RESUMO: Partindo de uma abordagem prévia à problemática genológica, bem como ao carácter impuro da fronteira canónica entre “novela”, “conto” e “romance” em diferentes contextos culturais, problematizarei, num primeiro momento, as questões de intensidade e brevidade, rememorando aquilo a que Poe denominou de “unidade de impressão”. Num segundo momento, proporei uma análise exegética que, pela recriação da categoria do “numinoso” de Rudolf Otto e dos três elementos que a compõem (o tremendum; a majestas e a orgê), possibilita uma leitura simbólico-cultural e um novo acesso à obra yourcenariana, enquanto cifra de realidades culturais distintas. Por fim, a novidade hermenêutica da estética do “numinoso”, permite potenciar, por um lado, aproximações arquetípicas às personagens das nouvelles yourcenarianas, e por outro, recoloca em poético confronto mundividências culturais díspares cuja sedimentação simbólico-cultural denominei de numengrafia. PALAVRAS-CHAVE: Marguerite Yourcenar, Rudolf Otto, estética do “numinoso”, tremendum, majestas, orgê, interculturalidade, conto, “unidade de impressão”.
L´homme s’affirme en affirmant une dimension
nouvelle du réel, un nouvel ordre manifeste par
l’émergence de la conscience.[2]
É partindo da emergência dessa nova ordem do real, sugerida pelo paratexto, que tentarei divisar os pressupostos exegéticos de uma estética do numinoso nas Nouvelles orientales[3] de Marguerite Yourcenar.[4] O percurso metodológico remeterá, primeiramente, para o desígnio genológico do título, expresso no post-scriptum, aprofundando alguns campos críticos do conceito de nouvelle no século XX, a par de um resgate da relação entre a díade intensidade-brevidade. Seguidamente, problematizarei a organicidade da colectânea à luz de uma leitura estética do numinoso, deslindando as razões da escolha de três das nouvelles orientales. Por fim, numa possível chave de leitura hermenêutica, firmarei a origem autoral da categoria de numinoso, referindo os elementos simbólicos que a compõem numa clara intersecção com as nouvelles yourcenarianas.
Com efeito, a definição canónica de nouvelle[5] (LEJEALLE, 1987: 841), cujo contraponto genológico é o romance, encontra-se mais próxima do conto, através dos elementos da brevidade e da densidade, permitindo uma construção dramática cujo efeito intenso e conciso dos acontecimentos, “(…) exigindo sempre mais esforços que a prolixidade” (BAUDELAIRE, 2006: 147), atinge essa unity of impression (unidade de impressão) (POE, 1842: s/ paginação). Deste modo, o talento do contista garantirá a unidade versátil do conto, estimulando o “sentimento poético” do leitor pois cabe ao autor conceber esse “single effect” (POE, 1842: s/ paginação). É assim que Andrés Neuman, cônscio da íntima relação entre a representação espácio-temporal e a díade intensidade-brevidade (NEUMAN, 2007: 5), alude à analogia da corda de Baudelaire (NEUMAN, 2007: 2), cujos extremos clássico e experimental apontam para essa disciplina tensional. Para esta indagação interessa-me, sobretudo, o elemento constitutivo da atmosfera (NEUMAN, 2007: 3).
Em estreita consonância com o exposto, Gerardo Piña-Rosales sustenta que a tonalidade e a atmosfera se encontram relacionados com o espaço e o tempo (PIÑA-ROSALES, 2009: 481), reconhecendo no cuento padrões normativos como a brevidade, o escasso número de personagens e a constante tensão que favorecem o elemento caracterizador do cuento, a saber, a unidade de impressão (PIÑA-ROSALES, 2009). É, então, certeira a imagem de Quiroga: o cuento como seta (direcção, precisão, velocidade) exigiria a construção de uma atmosfera especial, condensada e comprimida. Portanto, a indissociabilidade entre a criação de uma atmosfera e o argumento, destaca a importância da intenção autoral na determinação da forma e do género (RAMOS, 2001: 37-48).
Nesta intricada problemática são diversas as tentativas para erigir um paradigma genológico e as qualificações de novela corta (longue-nouvelle); novela-corta (nouvelle-nouvelle) e cuento largo (nouvelle, short-story) permitem enquadrar na nouvelle as constelações de novela corta, novela longa, novela histórica, novela-instante e novela-novela (MARTINEZ, 1996: 48 e 54). Efectivamente, a partir do século XIX, elementos contrastantes como a desintegração do sujeito, a crise de percepção do mundo, do outro e de si e a consequente desqualificação do sistema moral permitem estabelecer as híbridas fronteiras entre novela e conto no século XX (OZWALD, 1996). Igualmente, a noção de temporalidade cíclica e mítica aproximar-se-á mais do conto, enquanto a novela, mais próxima do modelo jornalístico, apostará na actualidade e no tempo linear histórico (AUBRIT, 2002). Porém, no post-scriptum, a autora sugere a junção dos dois géneros literários (p. 1219) e essa justaposição surgirá, na primeira década do século XX, como reflexividade dupla do homem, unindo o feérico do conto e o verosímil da novela. Neste sentido, firma o autor que esses dois géneros emergem como duas faces do homem: por um lado, o ímpeto desiderativo sugeridos pelo sonho e pela imaginação, por outro, o espírito crítico e o impulso para pugnar contra a brutalidade do quotidiano (ABLAMOWICZ, 1991: 19).
