Sociedade, Desafios e Desenvolvimento. Uma Abordagem Sobre o Papel da Universidade na Sociedade Moçambicana: diagnóstico e possibilidades. Texto de Itélio Joana Muchisse (Investigador da Cátedra Scholas Chair; Licenciado em Ensino de História com Habilitações em Ensino de Filosofia pela Universidade Save de Maxixe/UniSaf, iteliobango@gmail.com) e Joaquim Mulamula Sabino Mbanguine (Mestrando em Intervenção Psicológica no Desenvolvimento e na Educação pela Universidade EuropeadelAtlántico (UNEATLANTICO); Licenciado em Ensino de Filosofia com Habilitações em Ensino de História pela Universidade Pedagógica de Maxixe/UniSaf, mulamulajoaquim11@gmail.com). Revisão de Ricardo Fortunato e Sílvia Pereira Diogo. Imagem de capa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanidades da Universidade do Zambebe.
Resumo
Moçambique é abalado por eventos humanos desastrosos nos dias que correm, onde os desafios são deveras impressionantes. Com muita população a viver nas zonas rurais e sem acesso à educação de qualidade, Moçambique é um país pobre que está aquém do alcance dos objectivos globais para o desenvolvimento sustentável. Embora a educação não seja um objectivo do desenvolvimento do presente milénio (Mário & Nandja, 2006), o seu papel deve ser tomado como basilar para que se inove em prol do desenvolvimento. No entanto, é preciso um trabalho interno e externo para a responsabilização da Universidade e dos seus agentes de cooperação e da própria comunidade no desenvolvimento de iniciativas baseadas no meio local de modo a gerar um impacto global. Palavras-Chave: Universidade, Desenvolvimento, Comunidade, Globalização, Inovação.
Introdução
A exclusão num meio social pode decorrer de várias formas. Na sociedade africana mais recente, à semelhança do mundo colonial, também existe a exclusão, desde a social, tecnológica, epistemológica e até de classe, etc. O produto de toda e qualquer exclusão são as fronteiras entre os dois mundos: o que exclui e aquele que é excluído. Ambos se podem excluir mutuamente. Deve o homem africano criar pontes entre as fronteiras de modo a abraçar novas possibilidades de vida e de relação com os seus pares. Para esse efeito, deve cultivar o sentido de responsabilidade, de onde advêm a tolerância e o bem comum; parece haver necessidade para que se crie um futuro melhor do que aquele que hoje se conhece, portanto. Os povos locais, nos quais se podem incluir também funcionários e agentes do Estado, devem inovar no seu modo de empreender, com vista a aplacar os efeitos nefastos da exclusão social e epistemológica de que se falou. A este respeito, é importante fazer-se uma reflexão sobre as possibilidades que o futuro reserva para este tópico.
O objectivo deste artigo é definir o lugar da universidade dentro da sociedade moçambicana. Ora, para estudos mais profundos da cultura e da tradição universitária, é necessário em primeiro lugar compreender o conceito de universidade nos mais diferentes espaços. Cada facto tem uma representação geral e outra específica. Embora o conceito de universidade seja global, é preciso redimensionar o papel da sua actuação, em que a quebra de barreiras entre a globalização e o local deve ser o principal objectivo, dentro do âmbito teórico em apreço. Neste sentido seria preciso, por um lado criar uma universidade “destradicionalizada”, por outro apontar as prioridades dos novos tempos (zeitgeist) moçambicanos.
Este artigo encontra-se dividido em duas partes. Na primeira parte é feita a apreciação da historiografia científica de África e de Moçambique, onde se discute sobre o modo como foram assumidos os conhecimentos coloniais neste e naquela. Eduardo Mondlane (1976) aponta para um fraco desenvolvimento pedagógico em Moçambique desde a independência. Por outro lado Ngoenha (2017) aponta também para a fraca partilha de epistemologias e vários outros fundamentos críticos sobre a posição das universidades no combate ao subdesenvolvimento durante o mesmo período. A segunda parte deste artigo está dedicada ao estudo da universidade através do método psicanalítico. São tecidas algumas opiniões sobre as opções dos estudantes universitários no seu trabalho académico e na sua vida intelectual e profissional em geral. Concluímos com as ilações necessárias a tirar deste contexto e deste panorama.
