A Cortiça: arte milenar e muito portuguesa

Quando vem à conversa as contribuições portuguesas para os mercados internacionais, é quase inevitável aparecer o exemplo da cortiça. É um facto bem conhecido: Portugal é o maior exportador mundial de cortiça. Contribuindo com cerca de um terço de toda a produção de cortiça no mundo, a exportação portuguesa de cortiça faz-se maioritariamente na forma de rolhas, pois é uma indústria sinergética com a vinicultura, outra exportação portuguesa famosa. Apesar de factualmente corretas, estas afirmações não são representativas da realidade complexa desta indústria histórica.

A cortiça não é uma indústria dominante na economia portuguesa nem mesmo na exportação. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, a exportação de cortiça, bruta e manufaturada representou cerca de 2,8 % da exportação total em 2023 (1). Aliás, os maiores setores de exportação portuguesa não são os agroflorestais, mas sim os industriais, nomeadamente metais, minérios e maquinaria (2). E mesmo no setor florestal, a cortiça e produtos derivados constituíram somente 20% das exportações em 2021, o que corresponde à segunda maior depois de papel e cartão (35%) (3).

Apesar de tudo isto, o sobreiro e a cortiça são um elemento importante na economia, na paisagem ecológica e na cultura portuguesa. Em 2011, o sobreiro foi nomeado a árvore nacional de Portugal no Parlamento, ocupando assim o mesmo repertório de símbolos nacionais que o galo de Barcelos, o fado, o pastel de nata e a esfera armilar. Contudo, esta dimensão é bastante exclusiva do contexto rural, perdendo-se a sua percepção nos meios urbanos, onde se vê reduzida a rolhas e artesanato de feira.

Gostaria, por isso, de dar a conhecer melhor esta indústria, não única, mas tipicamente portuguesa: a sua história, as suas práticas e como se adaptou e perdurou até aos dias de hoje.

O sobreiro encontra-se em maior concentração no território português, o qual acolhe 34% de toda a população mundial (4). Reside nos chamados montados, ecossistemas semi naturais tipicamente mediterrânicos ocidentais, criados e mantidos desde a Antiguidade. São designados sistemas agroflorestais, pois sustentam-se a partir de um equilíbrio entre a flora florestal e a agrícola, e só podem ser sustentados manualmente. Este hibridismo permite suportar inúmeras espécies de flora e fauna, bem como sustentar várias atividades agrícolas, como a criação de gado, o cultivo de cereais, a agropecuária e a exploração florestal. É um ecossistema que domina muita da paisagem rural portuguesa a sul do rio Mondego, assim como, embora em menor quantidade, das planícies espanholas, da costa mediterrânica francesa, da zona litoral do zagreb e da península italiana. Os montados têm diversas tipologias determinadas pela espécie arbórea predominante: a azinheira, o sobreiro, o carvalho e o castanheiro. Os dois primeiros, os azinhais e os montados de sobro, são os mais prevalentes em Portugal. Enquanto o azinhal se caracteriza por ter uma finalidade mais agrícola, no cultivo de sequeiro e na criação de gado de médio e grande porte, o sobreiral tem uma finalidade mais florestal, na extração de madeira e de cortiça.

E que outro melhor material para extrair! A cortiça é deveras versátil: é um excelente isolador térmico, acústico e elétrico; é também impermeável e flutuante, imputrescível e inócuo, leve e maleável (5). Para além desta já vasta panóplia de propriedades, a cortiça tem ainda a vantagem ser um material completamente natural, sendo por isso renovável e reciclável. Face a este repertório de qualidades, percebemos bem o uso da cortiça desde muito cedo por diversas culturas mediterrânicas. Gregos, romanos, egípcios, babilónios e ibéricos de todas as épocas, fabricavam as suas ânforas, bóias, batoques, tarros e outros objetos, a partir da cortiça (6). Para além destes artefactos, a cortiça provou também ser um ótimo material de construção, graças às suas qualidades isoladoras e à sua longevidade. No contexto português em específico, revestimentos e coberturas de pranchas de cortiça são um elemento recorrente da arquitetura rural e até mesmo religiosa, compondo paredes e tetos de vivendas, silos, celeiros e inclusive conventos, como, por exemplo, o Convento dos Capuchos em Sintra e o Convento da Arrábida em Setúbal.