Ora, os diferentes matizes entre o fantástico-maravilhoso, entendido como um género evanescente que corresponde a um fenómeno nunca visto e o estranho puro, enquanto relato de acontecimentos que se revelam incríveis, ainda que não se furtem a uma elucidação racional (TODOROV, 1970), reforçam a óptica autoral que circunscreve, no meu entender intencionalmente, as Nouvelles orientales com o título de contos e novelas, expandindo a variabilidade temática da composição realista e mirífica, a seu tempo. (PEREZ,1996: 267).
Dada a proliferação de perspectivas opto, doravante, por designar as “límpidas e sortílegas” (MOURÃO-FERREIRA, 1988: 24) nouvelles orientales por contos, conforme a tradição portuguesa expressa nesse estado de duração do momento, enquanto construção literária ao redor de um ponto (MOURÃO-FERREIRA, 1988: 19). Entrevejo, contudo, um primeiro desafio: acaso esse princípio de variabilidade contribuirá para um todo coeso, explícito ou implícito, ou, pelo contrário, os contos yourcenarianos precipitar-se-ão para uma recolha arbitrária e inconsequente? A minha posição, recaindo na primeira hipótese, encontra alento em duas frentes subsequentes. A primeira, numa clara tentativa de formação didáctica do leitor, reside no esclarecimento autoral do post-scriptum acerca das motivações e fontes das nouvelles e contes, aliada quer às sugestivas epígrafes, quer às insinuações simbólicas do título; a segunda, prende-se com o instrumento hermenêutico do numinoso, enquanto construção dessa “unidade de impressão”, que, além da heterogeneidade narrativa superficial, poderá encontrar, em latência, um princípio lúdico de unidade entre elipses e enigmas (JULIEN, 2006).
Na verdade, o título da colectânea poderá possuir diferentes sedimentações simbólicas, além das já assinaladas face ao género: a primeira, prende-se com uma leitura geográfica do adjectivo, embora causando abalo, dado que contempla dois ciclos tão díspares (o ciclo Greco-Balcânico e o ciclo Oriental longínquo); a segunda, inscreve-se na polissemia temática que tanto caracteriza a “unidade de impressão” da colectânea. Por fim, a terceira, congregando as antecedentes, sugere a apropriação etimológica da palavra oriens, entis (SOUSA, 1992: 673), significando o Levante, o Nascimento, e cujo verbo orior (SOUSA, 1992: 673) aponta para esse vir à luz ou princípio de orientação originário que nos transporta para essa nova ordem do real onde a consciência emerge como pórtico de possibilidades criacionais. Aqui, a obra artística é já construção de um novo e singular microcosmos que, à maneira de uma viagem por esses “limiares iniciáticos” (GALEY, 2011: 181), reflecte metamorfoses sem, contudo, extraviar o rumo. Deste modo, o título desta recolha cinzela, primacialmente, a noção de espaço literário previamente orquestrado e construído (JULIEN, 2006: 14), à maneira de uma cenografia cujos lastros de inspiração autoral se tornam coincidentes com o acto de criação in fieri.
Ao aceitar esta leitura não só se justifica, especular e simetricamente, a escolha do primeiro conto (“Comment Wang-Fô Fut sauvé”) e do último (“La Tristesse de Cornélius Berg”), como se poderá abrir uma clareira de significado para a unicidade da colectânea, respeitando quer o ritmo vital do real que ao manifestar-se, também se oculta, quer esse perímetro de indizibilidade. A esta leitura cosmogónica, une-se a vontade autoral de os confrontar: “Mais je n’ai pas résisté à l’envie de mettre en regard du grand peintre chinois, perdu e sauvé à l’intérieur de son œuvre, cet obscur contemporain de Rembrandt méditant mélancoliquement à propos de la sienne” (p. 1220).