Ensino, sociedade, desenvolvimento e inovação em África e Moçambique
É inegável o papel fundamental que a educação desempenha no processo de desenvolvimento de uma Nação ou Estado. A título de exemplo, recorramos ao legado ocidental para elucidar este posicionamento. Ora, pode-se dizer muito sucintamente que a Revolução Industrial decorreu de uma longa série de transformações nas tecnologias, em particular nos transportes, de entre os quais se notabilizou sobretudo o comboio a vapor, apresentado pela primeira vez na Inglaterra na primeira metade do século XIX, ainda até há pouco tempo utilizado até à sua substituição pela locomotiva eléctrica.
Por detrás deste processo de evolução tecnológica começado através da Revolução Industrial estão várias tentativas de inovação social e económica, que podem ser abordadas do ponto de vista didáctico, na medida em que as transformações operadas na época em apreço — segunda metade do século XVIII até meados do século XIX — podem dar origem a novos didactismos, de que a experimentação científica e o empirismo, com os erros e os sucessos daí logrados, podem ser uma das mais importantes chaves-mestras para a herança do conhecimento que hoje se promove nas academias. Reunidas as condições e alcançados os objectivos científicos, a fase em que as técnicas são difundidas pelos diversos países da Europa alastra. Para melhor se compreender o alcance destas premissas, é necessário comparar a cronologia dos seguintes fenómenos: em primeiro lugar, a massificação do ensino na Idade Moderna e, em segundo lugar, o processo da difusão tecnológica decorrente da Revolução Industrial por toda Europa. Na verdade, estes dois processos ocorrem em simultâneo. Conseguida a popularização do ensino, aumenta o desenvolvimento tecnológico em diversos níveis (Basílio, 2015).
Pode-se dizer que o colonialismo trouxe a ciência e a técnica ocidentais para África. Mas é preciso considerar o contexto em que essa chegada é feita ao continente africano. Cada uma das disciplinas da roda de saberes ocidentais trazidos a cabo pela dominação colonial parece ter sido injectada de uma responsabilidade na sociedade em apreço: “a Antropologia encarregue de descrever as etnicidades; a Geografia encarregue de explorar e localizar em mapas minuciosos os recursos do solo e do subsolo africanos; a Biologia de descrever e recolher as plantas e animais exóticos para a Europa, os estudos Culturais para organizar o espólio artístico, artesanal e, sobretudo, de conhecimento para os museus e os centros de saber Europeus” (Castiano, 2021, p. 131). Pese embora a submissão cultural, económica, social e política que sobreveio com o colonialismo, pode-se olhar para o lado positivo de que hoje há práticas científicas em África. Esse é o primeiro passo que se deve tomar rumo à amplificação de perspectivas e à prospecção de saberes. Hoje “a ideia da educação […] africana” deve ser “a de problematizar ‘o entendimento do mundo a partir da condição’ como pressuposto da participação do Munthu (sujeito africano) na reconstrução do mundo por-vir” (Ibid. p. 124).
De acordo com a historiografia, a África é o epicentro da origem da cultura humana. Porém, este local já não se torna o epicentro da cultura do desenvolvimento depois do domínio colonial, sendo um continente que se mantém longe do alcance dos objectivos do desenvolvimento para este milénio, sobretudo porque muitos países são pobres, e “apesar de afectar directamente todos os objectivos preconizados, a alfabetização, como elemento essencial para a diminuição da pobreza no mundo, não é um dos objectivos do Milénio.” (Mário & Nandja, 2006, p. 6).
