O problema da autoria em Fedro nasce na sua assinatura[1] e, seguidamente, desenvolve-se: dramatiza-se. Platão escreve o diálogo de Sócrates e Fedro, porém — simplesmente pelo texto — é impossível saber como Platão ouve o diálogo, ou se sequer o ouve, ou se houve alguma vez algum diálogo entre Sócrates e Fedro. As perguntas (hipotéticas) multiplicam-se (como um diálogo): Platão, hipoteticamente ouvindo o diálogo, apresenta-se a um dos interlocutores, ou aos dois? Ou ouve-o enquanto se oculta? Ou ouve-o relatado por Sócrates? Ou ouve-o relatado por Fedro? Ou ouve-o relatado por um terceiro? Um qualquer terceiro? Ouve-o inalterado, como uma gravação? Ou como um relatório? Ouve-o alterado? Sintetizado, acelerado? Ou detalhado, desacelerado? Ou exagerado, hiperbolizado? Ou comentado — descontinuado —, analisado? Ouve-o inventado? Narrado ou dramatizado? Ou ouve-o de múltiplas formas? E/ou altera Platão o diálogo para completar os vazios, as falas em falta, conforme o pensamento do seu mestre? Ou altera Platão o diálogo, completando-o com o próprio pensamento filosófico? Ou inventa inteiramente o diálogo para completar o seu pensamento filosófico[2]? Estas hipóteses problematizam a autoria, centralizando-a: apresentando o texto ora como transcrição (direta) da memória de Platão, ora como transcrição (indireta) da memória de Sócrates, ora como transcrição[3] da ficção de Sócrates, ora como ficção[4] de Platão, ora como uma fusão de géneros textuais, ora como uma fusão de autores. Sócrates não escreve, mas isso não lhe retira a autoria: se foi transcrito (inteiramente?); tal como o escriturário-dactilógrafo do tribunal não é o autor dos testemunhos, tal como Milton é o autor d’O Paraíso Perdido, porque o ditou (cego: fala pura) — Homero é o autor da Odisseia e da Ilíada, porque ouviu e escreveu e alterou as rapsódias[5]. Assim, as hipóteses autorais de Fedro subentendem um segundo diálogo: o diálogo entre a fala de Sócrates e a escrita de Platão; ou o diálogo entre Sócrates, a personagem histórica, e Outro: Sócrates, a personagem literária.
Aliás, parte da literariedade do diálogo é notada imediatamente numa síntese deste: Sócrates convenientemente se depara com Fedro, que lhe conta, encantado (apaixonado), que ouviu um discurso de Lísias sobre o Amor; Sócrates duvida das qualidades do discurso, e exige que Fedro o repita, proibindo-o de o tentar fazer de memória[6], obrigando-o a ler de um pergaminho que convenientemente trouxera consigo e que Sócrates convenientemente notara; Fedro convenientemente obedece[7]; Sócrates, como ator[8], reconta o argumento de Lísias de forma retoricamente superior; Sócrates, como filósofo, discursa com um argumento original[9] e, narrando um mito[10], filosofa sobre a superioridade da oralidade sobre a escrita; Fedro é persuadido, e grava, amorosamente, o discurso de Sócrates na memória, aprendendo que o Amor é indispensável na Didática, religando os dois Temas[11] do diálogo, como duas partes de um único movimento coerente. Esta coerência manifesta a narratividade do texto: literário (autoral), representando Sócrates como protagonista, Lísias como antagonista e Fedro como recompensa do vencedor do conflito — vencido por Sócrates razoavelmente: pela sua razão, a sua inteligência, a sua arte de persuasão, superior (a sua verdadeira arte retórica, contra a falsa de Lísias, inferior). O texto é assim instigado por uma intriga teatral, enfatizada pelo primeiro discurso de Sócrates: teatro dentro do teatro, anacronicamente shakespeariano, representando metateatralmente o interesse do leitor (espetador metonímico) pelo drama (que é Fedro) através do interesse (também amoroso) de Fedro pelo discurso teatral de Sócrates.