A diversidade de mundos opostos, ecos de uma concordia-discordia, aliada às quatro breves epígrafes que inauguram a obra, permitem ao leitor acercar-se desse território vertiginoso que, simultaneamente, contempla o início e o fim, a Vida e a Morte, numa aguda consciência tanatológica em ânsias projectivas de Infinito. Assinalo, contudo, que a minha escolha abarca, igualmente, o conto intitulado “Kâli décapitée” que, a meu ver, exemplifica a estética do numinoso num processo criacional de intensificação e concentração (sendo o conto mais curto da colectânea e o menos considerado pela autora, FREDERICK, 1995: 98 e 111) da relação entre Vida-Morte, Beleza-Fealdade, Imanente-Transcendente e Sagrado-Profano.[6] Assim se intensifica, pelo carácter lírico e simbólico, a organicidade da colectânea. Por conseguinte, e de forma a não quebrar os liames de sentido entre o primeiro e o último conto da colectânea, analisarei primeiramente o conto “Kâli décapitée”, não sem antes determinar, sucintamente, o que se entende por estética do numinoso.
A categoria de numen, inis (SOUSA, 1992: 639) estriba-se no desdobramento de uma divindade e no ímpeto da alma correspondente ao poder majestoso dessa manifestação transcendente. Rudolf Otto[7], reintegrando este conceito, amplifica-o e renova-o tendo como ponto de partida aquilo que entende por “sentimento do estado de criatura” (OTTO, 1992: 19), compreendido como elemento subjectivo concomitante, isto é, um efeito que se relaciona imediata e directamente com um objecto existente fora do eu. Este objecto é precisamente o objecto numinoso, onde se experimenta a presença do numen. Efectivamente, o objecto numinoso pertence a uma ordem de realidade absolutamente oposta que não passa apenas para o domínio do “sobrenatural”, mas eleva-se às alturas do “transcendente”. O numinoso emergirá, então, como verdadeiro mirum: o “totalmente outro” (thateron, o anyad, o alienum; OTTO, 1992: 39), aquilo que nos é estranho e nos desconcerta, o que está absolutamente fora do domínio fenoménico e, por isso, nos espanta. Sendo três os elementos que o compõem (o tremendum; a majestas e a orgê; OTTO, 1992: 34), o seu conteúdo qualitativo – o misterioso – possui um carácter magnético que estabelecerá “(…) entre o numinoso e o sublime (…) uma íntima afinidade e uma secreta homogeneidade” (OTTO, 1992: 92). Deste modo, esta leitura aproxima-se das valências de uma estética idealista que privilegia a transcendência e, focalizada na subjectividade, erige a intuição fascinante da religiosidade (HUISMAN, 2005: 58-62), cujo objectivo se prende com a descoberta de marcas do numinoso nos contos yourcenarianos.
É a partir do conto “Kâli décapitée”[8], considerado como o dealbar de uma ruptura contrastante com os restantes contos pela tonalidade deceptiva e desesperante (FREDERICK, 1995), que o leitor se depara com um dos matizes do numinoso: o universo assombroso do tremendum como uma estranha harmonia de contrastes (OTTO, 1992: 49). Um súbito estranhamento, provocado pelo título, assoma o leitor atento, posto que Kali, segundo a mundividência hindu, é antes a deusa que decapita e não a decapitada. Este estremecimento simbólico, focalizado na personagem principal desde o incipit, não só amplifica a subjectividade de uma perspectiva como, numa dialéctica de união dos contrários, permite a representação imagético-mítica dessa deusa “horrible et belle” (p. 1206) através do aparecimento do mysterium tremendum (OTTO, 1992: 22): “(…) Les femmes tressaillent sur son passage (…) et les petits enfants qui vagissent savent déjà son nom” (p. 1206). Este retrato ambivalente da deusa (JULIEN, 2006), corresponde a uma sabedoria mítica que não só apresenta afinidades com múltiplas cosmovisões esotéricas, como também articula a variedade temática do micro e do macrocosmo (MOURÃO-FERREIRA, 1988: 30).
Pela voz de um narrador omnisciente, aduz-se a queda do sagrado dessa deusa que desconhece a sua própria divindade e, numa estratégia de intensificação, quer pela utilização dos adjectivos que, outrora, a caracterizavam como “Kâli, nénuphar de la perfection, trônait au ciel d’Indra comme l’intérieur d’un saphir (…)”, quer pela força dicotómica da representação do sagrado e do profano – “(…) elle couche sur des lits de vermine avec des mendiants aveugles, elle passe de l’embrassement des brahmanes à celui des misérables (…)” – brota a causa de decapitação da deusa, numa espécie de teomaquia, reiterando a atmosfera trágica e ambivalente, porque convergência mitográfica diametralmente oposta: “(…) Ses petits pieds dansent frénétiquement sous leurs anneaux qui tintent, mais ses yeux n’arrêtent pas de verser des larmes (…) et son visage reste éternellement pâle comme une lune immaculée. (…)” (p. 1207).