Quase todos os países africanos foram colónias, o que impossibilitou em parte que se desenvolvessem de forma autónoma, isto é, tiveram os seus sistemas políticos e, por conseguinte, educacionais virados para responder aos desafios que eram pautados pelos colonizadores. Nesse contexto, quase nenhum sistema de ensino é radicalmente africano, apesar dos arranjos que têm vindo a ser feitos com o objectivo de tornar o ensino mais autóctone.
O paradigma colonial criou uma dependência para os países africanos que se mantém até aos dias de hoje. Neste sentido aponta Ngoenha (2017, p. 63) que “os pressupostos teóricos, os paradigmas de análise e de interpretação, os postulados são sempre buscados no exterior, esquecendo que eles são resultados da maneira como uma determinada sociedade olha para os problemas com que está confrontada”. Ora, essa dependência pode tornar os africanos incapazes de construir as suas próprias epistemologias e singrarem de forma autónoma no ramo do desenvolvimento.
Face ao desenvolvimento científico e económico dos outros continentes, o continente africano, em particular, vive hoje o clima de terror e de regressão económica causada pela guerra generalizada que assola vários dos seus países e que é também acompanhada pela pilhagem dos recursos existentes. Se, na Europa da modernidade, o desenvolvimento científico contribuiu para o desenvolvimento económico e social, um processo inverso acontece na África contemporânea, pois, as armas produzidas pela ciência, grosso modo, muitas vezes servem para dizimar os homens e reduzir o potencial humano através da imposição de sistemas de rigoroso controlo amplificável não só à população civil em geral mas também à camada académica. Esta massa universitária ressente-se e, como diz Lopes (2018), acaba tomando posições de prestígio nos principais órgãos do Estado, relegando ao segundo e terceiro planos o paradigma da criatividade de que a ciência depende. Voltando a Ngoenha (2017), urge, neste contexto, a necessidade de um “pensamento crítico” que possibilite re-alocar os conhecimentos, isto é, transformar aqueles conhecimentos sub-desenvolvidos que hoje são negativos para a África em caminhos para a instalação de experiências positivas.
Seguindo o ponto de vista de Castiano (2021), seria necessário que os africanos optassem pela “destradicionalização” dos conhecimentos de modo a terem um lugar próprio no sistema global. Essa “destradicionalização” consistiria na não negação do conhecimento estabelecido na senda do pensamento e da experiência ocidental e pugnaria, em alternativa, por procurar um lugar de diálogo onde os conhecimentos indígenas fossem chamados a intervir na construção das premissas pedagógicas dos africanos, dando-lhes dessa forma a possibilidade de aproveitar o conhecimento e a técnica ocidental, com os pés fincados, porém, numa realidade específica que visasse procurar uma melhor integração para esses conhecimentos, tendo como base as sociedades africanas (Lopes, 2018).
Em Moçambique
O desenvolvimento não é somente um fruto da educação. É também o fruto da responsabilidade na gestão do bem comum, portanto, da coisa pública. É preciso que haja uma boa gestão dos recursos, aplicando meios certos que atinjam fins favoráveis e que obedeçam à moralidade do Estado.
Moçambique é um país relativamente pobre. Tal como muitos países, mal consegue atingir o mínimo dos parâmetros estipulados para os países africanos. Mas não é só de desespero que se trata, já que algumas inovações são empreendidas pelos próprios africanos. Algumas se mostram ineficazes por tenderem a responder a problemas sem ter-lhes sido colocada a pergunta, porque são “iniciativas por encomenda”, advindas desde o sujeito como “cidadão do estado”, passando pelas escolas e outras instituições do estado, onde existe uma “exclusão passional do indivíduo”. O meio social não entende a linguagem das universidades e a sociedade civil mantém-se aquém do esperado através da comparação estatística.
Comparados os números de cidadãos formados em diferentes países tanto da Europa como de outros africanos, a relação entre o número de universitários tanto do primeiro, do segundo, do terceiro nível académico das universidades de Moçambique é desproporcional ao daqueles. É desproporcional também a contribuição na criação das alternativas de bem-estar.