No ensaio “Plato’s Pharmacy”, Jacques Derrida torna esta teatralidade, este simulacro, na Diferença entre Escrita e Oralidade (entre Morte e Vida, no idioma socrático):
The powers of lḗthē simultaneously increase the domains of death, of nontruth, of nonknowledge. This why writing, at least insofar as it sows “forgetfulness in the soul”, turns us toward the inanimate and toward nonknowledge. But it cannot be said that its essence simply and presently confounds it with death or nontruth. For writing has no essence or value of its own, whether positive or negative. It plays within the simulacrum. It is in its type the mime of memory, of knowledge, of truth, etc. (Derrida, 1981: 105)
O “esquecimento” total na “morte”, representando no rio Lete, desliga o indivíduo do mundo, e da “verdade”; contudo, não o liga ao falso, tal como o teatro não é falso: liberta-o para a “não-verdade”[12], liberta-o do constrangimento mundano da palavra “verdade”, liberta-o da vida (explicitando a última enumeração: o “etc.”[13]), através de um teatro, um “simulacro”. Simetricamente, “escrever”[14] possibilita ao indivíduo a “verdade”, protegendo-a no tempo, mantendo-a viva, possibilitando o seu estudo, a sua memorização. Esta bifurcação do “escrito” define (indefinidamente) a mimese: transcrição e subversão: mesmo e contrário, “positivo” e “negativo”. A “memória”, o “conhecimento” e a “verdade” são imitados e invertidos, representados num palco “sem valor ou essência seus”: a “escrita”, sem início, sem fim, escrevendo-se apenas a si mesma, apresentando-se livre[15], até de uma “essência”, como um ator. “Escrever” não “tem” “essência”, adquire aquela daquilo sobre que escreve, ou, mais radicalmente: literariamente, torna-se nessa “essência”, torna-se a Razão do seu suposto tema, relativizado sob o seu novo absoluto (a Escritura). Desta forma, este é absolutamente relativo e relativamente absoluto: pode tornar-se tudo e não se submete a nada, nem à sua “essência”, pois não a “tem”. Simétrico, o “escrito” age “simultaneamente”, duplamente exponencial: aumentando os “domínios” “positivos” (“memória”, “conhecimento”, “verdade”, “etc.”) e os “negativos” (“esquecimento”, “não-verdade”, “não-conhecimento”, “morte”) — tudo se radicaliza: ora grafia inanimada, fixa, morta, tinta e papel inorgânicos; ora voz metafórica, animada[16], viva, disseminando-se[17] em infinitos significados. A “escrita” expande cada domínio, apontando-os “em direção” (“toward”) ao infinito, como um espelho: multiplicando os vazios e os não-vazios. Descrevê-la “simplesmente” seria estilhaçá-la ao meio, não a compreender (completamente), seria lê-la “pelo menos” (“insofar”), quando de mais a mais “escrever” aumenta os “domínios” contrários, tal como um espelho aumenta um quarto (e os seus vazios). A simplicidade descritiva[18] desconstrói-se: complexamente, apresentando as aporias de ler o “escrito” “presentemente”, quando este também se esconde: ora vivo, ora morto. O próprio uso do verbo “semear” (vivo: criando vida que possibilita a Vida), para descrever o aumento do domínio da “morte”, “confunde” uma metáfora com a outra (com a “morte” metafórica) — como a mimese se confunde com a “mímica”[19], expressão não-verbal: absolutamente contrária à “escrita” —; ostentando o verbo “confundir” num texto que “confunde” (religa) os dois tipos de “domínios” e nega confusamente uma possível confusão de “escrever”, do “escrito”, da “escrita”, com a “morte” (a confusão platónica que incita o ensaio de Derrida!), recriando a tensão entre os dois tipos de “domínios”, a sua Diferença (a sua Confusão).
A intriga, a diferença entre protagonista e antagonista na obra de Platão, concretiza o pensamento filosófico socrático-platónico (e derridiano), percorrendo as diferenças entre a oralidade e a escrita. Ao ouvir e ver Fedro a ler Lísias, Sócrates fala de um “delírio” (Platão, 2000: 29), como o texto escrito possuísse o leitor, tiranamente (autoritariamente: autoralmente), dominando-o: não dialogando, impondo as suas palavras, que não se harmonizam com o leitor, que não são democráticas. Analogamente, na narração do mito da invenção da escrita, a personagem a quem são apresentados os benefícios da escrita, o rei (ironicamente autocrático), imediatamente a critica: “Ela [a escrita] tornará os homens mais esquecidos, pois […] deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, […] teus alunos […] passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação!” (idem, 121); assim, a escrita seria para “a memória” um veneno[20], apenas oferecendo ao leitor “informações”, sem o ensinar a tratá-las, a retirar-lhes a essência para esta se fixar neles, tornando-se parte da sua sabedoria, tornando-os sábios.
O ensaio derridiano citado é, aliás, incitado pelo uso da palavra “pharmakon” (“remédio” (ibidem) e veneno): ponto de abertura de significado, subvertendo-se o próprio texto, desconstruindo a crítica do rei a partir de dentro (o veneno e o “remédio” destroem a partir de dentro, respetivamente, o corpo e a doença que se tornou parte do corpo):
Socrates compares the written texts Phaedrus has brought along to a drug (pharmakon). This pharmakon, this “medicine”, this philter, which acts as both remedy and poison, already introduces itself into the body of the discourse with all its ambivalence. This charm, this spellbinding virtue, this power of fascination, can be — alternately or simultaneously — beneficent or maleficent. (Derrida, 1981: 70)
Esta “droga”, medicinal “e”/“ou” venenosa, ganha aqui uma “virtude enfeitiçante”, como “poção amorosa” (“philter”), encantando o leitor, como uma “droga” recreativa, viciante, ritmando-o[21] (nesse instante), dominando-o como um viciado, aproximando-o da morte, enquanto o sobrecarrega de prazer, e de vida. A própria “ambivalência” da palavra “pharmakon” exemplifica o “fascínio”, amoroso, que estimula Derrida a escrever o ensaio[22], e, em nós, a lê-lo. Ostensivamente, esta “ambivalência” duplica a sua duplicação: “alternativamente ou [“alternativamente”] simultaneamente”: “alternativamente” e (“simultaneamente”) “simultaneamente” — introduzindo-se positivamente “e”/“ou” negativamente no “corpo” do leitor, como o amor, sem se poder prever o seu carácter antes, nem se poder calcular o resultado depois, devido à perpetuação do “encantamento”[23], que continua em nós muito depois do ato amoroso da leitura (e que continua a não se deixar calcular: aparece e reaparece apenas, e “introduz-se” e reintroduz-se em nós, absortos[24], surpreendidos, fascinados pelo seu mistério).
