O #metoozinho do Jazz Português

À semelhança do putativo escândalo sensacionalista que envolveu supostas formas vagas de assédio e abuso sexual no Centro de Estudos Sociais na Universidade de Coimbra, problemática que abordámos em devido tempo, voltamos aqui a tentar separar o trigo do joio num caso recente de denúncias semelhantes em relação não apenas a um músico em específico, mas mais vastamente em relação a todo o mundo do jazz português.

Em primeiro lugar, é importante sublinhar que se trata de mais uma situação em que se coloca a hipótese de professores terem relações próximas, de amizade ou de carácter erótico e amoroso, com alunos. Esclareçamos primeiramente que isto não é crime, que depende das instituições em específico terem regulamentos internos explícitos contra essas situações — e grande parte não têm — e que, curiosamente, noutras décadas em que o espírito cultural do ocidente tendia para um maior liberalismo dos costumes, nomeadamente a nível de relações sociais e amorosas, tal possibilidade não era de todo vista no binómio oprimido/opressor e nas relações de poder, tendo até originado em muitos casos uniões duradouras, tanto de professores com alunas como de professoras com alunos. Um caso recente é o de Agnes Callard.

Em segundo lugar, o presente estado, que parece já lunático e muito afastado de qualquer critério realista e credível, quanto à noção de assédio ou abuso sexual abarca, para certas alminhas com interesses directos ou indirectos num estado de pânico moral quanto ao assunto, situações e práticas tão díspares que vão desde o piropo, passando pela mão no joelho, pela insinuação de interesse amoroso, até aos desentendimentos dentro de relações íntimas já estabelecidas — pode ser esse aqui o caso — chegando por último à violação tout court. São fenómenos estes que só dentro de cabeças muito tendentes à neurose ou à psicose podem ser agrupados dentro da mesma categoria uniforme: mas não há quem falte a jurar que a distância entre um piropo e uma violação bruta é muito pouca. São categorizações que não merecem qualquer importância e pertencem provavelmente ao caixote de lixo da psiquatria.

Em terceiro lugar, é importante analisar ponto a ponto as informações levantadas na imprensa, combatendo o impulso sensacionalista que estes assuntos convocam. Acima, encontramos um trecho da peça do jornal Público sobre o assunto, uma de várias. Pelo que pudemos apurar até agora deste #metoozinho do jazz português, resume-se ao seguinte: (1) uma rapariga, Liliana Cunha, escreveu de impulso um relato nas redes sociais sobre, basicamente, um sujeito, João Pedro Coelho, que é professor de jazz e que terá tirado a proteção a meio de uma relação sexual; (2) foi impulsionada pelas amigas a indicar o nome, e fê-lo; (3) de seguida, começam a chover denúncias de que esse professor é mulherengo e vai beber café com as alunas; (4) o professor reage alegando que o primeiro facto relatado é falso e que irá avançar para queixa judicial; (5) ao saber disto, e só depois, a rapariga resolve avançar também para queixa judicial, embora já tenha prescrito o prazo para apresentação da mesma (factos confirmados aqui); (6) de resto, o canal de denúncias entretanto constituído por mais um grupo espontâneo ou não-espontâneo que, como as gaivotas, sempre vem à tona quando vê peixe fresco (e que curiosamente é quase sempre dominado por pessoas de nacionalidade brasileira ligadas às academias de estudos sociais e/ou às artes), já recebeu inúmeros relatos reportando tanto à mesma pessoa como a outros professores e músicos de jazz, relatos esses que, pelo que se lê na imprensa, se resumem a episódios e comportamentos do tipo mulherengo, e não propriamente a violações, abusos sexuais concretos (além desse primeiramente referido) ou sequer a casos numerosos, relevantes e credíveis de assédio ou abusos de outros tipos (há dois confirmados por uma escola, o Hot Club de Portugal, que tiveram consequência — o afastamento dos professores; ou seja, caso resolvido). 