Emerge, também, dentro deste contexto, o ensino universitário mais favorável ao ponto de vista epistemológico, a que acresce o mau uso da tradição para a boa utilidade, ética e social, no meio sociocultural que a acolhe, cujo sentido passaremos, aliás, a explicar. Ora, para Mabota (2014, p. 77), a tradição é o contexto, isto é, o lugar onde a ideia de justiça se estabelece adequadamente, apesar das divergências nos mais variados aspectos, interna ou externamente de todas as culturas incluídas no mesmo meio social. É preciso que haja responsabilidade na comunicação com os idealismos universalistas que pretendem que um único sistema de valores se imponha a todas as localidades. Neste quadro, é preciso que a tradição universitária, ao mesmo tempo que se expande, dê maior abertura para a comunicação entre os aspectos locais e os aspectos globais, como aliás se disse na abertura deste artigo. De resto, ainda dentro do mesmo assunto, um dos aspectos da realidade social menos favoráveis à partilha académica é o elevado índice de elitismo académico e científico nos espaços universitários.
A mobilidade ou a entrada de novos membros nas mais variadas instâncias que contribuem para o desenvolvimento científico, como as universidades, os centros de investigação e os laboratórios, é efectuada de uma maneira lenta. De certa forma se tem observado, com alguma frequência, no pessoal académico dos poucos grupos de pesquisa afiliados às universidades não pouca inclinação para julgar, mediante um olhar prepotente, os jovens cientistas que estão no começo de carreira, muito a pretexto do seu percurso escolar de poucos anos. Não obstante, estudos e opiniões dividem-se em torno da própria organização do ensino; porém, o ponto em comum das discussões é a orientação do modelo educativo no seu todo para o bem comum. Ainda existem muitos desafios para que a universidade se estabeleça mediante um sistema robusto e consistente, mais condizente com a realidade concreta, capaz de responder às necessidades reais da comunidade educativa em que se insere, nomeadamente ao nível da formação intelectual, e para o trabalho, e da investigação científica e sua aplicação prática nas mais variadas áreas, de que a expressão “pés no chão” pode oferecer uma ideia do ajuste que se pretende.
Papel social da Universidade: o século da comunicação e os desafios no ensino
Falar do papel social das universidades equivale, num contexto amplo, a falar também, e por extensão, da sua responsabilidade social. A partir deste pressuposto se pode dizer que as universidades devem existir para a sociedade e servir a sociedade, o que nos ajuda a entender que elas podem ser veículos capitais na formação de especialistas cujos papéis são, entre outros, os de antecipar problemas e de prever soluções a partir da pesquisa científica. Ademais, um dos aspectos pertinentes das universidades, partindo da componente da investigação científica, e de forma mais concreta, da pesquisa, é a certeza da parte da instituição de que o investigador está à frente do tempo. Por isso, de modo a conduzir a história e os seus eventos a bom porto, a convicção de que a pesquisa não se atrasa e acompanha o progresso do desenvolvimento para que é convocada deve ser acompanhada do bom registo científico dos fenómenos sociais que são de importância fundamental.
Para explicarmos mais concretamente o que atrás se disse, vamos partir da análise do papel social das universidades através do entendimento de Mubarak (2021), que destaca a responsabilidade social como o principal fundamento do modus operandi das instituições. As suas teses partem de três funções das universidades, que passamos a destacar: ensino, pesquisa e extensão. Estas funções devem empreender mudanças profundas na perspectiva científica, política, económica e cultural dos meios educativos, com vista ao desenvolvimento social. Na senda do pensamento deste autor, não nos parece despiciendo tomar a liberdade de lançar mais uma função que acharíamos pertinente implementar da parte das universidades no sistema a que estão obrigadas: reunir meios para ajudar a combater a pobreza absoluta e a exclusão social, de que os seus alunos tirariam bastante proveito até porque uma política deste género aumentaria o número de estudantes a ingressar nas instituições. Importa, a este respeito, salientar que o autor supracitado atribui uma grande dose de responsabilidade às universidades na construção de uma consciência global actualizada; o mesmo para a socialização do conhecimento.