Contudo, a cortiça apresenta uma desvantagem determinante: o sobreiro é uma árvore de crescimento lento e sensível, fazendo da sua exploração um processo igualmente demorado e difícil. Do lande (ou seja, da bolota) à árvore, o sobreiro demora cerca de 30 anos a enraizar e a crescer. Quando o tronco atinge um diâmetro de 60 ou mais centímetros (6), é feita a primeira tiragem da cortiça, entre maio e agosto. Usando somente a machada corticeira, um rancho de tiradores “descasca” o sobreiro da sua cortiça sem danificar o tronco, o que poderia, doutro modo, comprometer a habilidade de regeneração do sobreiro e a subsequente qualidade da cortiça criada. É um trabalho rural que permanece praticamente inalterado desde, pelo menos, a Idade Média, cujo conhecimento e experiência continua a ser passado oralmente através de um sistema de aprendizagem. E sendo um ofício altamente especializado, que requer muito cuidado, perícia e paciência, o novelo (ou seja, o aprendiz) tem de aprender durante três anos antes de poder realizar a sua primeira tiragem. Após cada descortinamento, o sobreiro necessita de nove anos para regenerar uma nova camada de cortiça, que vai ficando progressivamente mais espessa e menos porosa com cada tiragem, atingindo o seu auge de qualidade a partir da terceira ou quarta época, tendo em conta condições ideais e ausência de imprevistos. Doenças, maus anos agrícolas, um golpe descuidado, insetos como a cobrilha da cortiça, que forma galerias dentro da cortiça (7), são algumas das fontes de ansiedade para a indústria corticeira.

É, curiosamente, esta dificuldade, este temperamento, que sempre garantiu uma posição privilegiada de Portugal na prática corticeira. Enquanto os processos foram evoluindo no tratamento, na transformação e nos usos potenciais da cortiça, a tiragem permaneceu intocável ao progresso. A automatização do processo de tiragem é ainda hoje um desafio de engenharia por resolver, devido essencialmente à complexidade do processo e ao cuidado requerido. Mais ainda, mesmo com os melhores cuidados e práticas na plantação e tratamento do sobreiro, não se conseguiu ainda acelerar os seus processos biológicos. Isto significa que a única forma pragmática de aumentar a produção de cortiça passa por aumentar o número de montados de sobreiros e tiradores, recursos que Portugal tem em abundância por quase todo o seu território. Ou seja, Portugal conseguiu manter a sua predominância na indústria corticeira devido à superioridade numérica, uma vantagem que a sociedade portuguesa soube sempre aproveitar e adaptar às novas realidades e obstáculos desta prática.

Vemos uma das primeiras manifestações desta competência na atitude protecionista do senhorialismo medieval português face aos montados e aos sobreiros. Temos literatura administrativa que mostra intento por parte da nobreza, e mesmo da coroa, em proteger e regular a exploração dos sobreiros e o uso da cortiça. D. Dinis I, em particular, foi um defensor voraz do montado de sobro. O seu reinado viu a criação de várias coutadas e chegou-se mesmo a proibir o abate de sobreiros em vários lugares (8). Este interesse prendia-se não só com a cortiça mas também com a caça, atividade típica da nobreza. Vemos este protecionismo régio também manifestado por D. Afonso V, quando concedeu a um mercador estrangeiro de Bruges o monopólio da exportação da cortiça portuguesa. De facto, este ato, na lógica política da época, insinuava que toda a cortiça para exportação era posse régia, pois um rei só dá o que possui. Estas atitudes demonstram que as elites políticas portuguesas cedo se aperceberam do potencial económico e comercial que a cortiça lhes podia proporcionar.