A alegação quanto à remoção de protecção, cujo relato se encontra acima, da peça do Público, e que, no fundo, é a única base sobre a qual a denúncia inicial se alicerça, configura um abuso de confiança grave mas não constitui necessariamente, à luz da lei portuguesa, violação à letra, embora o possa ser noutros países. Uma peça razoável do jornal DN sobre o assunto pode ser lida aqui. É importante também notar que a situação pode provir de mal-entendidos, comuns entre pessoas que se conhecem mal e no entanto logo se encontram em interacções sexuais íntimas e complexas — o que nos lembra como é problemático criminalizar coisas difíceis de provar como a remoção de proteção a meio de uma relação. Importa ainda assinalar que esse acto inconsentido é pontualmente comum com alguns homens, por motivações variadas, e que é inteiramente censurável, mas que também é fundamental a existência de uma discussão tanto sobre o porquê de o fazerem como também sobre o que sucede para que mulheres e homens tão displicentemente se vejam em situações em que tal pode acontecer. Fosse como fosse, o procedimento sensato a partir do momento em que tal imprevisto sucede, como alegadamente terá sucedido, seria tentar o entendimento com a pessoa ou partir de imediato para uma queixa judicial, preferencialmente sem a necessidade da chicana pública — queixa essa que, mesmo que não tivesse resultado sancionatório prático, teria certamente o condão de deter futuros actos semelhantes da parte da pessoa.

Mas quanto ao restante rol de informações veiculadas na imprensa, é fácil depreender que, por enquanto, não existe realmente nenhuma alegação concreta de abuso sexual grave à luz da lei portuguesa, ou então essa informação seguramente já teria sido divulgada. Quantas alegações credíveis de assédio ou abuso foram realmente até agora reportadas — além das duas de assédio que não mereciam qualquer reporte extraordinário pois já tinham sido, e bem, encaminhadas internamente e com resolução positiva — não sabemos. São-nos indicados números que, a crer no critério lasso que parece aqui presente, tanto podem envolver convites para beber café, toques excessivamente íntimos, até eventuais insistências no âmbito da proximidade que possam passar o limite do admissível. Porém, a contar com o padrão que podemos dizer já vir a conhecer, tanto do caso do CES de Coimbra como de rumores que possam surgir em geral no meio académico, antevê-se o resultado do costume: a existência de professores que gostam de mandar charme, que alimentam ou podem alimentar ligações de proximidade com pupilos, envolvendo trocas de mensagens, cafés, conversas por vias variadas que podem evoluir para relações de amizade e quiçá de carácter amoroso ou erótico. Com forte probabilidade é isto e só isto que emergirá do movimento. E se for só isto, qual é realmente a opinião pública maioritária sobre a sua importância?

Ora, nada disto é crime, nada disto é necessariamente “assédio” — e convém que as pessoas tenham maturidade suficiente para o distinguir, maturidade essa que parece estar ausente, de forma notória e preocupante, em muitas pessoas de gerações mais novas. Não parece admissível que se confundam tão facilmente, por um lado, o mundo dos entendimentos e desentendimentos das relações sociais e amorosas, e, por outro, o mundo dos crimes de assédio e do abuso — sendo que a existência de hierarquias laborais ou lectivas, diferenças de idade ou de estatuto não configuram necessariamente o segundo caso. Certo é que não parece viável passar a trazer-se para a esfera pública do escândalo, da perseguição e em muitos casos da difamação, que podem envolver destruições de reputações e de carreiras, episódios que mais facilmente caberiam no mundo complexo dos desentendimentos inter-pessoais do que no mundo do crime — e não parece também que misturar um mundo com o outro não acabe por ter a consequência de menorizar verdadeiros exemplos de abuso. No final deste artigo, poderão encontrar uma galeria de comentários, retirada de um perfil social de uma das responsáveis pelo movimento — o que significa que levam todas estas queixas, algumas delas de evidente puerilidade, igualmente a sério e as enquadram todas na mesma categoria de gravidade —, de várias pessoas do mundo da música jazz em Portugal que, por agora confirmam não só as suspeitas de confusão muitíssimo perigosa entre ambiguidades de relações sociais e assédio dirigido, como também um eventual problema de maturidade emocional em termos de capacidade de reagir a esses avanços com vista a relações inter-pessoais de amizade ou de carácter amoroso, e as confusões e desilusões que podem daí advir.