Esta abordagem de Mubarak (2021) está de acordo com o entendimento do papel social das universidades que o presente texto analisa, pelo que o passamos a explicar: primeiro as universidades devem ter o papel de capitalizar o ser humano de modo a que este possa atender às desvantagens sociais atrás referidas e, a partir da pesquisa científica, que ultimamente tem florescido nos países africanos, criar respostas concretas às necessidades de suas culturas. Se admitirmos que a universidade é o lugar de pesquisa, então essas pesquisas não devem ser alheias ao meio social em que se encontram. As universidades desempenham, pois, a partir desta perspectiva, um papel importante no que diz respeito à transferência tecnológica e de conhecimentos entre os estudantes e especialistas nos diferentes espaços em que operam as mais variadas áreas científicas. As mulheres africanas também não ficam de fora, devendo “re-mobilizar as linguagens, os saberes e as epistemologias”. Pode-se acrescentar, de resto, que os estudantes africanos devem, de modo geral, lembrar, por agora, o modo pelo qual adquiriram os saberes; lembrar-se-ão, de resto, “que o universalismo etnocentrado tinha historicamente descartado” a sociedade africana em tempos não muito distante dos actuais.
Ainda segundo o mesmo autor, o papel das universidades é, fundamentalmente, o de produzir e socializar o conhecimento; entretanto, na conjuntura social dos “Estados Frágeis”, aqueles cuja estrutura social, política e legislativa ainda não está suficientemente sedimentada, muitos aspectos podem ser entraves na busca pelo conhecimento científico actualizado, e aliás comprometer o papel educativo e pedagógico que as universidades à partida adquirem como templos de saber. Na actualidade, tem sido levada a cabo a organização do “próprio ensino universitário” a partir dos “próprios frutos”; o grande debate centra-se, por isso, na responsabilidade e na qualidade de “um diploma universitário” a partir de uma perspectiva científica: a este respeito se pode dizer que a quantidade de “académicos” é desproporcional à intervenção social que “daí se espera”. Do mesmo modo, a qualidade da pesquisa não é de somenos importância: existem, por um lado, os plágios académicos, por outro, “trabalhos por encomenda”; no mesmo contexto quadra um elevado número de professores universitários com fraco potencial de pesquisa: alguns sobrecarregados para atender à produção do “próprio conhecimento”; de resto, pouco referencial teórico a partir da “produção científica e literária” local; universidades sem pesquisas sérias e por essa razão situadas à margem da sociedade e dos eventos sociais. Sobre esta problemática podemos citar a preocupação de Coughlin (2015), quando fala de fraude académica nas cinco universidades moçambicanas, segundo a qual, numa pesquisa de 48 monografias de licenciatura e 102 dissertações de mestrado, 75% tinham plágio significativo (100 palavras ponderadas) e 39% plágio muito grave (500 palavras ponderadas).
Com base neste estado de situação, olhando a problemática dos plágios e da falta de pesquisas nas universidades, de professores que podem acolher técnicas menos ortodoxas no meio de ensino, com falta de produção escrita própria para os seus estudantes, urge questionar o papel das universidades moçambicanas. Até que ponto elas respondem de forma concreta às necessidades sociais? Como podem as universidades ensinar a pesquisar se elas não aplicam as regras pelas quais as instituições do mesmo nível se devem regulamentar? De que forma as universidades podem resolver e prever, a partir de pesquisas próprias, os problemas da sociedade? Talvez a ideia de consumo possa ser aqui humildemente introduzida, de que falaremos, aliás, com mais propriedade no próximo parágrafo.