Contudo, muita desta ambição não passava para lá de manter um monopólio natural, fazendo com que muita da ação fosse reativa relativamente aos competidores internacionais. Aliás, a reação à mudança é um tema recorrente na indústria corticeira portuguesa, é a estratégia preferida, e claramente visível, a partir do século XVII, quando as ondas do avanço tecnológico e da crescente pressão dos mercados atingem a cortiça com a invenção da rolha no sul de França. Começa assim a exploração sistemática da cortiça em França, que veio sustentar a crescente atividade vinícola no Mediterrâneo. É um evento chave, que marca a viragem da cortiça como um bem de uso alargado e maioritariamente local para a lógica capitalista de produção, principalmente destinada a rolhas, lógica esta que perdura até hoje. Deixando de ser um nicho regional, a cortiça começa a atrair o interesse de culturas extra-mediterrâneas, nomeadamente do norte da Europa. No ambiente de vigor científico da Revolução Industrial, a cortiça ganha novas formas de tratamento e novas aplicações, inovações estas protagonizadas nas nações industriais. Talvez a maior destas inovações sejam os aglomerados de cortiça, teorizados e inventados no final do século XIX em França e no Reino Unido. É um material feito de cortiça, normalmente de baixa qualidade ou de restos, que é triturado, comprimido e agregado nas formas desejáveis: rolhas, placas, telhas, tijolos, entre outros. Graças a esta inovação, a cortiça deixa de ser percepcionada apenas como uma indústria auxiliar da viticultura, passando a ser um material com grande potencial, com uma enorme possibilidade de aplicações.

Portugal, sendo um país que se industrializou tarde, beneficiou desta vaga de mudança, tornando-se no principal fornecedor de cortiça em bruto aos países industrializados, onde a transformação era feita. O modelo de exploração sistemática foi adotado em Portugal por completo no século XVIII, no contexto do Tratado de Methuen de 1703, que garantia a maior competitividade dos vinhos portugueses face aos franceses nos mercados ingleses. Com a crescente importância que a cortiça adquire, a indústria de extração portuguesa nunca mais deixou este modelo, ficando somente exclusiva à parte da extração, e não à transformação e manufatura.

Portugal manteve esta posição privilegiada mas marginal até à década de 1920, quando a procura da cortiça em bruto começou a descer. As causas foram várias, mas podemos destacar as duas principais. A primeira prende-se com o facto do mercado vinícola ter perdido muitos dos seus melhores clientes, nos Estados Unidos e na Rússia, ambos por motivos de ideologia, o primeiro devido à lei de proibição de consumo de álcool e o segundo devido à revolução bolchevista. A segunda causa foi o crash da bolsa de 1929, uma crise económica verdadeiramente mundial, à qual quase nenhum país ou indústria escapou. Há que salientar também a maior competitividade da França e dos seus territórios no norte de África e a invenção de novos materiais sintéticos isoladores, que vieram a substituir a cortiça na construção nos primeiros países que se industrializaram, como os Estados Unidos, a Alemanha, entre outros. A indústria corticeira portuguesa viu-se, assim, obrigada a adaptar-se às novas circunstâncias.

Sob o modelo corporativista do Estado Novo, a chamada Junta Nacional de Cortiça (JNC), criada em 1936, tinha como intuito gerir e transformar esta indústria histórica. Durante este período, esta indústria tornou-se, de facto, industrial, assistindo-se à adoção de processos de tratamento, de transformação e mesmo de fabrico de objetos em cortiça. Esta modernização trouxe consigo novos interesses neste material. Começa a haver maior interação entre setores. Sob a tutela da JNC, a cortiça chama a atenção de entidades científicas e engenheiras, que vêem nesta o mesmo potencial de aplicações que os franceses e ingleses tinham já visto no início do século XX. Um exemplo disto foi a “redescoberta” da cortiça como material para a construção, aspeto que se tinha perdido anteriormente na priorização da exportação do material em bruto e no fabrico de rolhas. Os primeiros ensaios de construção com cortiça foram realizados nas décadas de 1930 e de 1940, organizados pela JNC, e envolviam o uso da cortiça como cobertura na construção de casas desmontáveis temporárias para os mais desfavorecidos. Estes projetos eram tanto experiências na viabilidade económica de tais residências, como campanhas de propaganda para o Estado Novo, que se afirmava como o “promotor (…) de habitação [e de] (…) os supostos valores e modos de vida tradicionais da população portuguesa” (9). Estas demonstrações eram de relativo sucesso. Muita da produção continuava a ser para exportação e o elevado preço da cobertura de cortiça não tornava viável a construção de habitação social. Entre sucessos e fracassos, Portugal recupera o seu monopólio nos anos 60, exportando agora cortiça já transformada e fabricada em aglomerados. Com a crescente liberalização dos mercados europeus, o Estado Novo vê-se pressionado a deixar muito do seu dirigismo económico. Com a Revolução dos Cravos, todo o sistema corporativista é abolido, incluindo a JNC.