Depois da interrupção e/ou incorporação do mito da invenção da escrita (como a interrupção e/ou incorporação do anterior excerto derridiano neste ensaio), Sócrates continua a crítica do rei:
os discursos: falam das coisas como se estas estivessem vivas, mas, se alguém os interroga […], limitam-se a repetir sempre a mesma coisa. Mais: uma vez escrito, um discurso chega a toda a parte, tanto aos que o entendem como aos que não podem compreendê-lo e, assim, nunca se chega a saber a quem serve e a quem não serve. Quando é menoscabado, ou justamente censurado, tem sempre necessidade da ajuda do seu autor, pois não é capaz de se defender nem de se proteger a si mesmo. (Platão, 2000: 122, 123)
Segundo Sócrates, o escrito apenas se repete a cada nova interrogação, não respondendo às interpelações do leitor, deixando-o sozinho no próprio silêncio, nas próprias dúvidas. “Mais:” o texto divulga-se, chegando a quem o compreenderá e a quem não o fará, arriscando sempre ser mal lido, por má compreensão; ou por má intenção: por leitores que queiram usar o texto para os seus próprios propósitos[25], não se podendo este defender, frágil como uma folha de papel, tão frágil às críticas justas como às injustas. “Mais:” é implicitamente delatada a artificialidade da escrita, enumerando-se a lista de invenções (“os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados e, finalmente, […] os caracteres gráficos” (idem, 120)) que o deus Thoth teria inventado antes desta: final produto do seu divino artifício, oposto à naturalidade, à espontaneidade, da oralidade: primordial, pura, sincera, supostamente.
Sobre este último ponto, Derrida marca a diferença (em Sócrates) entre a verdade e o escrito: a sua insinceridade, a sua artificialidade:
The incompatibility between the written and the true is clearly announced at the moment Socrates starts to recount the way in which men are carried out of themselves by pleasure, become absent from themselves, forget themselves and die in the thrill of the song (Derrida, 1981: 68)
Quando lê (o “escrito”), e quando escreve (leitura radical), o indivíduo liberta-se de si mesmo, esquece-se de si mesmo (tal como um morto, depois de beber do rio Lete), desaparecendo a sua consciência da “verdade”: a droga, alucinatória, quebra os limites da realidade, enlouquecendo-o no excesso de “prazer” (excessivo para a autoconsciência), alienando-o — assim se introduz a referência de Sócrates aos quatro tipos de loucura: a Demência (exemplificada na esquizofrenia fingida do primeiro discurso[26] de Sócrates: teatral), a Profecia (exemplificada pela possessão da voz de Sócrates, narrando o mito da invenção da escrita, dedicando a sua voz aos deuses, como uma possessão oracular), o Amor (exemplificado pela tripla loucura amorosa de Lísias, Sócrates e Fedro, especialmente na loucura ciumenta de Sócrates, ameaçado pelo louvor a Lísias por Fedro, que estimula o drama) e o Poema (como forma radical de literatura[27]: forma radical de escrita: forma radical de expressão — tornando este texto metapoético, e poético: Escrito).
Esta última delação de Sócrates, sobre a artificialidade da escrita, reconduz-nos circularmente (retoricamente) para a primeira crítica desta: o simulacro escrito. A escrita simula (artificialmente) a vida, enganando o leitor, aproximando-o da morte, afastando-o da vida, da boca, do fôlego — como Derrida explana:
For it goes without saying that the god of writing must also be the god of death. We should not forget that, in the Phaedrus, another thing held against the invention of the pharmakon is that it substitutes the breathless sign for the living voice, claims to do without the father (who is both living and life-giving) of logos, and can no more answer for itself than a sculpture or inanimate painting, etc. (idem: 91, 92)
A droga (o “pharmakon”) “substitui” a vida, sendo a forma desesperada[28] de lidar com o trauma[29], de evadi-lo: evadindo-a, criando um novo mundo: substituindo Deus (o “logos”), colocando-se fora do poder Dele, saindo do mundo (como a “morte”), e recriando-o, com outra Razão (outra Lógica), já não ligando o sensível ao inteligível, como um intermediário, mas fundindo os dois: sentindo aquilo que se intelija. A “escrita” é assim blasfemadora[30], como, ostensivamente, são os textos heréticos que O alteram: como os textos de João Calvino ou Lutero[31]. A comparação da “escrita” à “escultura” e à “pintura” não é apenas descritiva: estas são obras de arte, novos absolutos: contra Deus[32]. Aliás, o deus central de cada religião separa-se repetidamente do reino da “morte”, como uma falha no poder desse deus-rei[33]: Zeus não domina Hades, Rá não domina Anúbis, até Deus não domina totalmente Satanás, cujo poder é inferior[34] a Deus, mas ambiguamente livre, reinando absolutamente no seu submundo[35]: o espaço da verdadeira “morte” (no Céu, revive-se, e reza-se), a verdadeira não-vida. A “escrita” “substitui o signo sem fôlego pela voz viva”: a “escrita” anima o morto (o “inanimado”), substituindo o “pai” (Deus), “dando vida” em vez Dele (roubando-lhe o poder), subvertendo a razão divina, subvertendo a Diferença entre vida e “morte” — coerentemente, esta substituição é ambígua: dupla, pois também a “voz viva” é substituída pelo “signo”, transformando-se neste; o fôlego também desaparece, sufocado pelos caracteres gráficos, num assassínio: sem a permissão (judicial) do “pai”. As semelhanças entre a “escrita” e a “morte” não se limitam a esta simbologia: “escrever” é morrer, é tomar consciência dessa inevitabilidade[36], é expor a mortalidade do humano, é manifestar a sua efemeridade na durabilidade da “escrita”.