A perspectiva do consumo pode ter sido profetizada por Lyotard (2003) quando escreveu A Condição Pós-Moderna e previu que o conhecimento seria “produzido para a venda” e o eixo de produção já não seria mais o sujeito do conhecimento, pois todo o saber estaria, grosso modo, traduzido na linguagem da máquina. Esta vertente de análise, que o autor nos traz, pode relacionar-se, na perspectiva que temos vindo a contemplar, com a totalidade das vivências nas universidades; daqui se pode dizer que as universidades parecem, de modo geral, ter perdido o seu papel motor de paladinos das humanidades e ciências em prol do avanço tecnológico que nos últimos anos tem sido amiúde cultivado: as pesquisas académicas têm degradado substancialmente nos anos recentes, através do fenómeno “copy-paste”, por exemplo. Este ângulo de reflexão não visa desprezar o papel dos mass media e das tecnologias no âmbito universitário, antes tem o objectivo de problematizar o uso que deles se faz nas academias.
Mubarak (2021), na sua reflexão, ajuda a problematizar de forma mais aprofundada estas questões, quando coloca alguns princípios que conferem o carácter próprio das universidades, a saber: 1) formação através da investigação; 2) unidade entre o ensino e investigação; 3) autonomia e liberdade da administração da instituição e da ciência que ela produz; 4) relação integrada, mas autónoma, entre Estado e Universidade; 5) complementaridade entre o ensino fundamental (primário) e o universitário.
Olhando para os princípios que orientam a dinâmica de uma universidade padrão e a realidade das universidades moçambicanas encontra-se, portanto, uma divergência sem precedentes, isto porque talvez estas em comparação com aquelas não ensinam a investigar aos níveis da exigência que é normalmente esperada de instituições do tipo, pese embora o pragmatismo e a visão pessimista deste pressuposto; não tendo autonomia na ciência não pode haver complementaridade entre os três níveis de ensino aqui aludidos no início do texto.
Os desafios actuais
As universidades no contexto actual, sobretudo de Covid-19, foram obrigadas a adoptar a dinâmica dos tempos, em que o ensino online se destaca. Contudo, o desafio de adesão a um novo modelo de ensino (MOODLE, Watsapp, Google classroom, Google sheet, youtube, AVA, etc), que muitas instituições têm vindo a desenvolver, traz consigo novos desafios relacionados não só com a qualidade de ensino — por apresentar lacunas na implementação de meios tecnológicos, enquanto modelos novos, e por falta de experiência da parte dos formadores, conforme vincam Mura e Simão (2021) —, mas também com a questão do aproveitamento dos alunos, os quais, de modo geral, dedicam pouco tempo ao estudo, porque a modalidade de ensino à distância (EaD) não permite que os professores controlem devidamente os destinatários das lições e, como não existe um sistema de controlo remoto para se apurar a verdadeira identidade de quem está no acesso da plataforma, os resultados obtidos nas disciplinas podem derivar de métodos não tão lícitos.
Apesar do governo se ter empenhado na capacitação de docentes para aulas online, os dados indicam que até 2020 só 25% dos docentes estivesse preparado e capacitado a redigir o material didáctico para as aulas de tipo EaD (Dos Santos & Mapera, 2021). Este número que à partida pode parecer insignificante demonstra o quão prematura ainda é a ideia de avançar a qualidade do ensino online em Moçambique.
Um outro problema levantado, para além do ensino online, tem a ver com a expansão, apesar do fraco investimento, no sector de Educação de forma genérica, e de forma específica quanto às instituições superiores. O impacto directo disso, como podemos ler em Dos Santos e Mapera (2021), é a falta de universidades bem equipadas, falta de salas e diversas infra-estruturas, assim como também do comprometimento das mesmas para a criação de bolsas de estudo. Mas mais que isso, grave é o facto de Moçambique estar aquém do que se pretendera em 2020, ou seja, de ter pelo menos 20% das Instituições do Ensino superior com uma classificação de Bom e 30% de Muito bom na avaliação internacional.