Atualmente, a indústria corticeira portuguesa existe num equilíbrio entre o dirigismo estatal e o descentralismo das cooperativas. As fases do processo de produção da cortiça, tiragem, tratamento e transformação são realizadas por diferentes entidades. Os grémios e os laboratórios da JNC, que antes eram responsáveis por este intercâmbio, foram substituídos por associações profissionais, como, por exemplo, a Associação dos Industriais de Cortiça do Norte, e por institutos técnicos e superiores, como o Instituto Superior de Agronomia (10). É uma prática complexa que hoje envolve elementos de quase toda a sociedade portuguesa: agricultores e tiradores; operários e gerentes das fábricas; engenheiros, biólogos e técnicos agrários das universidades e dos institutos de investigação; arquitetos, artesãos, etc.

Apesar das dificuldades inerentes próprias do sobreiro, a cortiça está cada vez mais presente no nosso quotidiano: pranchas de cortiça forram muitas das nossas bibliotecas; malas, carteiras, cintos, sapatos, guarda-chuvas, vasilhas, recipientes térmicos e apetrechos de cozinha são alguns exemplos dos artigos em cortiça que podemos encontrar atualmente um pouco por todo o lado. A relevância da cortiça continuará a ser, sem dúvida, uma constante no presente e no futuro do país. Face ao desafio das alterações climáticas e à necessidade de mudar certas práticas, o setor corticeiro representa uma alternativa possível de simbiose entre a natureza e a humanidade, entre o interesse privado e o público, entre a tradição e o progresso. Longe de ser um material ubíquo, ou mesmo uma bala de prata, isto é, uma solução derradeira para a economia, a cortiça não deixará nunca de ser um símbolo importante no futuro do nosso país.

  1. https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&contecto=pi&indOcorrCod=0005720&selTab=tab0
  2. https://www.pordata.pt/portugal/exportacoes+de+bens+total+e+por+tipo-2327
  3. https://www.pordata.pt/portugal/exportacoes+dos+principais+produtos+de+origem+florestal-3691
  4. Carrusca, Sofia. O sobreiro e a cortiça: identidade, cultura e biodiversidade. 2015. Promontoria, Ano 12, Nº12. p. 91. URL: https://sapientia.ualg.pt/handle/10400.1/18356
  1. Carrusca, Sofia. O sobreiro e a cortiça: identidade, cultura e biodiversidade. 2015. Promontoria, Ano 12, Nº12. p. 94-5. URL: https://sapientia.ualg.pt/handle/10400.1/18356
  2. Mendes, Hélder. As Árvores de Cortiça. 1999. RTP. Matos, Bosques e Brenhas: Florestas Portuguesas. min. 4:30

URL: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/as-arvores-da-cortica/

  1. Mendes, Hélder. As Árvores de Cortiça. 1999. RTP. Matos, Bosques e Brenhas: Florestas Portuguesas. min. 8:04

URL: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/as-arvores-da-cortica/

  1. Carrusca, Sofia. O sobreiro e a cortiça: identidade, cultura e biodiversidade. 2015. Promontoria, Ano 12, Nº12. p. 93.
  2. Peredo, Ignácio Garcia. Junta Nacional de Cortiça (1936~1972). 2009. Euronatura: Lisboa. p. 75.
  3. Peredo, Ignácio Garcia. Junta Nacional de Cortiça (1936~1972). 2009. Euronatura: Lisboa. p. 99, 101.