A segunda crítica de Sócrates à escrita é a tirania (como a Morte: absoluta), seguindo servilmente a primeira crítica: a escrita é tirana porque não vive, não dialogando com o leitor, simplesmente se impõe através dos seus caracteres gráficos imutáveis, num monólogo. No entanto, Fedro também é manipulado por Sócrates, que impõe que o seu interlocutor leia o texto de Lísias, para, de seguida, o poder persuadir, para o pôr sob o seu poder. O próprio método socrático, dialógico, envolve uma contínua e subtil manipulação através de perguntas, direcionando o interlocutor para certas respostas, criando a ilusão de que o discípulo chega sozinho à conclusão, como esta fosse natural. Neste sentido, toda a comunicação é, mais ou menos, tirana: uma força, contra-atacada ou não, mas sempre exercida sobre o Outro, que se harmoniza, mais ou menos, forçosamente.
Em Derrida, a tirania da oralidade — a tirania inversa à delatada por Sócrates — manifesta-se no próprio rei do mito da invenção da escrita, rei dos deuses[37], que avilta ostensivamente o deus Thoth: “God the king does not know how to write, but that ignorance or incapacity only testifies to his sovereign independence. He has no need to write. He speaks, he says, he dictates, and his word suffices.” (idem, 76); “Deus” “não precisa de escrever”[38] (e, logo, não escreve), a sua voz já é imortal — só alguns dos seus profetas escrevem, enlouquecidos (inspirados) pela “palavra” divina: como a lessem. Desta forma, a escrita é a possibilidade do mortal conceber algo imortal, divino, igualando-se por um instante[39] a “Deus”: é o húbris original[40], do qual o castigo é a irónica ostentação da fragilidade (da mortalidade, da inferioridade) do humano na duração da sua escrita, dos seus pequenos caracteres gráficos, meros traços num papel, que duram até muito depois de o indivíduo morrer, que duram até muito depois de esse infinitamente complexo indivíduo se simplificar como vaga memória, ou mero nome, que duram até muito depois de qualquer memória ou registo de esse indivíduo ter desaparecido, e este ser esquecido (como também todos os outros indivíduos tivessem morrido), como este nem tivesse morrido (ou vivido).
A crítica seguinte de Sócrates (na voz do rei) à escrita é o seu carácter amnésico, facilitando de tal forma a aquisição de informação que a memória se definharia, como um músculo ocioso. Contudo, a escrita, quando utilizada com curiosidade, funciona como um sistema de anotações, fixando partes do presente para revisitações futuras, funcionando como auxiliar de memória, uma muleta para nós (os coxos: sem memória fotográfica) — tal como o deus Thoth, autor mítico da escrita, a entende, contra a opinião de Sócrates, autor deste mito da escrita. A própria metáfora de Sócrates “gravando na alma” (Platão, 2000: 127), descrevendo o bom discurso oral, é ambígua: Sócrates implicita que a escrita (gravação) dura, que não se esquece, tal como o bom discurso oral, metaforizado nela: análogo. Não só a escrita dura fisicamente, através da inscrição de caracteres que duram mesmo depois da morte do autor (como no caso de Sócrates, morto há mais de 2400 anos, ainda lido agora) e dos interlocutores, coetâneos, mas também dura através de uma presença na escrita, um estilo, uma particularidade, que ressuscita o autor em cada leitor, aparecendo-lhe, quase oral: quase de “viva voz” (idem, 128), como um fantasma. Essas palavras até poderão durar mais do que aquelas que se ouvem num discurso oral espontâneo, pois a escrita poderá ser ponderada, esculpida com o tempo, aperfeiçoada, manifestando o trio “do justo, do belo e do bom” (idem, 124) de forma superior às próprias possibilidades da oralidade, tão falível quanto os instintos humanos. Quantos textos escritos se gravam nas almas dos leitores, como os poemas aprendidos de cor: no coração, na alma[41]? E quantos desses textos não foram ponderados: escritos, parcialmente rasurados, e rescritos até atingirem o seu estado atual: duradouro porque artificioso?
A duração do texto[42], extrema na poesia, provém do seu carácter ditatorial[43], ditando-se na voz que lê, que canta, que relê (citando agora Derrida em Che cos’ è la poesia?):
Mesmo que de todo não pareça, pois desaparecer é a sua lei, a resposta vê-se ditada. Eu sou um ditado, profere a poesia, aprende-me de cor, recopia-me, vela-me e guarda-me, olha-me, ditada, sob os olhos: banda sonora, wake, traço de luz, fotografia da festa em luto. […] Ela vê-se ditada, a resposta, sendo poética. E, por isso, tendo de se dirigir a alguém, singularmente a ti, mas como se se dirigisse ao ser perdido no anonimato, entre cidade e natureza, um segredo partilhado, a um tempo público e privado, absolutamente um e outro, absolvido de fora e de dentro, nem um nem outro (Derrida, 2003: 5)
O poema (e a escrita metonimicamente) dirige-se singularmente a cada leitor, transformando-se pessoalmente através da leitura, marcada pelas experiências de cada um, tornando-se num objeto valiosíssimo para esses, que guardam o poema como este fosse morrer (“desaparecer é a sua lei”), tentando gravá-lo na sua memória[44] para o proteger do tempo — enquanto o contrário ocorre: o poema continuará escrito depois da morte dessa memória, reaparecendo a cada leitor devotado, que substitui todos os que leram e morreram. Toda a leitura é assombrada pela morte: “festa em luto”, celebrando o instante triunfante da “poesia”, enlutado pela consciência de que esse instante passa, só sobrevivendo uma “banda sonora” (o poema como canção), uma “fotografia” (o poema como contraste entre “luz” e escuridão, imagem total: “traço de luz” rasgando o tempo); estas representações tentam preservar o instante, como um “wake”, uma vigília por um morto, a presença intempestiva (e dolorosa: insone, como a morte fosse um sono hiperbolizado) homenageando o que se perdeu: absolvendo-se do pecado de ficar, de viver. Neste movimento, o leitor devota-se, torna-se anónimo (“perdido”), e decora o poema, que se grava nele, que o torna pura voz, virada para “dentro” (memorando-se, dirigindo-se a si mesmo, ao seu “segredo partilhado” com o poema) e para “fora” (recitada para os Outros, para eles o gravarem, para o protegerem da morte do recitador). O leitor-recitador ama o poema, e aprende-o “de cor”, gravando-o no coração, fundamentando o mais fundamental dos símbolos poéticos, a metáfora mais enraizada na língua: o coração amante.