Essas asserções dos autores demonstram o quão a relação entre as universidades e o Estado deve permitir a alocação de recursos financeiros para a pesquisa científica e para a construção de infra-estruturas empenhadas em maximizar o desempenho dos estudantes e especialistas das universidades nacionais. Se as universidades devem prever os problemas e possíveis soluções que apoquentam a sociedade onde elas actuam, nos âmbitos particular e geral, é necessário que se reunam os devidos recursos financeiros para o efeito; isto porque as pesquisas requerem custos financeiros avultados, assim como obriga o financiamento de bolsas de estudo para os docentes, por exemplo, pois, segundo o Plano Estratégico do Ensino Superior (PEES) 2012-2020, 67% dos docentes do ensino superior são licenciados e bacharéis, pelo que a continuação de estudos e pesquisas se impõe.
O PEES 2012-2020 refere ainda que no período epigrafado se deu uma expansão do ensino superior numa dimensão nacional; contudo, na ideia de Santos e Mapera (2021), parece não ter havido o devido comprometimento e reciprocidade por parte do Estado, devidos ao acrescimento dos recursos financeiros para a construção de infra-estruturas, laboratórios, formação do corpo docente e técnico-administrativo, concepção de programas e currículos, bibliotecas e diverso equipamento favoráveis a um bom funcionamento dos espaços e dos conhecimentos. Portanto, em Moçambique, além das instituições de financiamento de pesquisas académicas FMI e FDI, parece não haver outras. Contudo, neste financiamento há um senão: é o facto de alocar-se não para efeitos de pesquisas, mas sim, infra-estruturas de má qualidade.
Santos e Mapera (2021), ao analisarem o orçamento do Estado e a receita fiscal das universidades públicas desde 2009 até 2017, constatam que existe uma diminuição exagerada do apoio do Estado às universidades públicas, onde, nos últimos dezanove anos, as receitas fiscais dessas instituições não chegam aos nem ultrapassam os dez mil milhões e meio.
A falta de financiamento e demais recursos nas universidades públicas, transversais não apenas a estes sectores da sociedade, pode justificar em parte a fraca pesquisa e formação para investigação, e, por conseguinte, a fraca “qualidade dos docentes” e dos estudantes formados. Isto, portanto, compromete o papel das próprias universidades, no seu todo.
Considerações Finais
Para termos a Africa diferente de ontem é necessário criar mudanças no presente. A África de hoje e de amanhã pode ser gerada a partir da descolonização das mentes, sobretudo, epistemológica e cientificamente, e, como popularmente se costuma dizer, “fincar os pés no chão”, ou seja, no local em que as mudanças vão ser operadas, sem, contudo, perder a dimensão global, parece ser uma das visões mais acertadas a adoptar para o futuro. Isto porque se a ciência e a epistemologia africanas foram concebidas fora de sua casa e assumidas de forma imposta e forçada, a partir de um contingente alheio e de apetências globais, é necessário voltar a repensar o nosso expediente, tendo em conta o local como microcosmos, de forma emancipada, porque a ciência que caracteriza as universidades hoje ainda é de modo geral aquela trazida pelo colono em África, pese embora a vitalidade do espírito dos tempos. O desenvolvimento científico da África deve, por isso, passar pela revolução técnico-científica, conforme acontecera com a revolução industrial-científica, no século XVIII. E esta é tarefa dos próprios africanos.
Para a África, se houver uma verdade sobre ser o berço da humanidade, há espaço para que seja berço da ciência, algo que hoje tem tendência para ser ignorado. Ademais, a grande preocupação não deve ser a de ter maior número de universidades e universitários, mas de universidades de pesquisas e universitários que pesquisam em prol do desenvolvimento social, político e económico do país e do continente. É na criação de possibilidades de desenvolvimento, adicionalmente, que se deve centrar o papel social das universidades. Portanto, deve existir uma maior atenção por parte do Estado, de modo a criar condições financeiras e económicas que possibilitem a alocação de recursos financeiros para pesquisas. Além disso, devem existir, não só no Estado, como também nas diversas instituições de financiamento, recursos devidos para as universidades, para este efeito que a liga ao mundo social específico, no geral marcado por uma pobreza extrema. Só assim será possível construir a África “destradicionalizada”. Os novos caminhos devem ser trilhados pelos africanos com vista ao bem-estar comum e sustentável.
Referências Bibliográficas
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