Reflexão Crítica sobre Cuidados Paliativos Pediátricos

Segundo a Organização Mundial de Saúde, os Cuidados Paliativos Pediátricos (CPP) são os cuidados ativos totais da criança (do corpo, da mente e do espírito), além de oferecerem suporte à família. Estes cuidados iniciam-se no momento do diagnóstico e continuam independentemente de a criança receber ou não tratamento direcionado à doença. Os prestadores de cuidados de saúde devem avaliar e aliviar o sofrimento físico, psicológico e social da criança (WHO Palliative Care for Children, 2023).

A visão dos CPP é assegurar que desde o diagnóstico, todos os utentes em idade pediátrica, incluindo recém nascidos, crianças e jovens, que vivem com uma doença crónica complexa, limitante ou ameaçadora da vida, bem como as suas famílias, recebam cuidados que vão ao encontro das suas necessidades, desejos e preferências, até e após a morte (SPP, 2014).

Estima-se que em Portugal vivam pelo menos 6.000 crianças com necessidades paliativas; destas, cerca de 200 crianças morrem anualmente, quase todas no hospital. Em 2011 apenas 1 em cada 9 morreu em casa (SPP, 2014). Tem-se verificado um aumento na mortalidade pediátrica atribuível a doenças crónicas complexas em vários países. A definição de doença crónica complexa inclui qualquer condição médica que tenha uma duração de pelo menos 12 meses (exceto em caso de morte) e que envolva vários sistemas ou um órgão de forma suficientemente grave, requerendo cuidados pediátricos especializados e previsivelmente algum período de internamento num centro médico terciário (Feudtner C et al., 2000).

A pergunta surpresa que os profissionais devem colocar, neste contexto etário, para determinar se devem referenciar para os CPP, é a seguinte: “Ficaria surpreendido se esta criança não sobrevivesse até os 18 anos?” Se a resposta for não, é provável que estejamos perante uma criança que necessita de CPP (Pereira D. et al., 2023).

Escolhi este tema para a reflexão crítica da Unidade Curricular Seminários, do Mestrado Cuidados Paliativos da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, por se tratar de uma realidade ainda muito pouco desenvolvida na prática no nosso país. A Comissão Nacional de Cuidados Paliativos estabeleceu, em 2023, um documento com os Critérios de Referenciação para Equipas Especializadas de Cuidados Paliativos Pediátricos. Este documento é um contributo significativo para a referenciação atempada da qual estas crianças podem beneficiar. A meu ver, foi um passo muito acertado para melhorar a realidade atual do nosso país.

Em Portugal, à data da elaboração deste documento, as equipas dedicadas a CPP são de base hospitalar (equipas intra-hospitalares de suporte em cuidados paliativos – EIHSCP- pediátricos), embora algumas já prestem diretamente cuidados domiciliários. No entanto, a cobertura a nível nacional das equipas especializadas ainda é escassa, atualmente, atuando sobretudo na zona centro. É importante reconhecer que outras equipas (EIHSCP de adultos, Equipas Comunitárias de Suporte em Cuidados Paliativos e/ou Equipas dos Cuidados de Saúde Primários, nomeadamente as Equipas de Cuidados Continuados Integrados), podem ter capacidade para, em articulação com os serviços pediátricos, prestar cuidados ou colaborar na assistência à população pediátrica (Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, 2023). Portanto, ainda estamos longe de um acesso equitativo aos CPP no nosso país.

Durante a aula foram lidos excertos do livro “Óscar e a Senhora Cor-de-Rosa” e fiquei muito interessada nesta obra. Após a sua leitura, posso dizer que se trata de um hino à vida e ao ser humano. Esta amizade entre uma criança e uma voluntária do hospital, que todos os dias o visita, revela-nos a necessidade de comunicar verdadeiramente. Os pais e a restante equipa que providenciava cuidados ao Óscar, não souberam comunicar com ele abertamente sobre a sua doença e sobre o prognóstico. Quantos Óscares teremos nós nos nossos hospitais? Espero que haja uma senhora cor-de-rosa para cada Óscar…

A realidade da morte em idade pediátrica é considerada por muitos uma fatalidade tão grande que a encaram como um fracasso da medicina moderna. No entanto, a história de Óscar e a Senhora Cor-de-Rosa ensina-nos uma lição valiosa sobre resiliência e a capacidade de encontrar alegria mesmo nas circunstâncias mais difíceis. Ao brincar e a imaginar que avança no tempo, o menino aproveita a vida nas suas diferentes idades, reinventando a própria realidade. Como mãe de duas crianças não posso sequer imaginar a dor de perder um filho. Deve ser dilacerante. No entanto, quantos pais perdem filhos todos os anos? Que qualidade de vida estamos a proporcionar às crianças com necessidades paliativas e que não veem essas necessidades atendidas? A falta de comunicação aberta sobre a doença e o prognóstico, como mostrado na história de Óscar, pode agravar ainda mais o sofrimento das crianças e de suas famílias.