De seguida, Sócrates critica a repetição eterna da escrita, que nunca responde às perguntas do leitor. No entanto, no próprio método socrático também nunca se dá as respostas às perguntas do interlocutor, apenas se coloca novas perguntas, tal como um texto escrito, que, em cada releitura, se reescreve, perguntando algo de novo ao leitor, sugerindo um novo texto: dando novos significados às leituras anteriores, que se multiplicam diferentemente: que nunca se repetem.
Esta multiplicação é um jogo (como mais um jogo de linguagem de Wittgenstein), como joga Derrida em Of Grammatology:
Here one must think of writing as a game within language. (The Phaedrus […] condemned writing precisely as play — paidia — and opposed such childishness to the adult gravity [spoudè] of speech). This play, thought as absence of the transcendental signified, is not a play in the world, as it has always been defined, for the purposes of containing it, by the philosophical tradition (Derrida, 1997: 50)
A “escrita” não tenta conter (representar) “o mundo”: esvazia-o (ou, pelo menos, ostenta os seus vazios: desconstrói-o) e recria-o: apresentando um mundo Diferente, já não contido pelo transcendente, por Deus, pelo pai (“adulto”), grave, libertando-se criativamente Deste; este movimento não deixa uma carência, mas abre um espaço: uma potência, possibilitando os extremos da criação, agudos. Este “jogo”, este “teatro” (duplo significado de “play”), joga-se inocentemente: esquecendo “o mundo”, como uma criança, que não o tenta imitar, mas representar a sua imaginação nesse, como esse fosse só um palco, contendo a criança os referentes mundanos, usados originalmente, como excêntricos vestuários para as personagens. “A tradição filosófica”[45], grave, paternal, tentou definir a “escrita” como “ausência”, sendo o trabalho da Desconstrução (de Derrida) mostrar que a “escrita” não pode ser contida por essa “tradição”, porque se liberta a cada instante, como cada “jogo” é sempre diferente do anterior: marcado no tempo e no espaço atuais, vigentes, absolutos: Agora e “Aqui”.
Pensando nesta Diferença: entre jogo e fixação (e gravação), entre multiplicação e singularidade, podemos responder à crítica seguinte de Sócrates: a omnipresença do texto escrito, que, não conhecendo e não escolhendo o leitor, não se relaciona diretamente (amorosamente) com este, não o tocando fertilmente para (pro)criar conhecimento. Na verdade, a propagação indiscriminada é, pelo contrário, uma vantagem para a fertilidade do texto escrito, que, ao não encontrar o leitor perfeito, se multiplica a cada leitura, sempre imperfeita, mas infinda, abrindo-se ao longo dos tempos. Aliás, o duplo final em “chave de ouro” (como um clímax, também retórico) — na palavra “comum” (Platão, 2000: 131) para a última fala de Fedro e na palavra “vamos” (ibidem) (na primeira pessoa do plural) para a última fala de Sócrates —, além de ostentar a literariedade do texto (e o seu carácter ponderadamente escrito: crescente: estruturado: não-espontâneo), também relembra que o escrito também é germinal para a conceção de uma comunidade cultural, inscrevendo-se numa memória coletiva (também escrita), como, por exemplo, o escrito Fedro se inscreve na memória coletiva do Ocidente, mais seguramente (profundamente) do que uma tradição oral, frágil como a memória de uma geração, tão frágil quanto violentas são as modas, amnésicas, da humanidade. Além disso a propagação do escrito também não é indiscriminada: o leitor transforma o texto com as suas experiências, e transforma o texto em algo necessário, algo que o procurou, algo que o tinha de procurar.
De seguida, Sócrates critica a fragilidade da escrita; que pode ser sempre atacada, e até desapossada, devido à ausência do seu autor, especialmente com o passar do tempo, e com a diversificação das suas leituras, por vezes cada vez mais afastadas do texto original. Esta ataque à escrita, contudo, inversamente, subentende um dos pontos fortes dela: a sua resistência ao tempo, a sua resistência à morte do autor (ao contrário da oralidade: de “viva voz” (idem, 128)), compensando a possível fragilidade enunciada. Além disso, também a oralidade é frágil: o discurso de Sócrates constantemente luta contra si mesmo: ataca-se e distingue-se, como o estilo paradoxal, tenso, de Sócrates fosse a sua própria singularidade, aquilo que faz com que o texto resista ao tempo, como evento textual único. O discurso oral pode ainda, exatamente como o discurso escrito, ser reinterpretado pelo ouvinte mais tarde, regravando-se na sua alma, conforme as suas experiências futuras, possivelmente corruptoras. Por outro lado, o escrito também tem mecanismos de defesa, pois outros leitores protegerão o texto, através das suas leituras fiéis, que contra-atacam quando comunicam com os leitores infiéis: os não-leitores, que corrompem o texto, quando aparentemente o descrevem ou o ponderam. Ostensivamente, Fedro, esse texto também sobre a força da oralidade, é frágil porque foi transcrito, porque durou: ainda hoje escrito, ainda contradizendo uma das suas próprias teses.