Uma nota lateral, mas importante, sobre a actual doutrina jurídica no ocidente quanto ao abuso sexual, é também aqui relevante. Actualmente, segundo convenções internacionais, o estabelecimento de abuso sexual não requer provas físicas que o distingam de maneira minimamente categórica de uma relação sexual de mútuo consentimento — provas de resistência, por exemplo. Ou seja, depende apenas da palavra da testemunha. Isto pode ser problemático: este tipo de leis empodera os queixosos com um tipo de poder que, julgam eles, não vão abusar; mas a subjectivização imanente nas relações humanas, a sentimentalidade e o sensacionismo pode convencê-los e confundi-los. Uma má noite sexual, na sua cabeça, pode rapidamente saltar para violação; mal-entendidos para abusos; recordações ou retrospeções que revisitam o acontecimento à luz de outros critérios subjectivos, de repente transformam um mau encontro num programa de violação e destruição corporal e mental propositados. É totalmente ingénuo não reconhecer os problemas por detrás desta subjectivização da lei.

Dizem-nos, de resto, que é um facto que os músicos de jazz, no mundo e em Portugal, são “frescos” ou têm essa reputação do sentido da inclinação para o envolvimento próximo, amoroso ou meramente sexual. Se assim é, não quebram aquela que sempre foi a tradição do género — que, se agora for sujeita a critérios morais mais pudicos, se pode dizer ter ficado “aburguesada”. Estranhas assim são reacções da revista jazz.pt e do músico Filipe Melo — reacções tão solenes quanto dramáticas, de certo modo revelando uma certa covardia institucional ou profissional perante a voz das turbas, e não referindo uma única vez o princípio de presunção de inocência, o ditame sagrado da prova judicial nos estados de direito, e o cepticismo das pessoas inteligentes e não primeiramente emotivas face à complexidade de assuntos em que obviamente não basta o clamor das multidões, tantas e com tanta força vezes erradas, para estabelecer o que quer que seja de credível e concreto. Por isso damo-nos à liberdade de acusar aqui o seguinte: instituição ou pessoa pública que venha a referir apoio automático a este tipo de movimentos sem mencionar o princípio da presunção da inocência e o primado da lei e das provas concretas está a incorrer num exemplo de covardia.

Assim, a reflexão sobre o que se terá passado na educação familiar, no desenvolvimento psicológico ou no momento cultural das pessoas, denunciantes ou entusiastas deste fenómenos, pessoas que vivem neste comprimento de onda mental, onde tão facilmente se transformam episódios de desencontro nas relações humanas em falhas morais e legais graves, é uma reflexão que tem de ser feita: em Portugal e na maior parte do ocidente, de acordo com os quadros legais, a autonomia sexual atinge-se aos 16 anos, e a maioridade cívica plena aos 18. Se atingidas estas marcas as pessoas não se encontram em plenas capacidades funcionais para lidar com o mundo complexo das interacções interpessoais, inclusive aquelas de carácter erótico e amoroso — ou seja, se, na prática, não sabem lidar com investidas de terceiros nesse sentido e imediatamente as caracterizam, muita vezes abusivamente, como “assédio” — então há que tirar conclusões quanto ao que falhou ou, então, alterar ao nível da lei as idades em que essas maioridades se atingem. 

É possível que uma parte significativa da população infantilizada ou entusiasta da infantilização progressiva da jovem idade adulta creia que, por exemplo, as idades mais adequadas no presente momento para a maturidade fossem algo por volta dos 18 ou mesmo até 22 para a autonomia sexual, e 25 para a maioridade cívica. Se assim é, fortes discussões podem e devem ser tidas quanto a isto — inclusive, e aqui queremos tocar, para concluir, num ponto que mais nos é próximo, perceber como é que a universidade e o ensino superior em geral, com a sua frequência hoje cada vez mais tendencialmente universal, funciona em parte como um prolongamento rasca, inútil e perdulário do ensino secundário e do estado de adolescência mental, social e cívica que o mesmo impõe aos seus discentes. Fica para reflexão.