É imperativo que novos programas de formação nesta área se tornem uma realidade, garantindo que estes cuidados especializados sejam acessíveis de norte a sul do nosso país, sem esquecer as ilhas. Apenas através da formação adequada e da expansão das equipas especializadas poderemos assegurar que todas as crianças com necessidades paliativas recebam o cuidado e a dignidade que merecem.

Ao refletir sobre estas questões, é evidente que precisamos de um compromisso maior com o desenvolvimento dos CPP. Somente assim poderemos transformar a realidade dessas crianças e das suas famílias, oferecendo-lhes a melhor qualidade de vida possível, mesmo diante das circunstâncias mais desafiadoras.

Termino com um excerto do livro que mais me tocou “Querido Deus, Obrigada por teres vindo. Vieste no momento certo porque eu não me sentia nada bem. Talvez também tenhas ficado sentido com a minha carta de ontem… Quando acordei pensei que tinha noventa anos e virei a cabeça para a janela, para ver a neve. E então pressenti que tu vinhas. Era de manhã. Eu estava sozinho na Terra. Era tão cedo que os pássaros ainda dormiam e até a enfermeira da noite, a Dona Ducru, devia estar a passar pelas brasas, e tu tentavas criar a aurora. Estava a ser difícil, mas insistias. O céu clareava. Tu enchias o ar de branco, cinzento, azul, afastavas a noite, reanimavas o mundo. Sem fazer pausas. Aí é que eu compreendi a diferença entre tu e nós: és infatigável! Tu és o tipo que nunca se cansa. Sempre a trabalhar. Agora vem o dia. Agora vem a noite! Agora a primavera! Agora o verão! E agora a Peggy Blue! E agora o Óscar! E agora a Vovó Rosa! Que resistência! Percebi que estavas aqui. Que me confiavas o teu segredo: olhar cada dia o mundo como se fosse a primeira vez. Então, segui rigorosamente o teu conselho. Pela primeira vez. Contemplei a luz, as cores, as árvores, as aves, os animais. Sentia o ar a entrar-me pelas narinas e fazer-me respirar. Ouvia as vozes que vinham do corredor como se estivesse na abóbada de uma catedral. Sentia-me vivo. Vibrava de pura alegria. A felicidade de existir. Estava maravilhado. Obrigado Deus, por teres feito tudo isto para mim, era como se me estivesses a pegar na mão e a levar-me até ao coração do mistério para contemplar o mistério. Obrigado.

Até amanhã, beijinhos,

Óscar

P.S. O meu pedido: és capaz de fazer este truque da primeira vez aos meus pais? A Vovó Rosa, acho que já o conhece. E também à Peggy, se tiveres tempo…”

Referências bibliográficas:

  • Palliative care for children. (2023, June 1). World Health Organization (WHO). Retrieved June 23, 2024, from https://www.who.int/europe/news-room/fact-sheets/item/palliative-care-for-children
  • Relatório do grupo de Trabalho do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde. (2014). SPP – Sociedade Portuguesa de Pediatria. Retrieved from https://www.spp.pt/UserFiles/file/Comissoes_SPP/RelatOrio%20do%20GdT%20de%20CPP.pdf
  • Comissão Nacional de Cuidados Paliativos. (2023). Critérios de Referenciação para Equipas Especializadas de Cuidados Paliativos Pediátricos.
  • Feudtner C, Christakis DA, & Connell F. (n.d.). Pediatric deaths attributable to complex chronic conditions: a population-based study of Washington State, 1980–1997. Pediatrics, 2000(106), 205–9.
  • Pereira D., Salgado C., Fradique E., Sobral F., Teixeira I., & Palaré MJ. (2023). Mortality in Pediatric Palliative Care in a Tertiary Center. Portuguese Journal of Pediatrics, 54(2), 74-81.