Esta durabilidade da escrita, esta luta contra a morte, ostentada belicamente, é a tensão, o desejo, que estimula o indivíduo a escrever (voltando a citar Derrida em Che cos’ è la poesia?):
Ouves a chegada da catástrofe. Desde então, impresso no próprio traço, vindo do coração, o desejo do mortal desperta em ti o movimento (contraditório, acompanha-me, dupla restrição, imposição aporética) de proteger do esquecimento esta coisa que ao mesmo tempo se expõe à morte e se protege (Derrida, 2003: 7)
Na escrita, a “morte” é invocada, desafiada e combatida: dramaticamente. Contudo, a contradição interna torna a escrita protagonista e antagonista, combatendo a “morte” e matando o leitor (e o escritor) inocente — pois escrever também é morrer, é escrever a mortalidade em nós, é saber[46] que todo o humano já morreu pouco[47] depois de nascer, é saber que o escrito vai durar mais do que nós. Pelo contrário, divididos na aporia, que tiranamente se impõe (forçando-nos a escrever), escrevemos para tentarmos sobreviver, para evitarmos o “esquecimento”, tentamos guardar a nossa voz para a posteridade — esquecemo-nos que escrever é já esquecer o mundo, é separarmo-nos dele, que escrever é acelerar a nossa morte, é protegermos somente “esta coisa”, que não é a nossa voz (oral); “esta coisa”: sem definição, que não conseguimos conter, mas que nos impele a protegê-la, mesmo sacrificando a nossa vida. Escrever é imortalizar o escrito, nunca o escritor — deste apenas dura “o desejo” que o escrito sobreviva, o medo provocado pela ameaça da “catástrofe”: a consciência da morte, a consciência que é escrever e que impõe escrever, esquecendo o indivíduo que também ele queria sobreviver.
Por último (como já tínhamos revisto), Sócrates acusa a escrita de artificialidade, de insinceridade, contra a espontaneidade, a naturalidade, da oralidade, sincera. É assim peculiar que ele exemplifique repetidamente o contrário: primeiro, obriga Fedro a ler Lísias, já que o último se encontra “presente” (Platão, 2000: 13) no pergaminho, contradizendo a própria ideia de que só existe presença do autor na oralidade e usando este novo pressuposto, agora vantajoso, para desconstruir o escrito de Lísias, que não pode responder; usando depois as técnicas de retórica que critica em Lísias para persuadir Fedro. Aliás, a quase-didascália “Vou cobrir a cabeça para falar” (idem, 36), antes de Sócrates começar o seu discurso retórico, apresenta a possibilidade de se fingir oralmente, e até de se mentir, de se colocar uma máscara (dissimulada ou ostensiva) para falar. Noutros momentos, ainda outros sofismas são usados: na crítica ao discurso de Lísias, este é discutido como fosse um exemplo de todos os textos escritos, generalizando características específicas desse texto; outras vezes, usando uma falácia ad hominem, Sócrates ataca os valores pessoais do discursador para desacreditar os seus discursos. Desta forma, Sócrates mostra que a presença pode ser usada para intensificar o engano, usando o amor da comunicação íntima como meio de traição, de persuasão, tornando o orador num ator, e possivelmente num sofista. Inversamente, nada impede de se escrever com toda a sinceridade, por exemplo, numa carta amorosa que escave o íntimo do autor, ou num testamento, já sem os habituais motivos para a insinceridade: publicado post mortem, sem a “viva voz” (idem, 128), demasiado preocupada com as possíveis respostas alheias.
Ultimamente, em Of Grammatology, Derrida desconstrói a questão da artificialidade da escrita, a questão da naturalidade da oralidade, reescrevendo a origem das duas:
[De acordo com o Fedro de Platão] Writing is the dissimulation of the natural, primary, and immediate presence of sense to the soul within the logos. Its violence befalls the soul as unconsciousness. Deconstructing this tradition will therefore not consist of reversing it, of making writing innocent. Rather of showing why the violence of writing does not befall an innocent language. There is an originary violence of writing because language is first, in a sense I shall gradually reveal, writing. “Usurpation” [termo saussuriano] has always already begun. (Derrida, 1997: 37)
A “linguagem” é “primeiramente” “escrita”: a partir do momento em que a “escrita” foi inventada, a nossa forma de usar a “linguagem” mudou radicalmente, como uma nova invenção desta: como a linguagem pré-escrita e a “linguagem” pós-escrita não estivessem ligadas, como a “escrita” tivesse inventado a “linguagem”, e a oralidade “ocorresse azaradamente” (befall) depois. A “usurpação” “sempre” existiu, a oralidade “sempre” teve em si o desejo de se imortalizar, de resistir à morte, à memória, aos humanos, aos barulhos do mundo, e, por isto, a “escrita” foi inventada, por isto, antes da “linguagem”, os humanos desenhavam (caracteres?), tentando imortalizar uma pré-linguagem: o pensamento que neles corria. Na invenção histórica da “linguagem”, na necessidade de comunicar com o Outro, já se desejava a imortalização: tornar o indivíduo resistente à sua morte, passando uma parte sua para o Outro[48]; a “escrita” é a radicalização deste desejo — contudo, foi de tal forma radical que colocou a oralidade contra o desejo da “linguagem”: contra o próprio desejo da oralidade (a “usurpação” é, assim, também da oralidade, que tenta tirar o lugar “original” da “escrita” — como a “escrita” tenta, e consegue, usurpar a “alma”, o indivíduo, o mundo e Deus).
