares, e os trouxesse à cidade para alimentar a sua família não deveria pagar portagem; quem os desejasse vender e regatar [vender a baixo custo], que a pagasse. Finda esta exposição argumentando que, se em outros tempos eram escusados de pagar portagem, devia-se à carência de boas Leis que abordassem o assunto. Os mercadores da cidade não costumavam regatar nem comprar mercadorias de fora, mas os mercadores de fora traziam as mercadorias para dentro, e pagavam a portagem que lhes era devida – os mercadores de dentro, que compravam a mercadoria daqueles, pagavam o dízimo do carregamento do produto. Não obstante, parece que haviam chegado por volta da década de 1330, mercadores do Continente [são mencionados os Genoveses], que faziam-se estaleiros e foram atribuídos foros de maior conta, o que levou os mercadores de dentro, que deixaram de ter tanto produto, a sair da muralha e comprar e regatar produtos, vendendo lá dentro a esses mesmos mercadores estrangeiros – lucravam mais, e o Rei ficava sem o seu direito ao tributo. Os Almoxarifes retomaram a cobrar esse justo tributo, e por isso o Concelho reclamou, à qual o Rei dá razão aos seus Oficiais. Diz ele que os moradores sempre pagaram tributo em víveres do pão, do vinho e do pescado, seja para regatar na cidade ou carregar para o exterior, pois são víveres que asseguram o mantimento geral do Povo, e ironiza por que causa haveria o Rei, neste caso, de isentar produtos de maior luxo como aqueles mencionados atrás. Ademais, os regatães [quem regata, quem vende a retalho], bufães, sapateiros e alfaiates, que muitas vezes não se confundiam com Portugueses, e eram Castelhanos, Galegos e outros, não davam tributo ao Rei, e auxiliavam a falência dos mercadores nacionais, e perdia o Rei potencial de enriquecer o Erário Público.
O Rei fala também de incongruências. Fala como existem homens de baixa condição, que eram, até, mouros libertos; ou homens de outras comarcas do Reino, ou homens estrangeiros, que exerciam ofícios vis [de terceira categoria, pobres] mas, por se dizerem vizinhos nas terras de onde vinham, era-lhes alugada casa e tomavam direitos, não só aos Portugueses, mas aos mercadores estrangeiros igualmente, porque não eram vizinhos em Lisboa, logo, não tinham esses privilégios. Iam aos Portos de Almada e Coina, compravam lá mercadorias, vinham para Lisboa dizendo que eram suas e que eram vizinhos, e a Alfândega deixava-lhes passar sem pagar portagem Logo vendiam às Lojas de mercadores estrangeiros, que pagavam mais, e os Portugueses faliam por desprovidos de produtos.
Quanto ao pescado seco, o Rei é assertivo: paga dízima, o pescado que vem de fora de Lisboa. Do pescado, o Rei logo acusa o Concelho, que afirmava ter isenção de portagem nos ditos produtos de luxo, como o ouro fiado, a prata, aljôfar. O Rei argumenta que o tributo imposto a estes produtos não é a portagem, mas a costumagem, onde pagariam os quatro direitos do maravedi [moeda da altura], como sempre fôra o costume entre os Reis de Portugal. O vinho é outra preocupação, porque os Almoxarifes voltaram a cobrar 1 almude e ½ de vinho por cada tonel que viesse de fora do termo ou, caso o vinho trazido não chegasse a 1 tonel, a valia do mesmo aquando da sua venda. O Rei aplica o duplo tratamento Aos homens suspeitos, não certos da quantidade de vinho que traziam, maus pagadores e referteiros [pertinazes, mentirosos], que se penhorasse imediatamente uma parcela do produto que traziam; aos sinceros, que não se tomasse penhora, e logo pagariam o tributo sobre o vinho quando o vendessem. Além disso, haveria outro critério para a tomada de penhores sobre o vinho, nomeadamente quem fosse para o extremo limite do termo de Lisboa, onde haveria o perigo de não voltarem sem o pagamento do tributo – o Rei dá o exemplo da Torre da Negra [não sei onde é] e de Alverca como lugares suspeitos, no extremo do logo, e logo aponta como alguns homens iam a Povos, ou a Vila Franca de Xira, ou a Alenquer [já fora da jurisdição de Lisboa] vender o seu vinho sem pagar tributo – por isso lhes era exigido a penhora. O Concelho de Lisboa ainda aborda a isenção de portagem concedida pelo Rei D. Afonso IV, aos homens de que carregassem o vinho, de fora do termo para a cidade, em odres [recipiente]. Ora, o Rei admite que essa não era escusa para a isenção, pois 1 almude mantinha-se por cobrar a cada moio de vinho – o odre, diz D. Fernando, já não era tão usado; e a isenção foi concedida por conta aos regatães pobres, que iam a Almada no tempo da venda do mosto [sumo de uva], comprar alguns odres de raspa, onde colocavam numa talha, em Lisboa, e vendiam com a modéstia dos preços e lucros que aquele produto acarretaria.
O documento é extenso e, como tal, muito poderia mais dizer-se. Acredito, no entanto, que este intróito é já bastante elucidativo de alguns trocos comportamentais dos Portugueses de Lisboa, no Reinado de D. Fernando.