Regressamos então ao amor (ao desejo), à forma como Sócrates define a ligação mestre-discípulo[49]. Esta ideia didática percorre o texto, de tal forma que se torna parte do estilo de Sócrates, parte da singularidade que o torna autor (nem que seja um autor dentro do autor Platão, como um heterónimo pessoano dentro do “drama em gente”). Este estilo socrático, sistematizado no método socrático, apenas dura pela sua passagem à escrita, essencial para o carácter autoral de Sócrates; aliás, funcionando a oralidade analogicamente à escrita, como ensinamento que se concretiza diferentemente em cada discípulo, tal como o texto escrito se concretiza diferentemente em cada leitor. De igual forma, afirmar não-escrever, apenas andar (sendo tão difícil simultaneamente escrever e andar) e falar, é parte do seu estilo, metáfora da mobilidade do diálogo, contra a escrita, imóvel, ponderada, sentada. A sua voz, autoral, concretiza-se ainda na sua ironia singular: quando descreve Lísias como “presente” (Platão, 2000: 13), quando enuncia a Fedro um discurso para Fedro nunca mais lhe ler um discurso (ironicamente, Sócrates reconhece a autoria, a autoridade, de Lísias, submetendo-se ao autor: tirano). Todas estas características criam o autor Sócrates, gravando-o na memória dos discípulos, não por ser oral, mas por ser autor: singular (e pseudo-oral: mais uma parte da sua singularidade). Assim, o Fedro de Platão persiste, “gravando na alma” (idem, 127) dos leitores as mesmas palavras há quase 2400 anos, escolhendo os justos leitores (tal como Sócrates escolhia os seus discípulos), aqueles que o leem devocionalmente, amorosamente, aqueles que compreendem o texto, ignorando aqueles que meramente atravessam o texto com os olhos, e não o compreendem.
Considerada a bipolaridade[50] (oral-escrita) da autoria de Sócrates, coloca-se uma pergunta: a autoria é sempre escrita? Vejamos as palavras de Sócrates: “os nossos políticos mais vaidosos são justamente aqueles que fazem muitos discursos, que se dedicam à logografia, ansiosos de deixarem os seus escritos para a posterioridade” (idem, 82); é irónico (e coerente: tenso) que este mesmo desejo pareça mover Sócrates: Sócrates quer que a sua voz se grave na alma de Fedro, que fique para “a posterioridade”; ou seja, quer que o seu estilo dure, pois Sócrates sente vaidade deste (como fosse a verdade), ostentando-o a Fedro. Assim, poderia parecer que pode existir um estilo sem escrita; no entanto, isto apenas acontece numa inversão da relação da oralidade com a escrita (tal como na desconstrução de Derrida): a escrita deixa de ser a representação possível da espontaneidade da oralidade, e a oralidade passa a ser a tentativa de representar a ponderação da escrita — a oralidade passa a ser uma teatralização da escrita: através da prosódia, dos gestos, da retórica, tornando a oralidade numa mera metáfora da escrita, um estilo que inverte singularmente a origem da escrita e da oralidade, criando uma singularidade estilística, um autor: Sócrates (tal como Derrida narra outra origem da escrita e da oralidade).
Bibliografia:
– Derrida, Jacques (1981), Dissemination, trad. Barbara Johnson, Chicago, University of Chicago Press.
– Derrida, Jacques (1997), Of Grammatology, trad. Gayatri Chakravorty Spivak, Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press.
– Derrida, Jacques (2003), Che cos’ è la poesia?, trad. Osvaldo Manuel Silvestre, Coimbra, Angelus Novus, Editora.
– Platão (2000), Fedro ou Da Beleza, trad. Pinharanda Gomes, Lisboa, Guimarães Editores.
-
Consideremos que Platão assina antes do corpo do texto, como numa capa de um livro. ↑
-
Tal como Pessoa, para completar a sua poesia, inventa o próprio mestre. ↑
-
Duplamente indireta: ficção Doutro. ↑
-
Diretíssima: uma ficção é a sua própria origem: transcreve-se. ↑
-
Os recitadores das rapsódias são neutros: não-autorais; mas os rapsodos problematizam a sua autoria, ora recitando, ora recriando-as (reescrevendo-as, metaforicamente). ↑
-
Convenientemente, Fedro ainda não decorara o discurso de Lísias. ↑
-
Considerando o texto ficcional, note-se a paródia (literária) do estilo de Lísias (também personagem histórica). ↑
-
Mascarando o seu amor por Fedro, como um jogo de sedução. ↑
-
A palinódia (a retração do argumento anterior) ostenta a literariedade do texto, a sua desconstrução de normalizações linguísticas, subvertendo a aparente sequencialidade das frases: rasurando-as e reescrevendo-as, enquanto se escrevem: uma
autocrítica hiperbólica: literária, e metaliterária. ↑ -
Texto literário dentro do texto: metaliterário (e literário). ↑
-
Socraticamente, já a Retórica se fundira antes com a Didática. ↑
-
E não para a inverdade — Derrida (através da sua tradutora, Barbara Johnson) não usa o termo “untruth”, mas “nontruth”, como não usa “unknowledge” (desconhecimento), mas “nonknowledge”, enfatizando a negação dos termos (usando a palavra “não”, em vez de um outro prefixo com significado possivelmente igual, mas, assim, menos enfático, por possivelmente não ser pura negação): a simetria, que não é uma carência, mas uma abertura no sentido contrário. ↑
-
A vida multiplica-se, infinita, no “etc.”, que subentende reticências — a “morte” finda em pontos finais: duas vezes depois de “não-conhecimento”, uma vez depois de “não-verdade” e outra vez depois de “negativo”. ↑
-
“Writing” tem três traduções possíveis, tendo triplo significado em inglês: como nome, é “escrito”, fixa-se, é “morte”; como verbo, é “escrever”, move-se, é vida, ação; como nome da ação é “escrita”, jogando com a vida e com a “morte” — “simultaneamente”. ↑
-
Somente “no seu tipo”: sem “tipo”. ↑
-
A palavra “alma” (“soul”) provém do latim “anima”. ↑
-
O ensaio “Plato’s Pharmacy” encontra-se no livro Dissemination, com outros ensaios de Derrida. ↑
-
A grafia como “simplesmente” mais um sistema semiótico. ↑
-
A palavra “mime” é complexamente ambígua neste excerto: é o nome de um género de drama grego: uma farsa paródica (como o discurso de Lísias); assim como é a “mímica”: a expressão de ideias sem recurso a palavras: metaforizando a grafia através de um antónimo, tornando a “translação” (da metáfora) o mais extensa possível — adicionalmente, a “mímica” é o que imita e não, reforçando a necessidade do elemento prefixal “não” na negação dos “domínios” “positivos”. ↑
-
O contrário do “remédio” (ibidem) que o deus Thoth, criador (escritor, autor) da escrita, prometera. ↑
-
Como o hábito de um viciado. ↑
-
Como uma carta de amor é estimulada. ↑
-
A importância da escrita na magia (nos livros de encantamentos, nas palavras mágicas) é aqui sugerida: misteriosa, antiga (perpétua), eticamente ambígua, tal como a escrita, tal como o amor — cujos rituais funcionam aos pares: entre amado e amante, entre escrito e leitor, entre encantador e encantado. ↑
-
Absortamente, o próprio Derrida parece, contra o próprio texto (ambiguamente, bifurcadamente: apropriado ao próprio texto: linearmente: contra o próprio texto, etc.), tender para a leitura positiva de “pharmakon”, usando a palavra “virtude”, manifestamente positiva — ainda desconstruindo o sentido cristão da palavra, usando-a para descrever a bruxaria, hiperbolicamente blasfemadora: não havendo dito mais sacrílego do que o de um feitiço. ↑
-
O caso extremo deste fenómeno é a apropriação dos termos nietzschianos pela ideologia nazi. ↑
-
Em relação ao segundo discurso: socrático. ↑
-
Tal como o Teatro. ↑
-
A morte é não esperar. ↑
-
A desconstrução do uso de drogas talvez possa começar por uma famosa citação de Tom Waits: “A realidade é para as pessoas que não conseguem lidar com as drogas”. ↑
-
Sendo fundamental para o Islão que o profeta Maomé tenha decorado o Corão, e nunca o tenha escrito. Coerentemente, podemos pensar na fatwa a Salman Rushdie pelo romance (literário: Escrito) Os Versículos Satânicos — o próprio nome do seu presumível movimento literário (o Realismo Mágico) é já blasfemador: criando uma nova Razão (mágica, satânica) para o mundo. ↑
-
Note-se também na relutância histórica da Igreja Católica em permitir traduções da Bíblia, pois traduzir, transcrever para outras línguas, é subverter Deus, é reinterpretá-Lo. ↑
-
Note-se ainda que o Islão proíbe a representação do profeta Maomé: a sua transformação em imagem: a sua subversão. ↑
-
A omnipotência de Deus, o nosso terror omnipresente, parece desaparecer depois da “morte”, quando a nossa eternidade já ficou decidida. ↑
-
Também geograficamente. ↑
-
Subterrâneo: oculto, tal como a “escrita”: silenciosa. ↑
-
Tomar (como uma droga) consciência da “morte” é começar a morrer, é começar a sentir os efeitos desta. ↑
-
Ostensivamente tirano. ↑
-
A apresentação do cognome de “Deus” sem pontuação (“God the king” em vez de “God, the king(,)”) oraliza a escrita, representando estilisticamente a divina incapacidade de escrever. ↑
-
O instante em que o indivíduo é aquilo que concebe, em que se esquece na escrita: sendo-a. ↑
-
A maior blasfémia possível: a vaidade extrema — o recorrente instigador das tragédias gregas. ↑
-
Rememorando, de cor: sem citar bibliograficamente (por agora), Derrida em Che cos’ è la poesia?. ↑
-
A sua gravação na alma do leitor. ↑
-
Derrida desconstrói a noção de “pontos fortes” ou “pontos fracos” da escrita: cada ponto é essencial para a existência de todos os outros, como a loucura é necessária para a criação do sublime. ↑
-
Desesperadamente: sendo a memória tão vaga e o poema tão preciso. ↑
-
Pelo menos desde a sua origem socrática-platónica. ↑
-
Pela História (escrita), pelos obituários (escritos). ↑
-
Relativamente à História. ↑
-
Que este desejo não se cumpra: que o Segredo de cada um não passe para o Outro, quer na oralidade, quer na “escrita”, não apaga o desejo, pelo contrário: aumenta-o, torna-o mais violento — por muito violenta que seja a “escrita”: matando o mundo (e o leitor, e o escritor), o desejo louco de o escritor se tentar imortalizar não desaparece. ↑
-
Enfatizando a origem etimológica da Filosofia: o amor pelo conhecimento. ↑
-
Também o Amor é bipolar, até nas relações amorosas polígamas: que multiplicam os pares amorosos. ↑