Em seguida, acompanhe-se o arrependimento da esfera divina que, através de uma catábase ao plano imanente, não deixa de se pasmar perante a imaginação infinita do Mal e, num movimento deiforme de pietas, anseia restabelecer a ordem cosmogónica. Todavia, este acto pseudo-restaurador introduz no conto um novo desequilíbrio, dado pela intersecção terrível dos dois planos – o profano e o sagrado – e amplificado pelo acto terrífico de unir à cabeça da deusa um corpo duplamente devasso: “(…) Ce corps était celui d’une prostituée, mise à mort pour avoir essayé de troubler les méditations d’un jeune brahmane (…)” (p. 1208).
A inoculação do mysterium tremeundum intensifica-se pela enumeração condensada dos actos terríficos e pela forma demoníaca do horror experimentado em graus de manifestação brutal e bárbara, acarretando estranhos e consoladores arrebatamentos, muito presente nas religiões primitivas (OTTO, 1992: 25), numa dinâmica espacial que retrata o itinerário doloroso da deusa (JULIEN, 2006.): “Ceux qu’elle exterminait, elle les achevait en dansant sur eux. Ses lèvres maculées de sang exhalaient une fade odeur de boucherie, mais ses embrassements consolaient ses victimes, et la chaleur de sa poitrine faisait oublier tous les maux” (p. 1209).
Do terrífico, na sua forma expressiva mais bruta (pavor sacer), encontra-se a origem do que a percepção mitológica produz para objectivar este sentimento de numinoso (OTTO, 1992: 27). Todavia, não tarda o anúncio da dúplice faceta do numinoso com o aparecimento da figura do mestre da compaixão (maiusculizado) que, em posição intermediária privilegiada entre a urbe e a floresta, se encontra envolto numa atmosfera sacral de repouso extásico onde o Todo se funde no Nada e os contrários se furtam a um regime binário racional. Diria que o arrebatamento desse encontro enigmático, conservando uma atmosfera de inefabilidade, provoca uma metanoia na ‘consciência’ da personagem através do “sentimento do estado de criatura”, esse sentimento do nosso nada (OTTO, 1992: 27). O epílogo, comportando marcas de oralidade, encaminha o leitor para o sentido da vacuidade, da ilusão e da interdependência de todas as coisas (divinas e humanas) surgindo a tríade numinosa, numa apologia de despojamento do tremundum majestas: “– Nous sommes tous incomplètes, dit le Sage. Nous sommes tous partagés, fragments, ombres, fantômes sans consistance (…)” (p. 1210).
A proposta iniciática deste desfecho em aberto, anulando a expressão simbólica da vontade, do desejo e da actividade (orgê) – “(…) Le désir t’a appris l’inanité di désir (…) ô Fureur qui n’es pas nécessairement immortelle…” (p. 1210) – não esgota o conteúdo do tremundum, antes agudiza o paradoxismo espácio-temporal do conto pois “Juntamente com o silêncio e a obscuridade, o Oriente conheceu um terceiro meio de produzir uma impressão poderosamente numinosa: é o vazio. O vazio espacial é, por assim dizer, o sublime no plano horizontal” (OTTO, 1992: 98). É assim que a exaltação e a hipertensão dos elementos não-racionais reforçam o carácter do mirum, fazendo valer a lógica da coincidentia oppositorum (OTTO, 1992: 43). Toda a atmosfera dramática e ambivalente deste conto sublinha a referencialidade aos textos arcanos e ao seu pendor, paradoxalmente, devoto e erótico, bem como a exploração literária da coexistência de diversas expressões e modos de vivência do sagrado (JULIEN, 2006: 112).
Porém, a estética do numinoso tanto verte o assustador como o maravilhoso e será esta a atmosfera que o conto “Comment Wang-Fô fut sauvé”[9] habilmente desenhará. Atenta à ambivalência do título que significará tanto o processo de resgate de uma personagem em perigo, como o decurso da sua salvação (JULIEN, 2006), concentro-me no incipit que oferece a apresentação da primeira dupla de personagens. Pela voz de um narrador omnisciente, encena-se a relação mestre-discípulo através da deambulação, da errância e da emergência de uma outra temporalidade: “Ils avançaient lentement” (p. 1143). Este compasso acompanha o ritmo de nascimento de uma nova percepção e consciência, lembrando essa vaga de quietude transformada num estado de alma fluido (OTTO, 1992: 22).
A relação hierarquizada e hierática, reconhecida por todos os habitantes, entre Wang-Fô e Ling, resulta da abertura dessa nova consciência do e no tempo e apresenta-se como ímpeto criacional pela demanda pictórica do Belo: “(…) car Wang-Fô aimait l’image des choses, et non les choses elles-mêmes (.. .)” (p. 1143). Note-se, contudo, na quase imperceptível inversão deste epigrama: numa linha contrária, por exemplo, à kalokagathia platónica que, em detrimento de uma apreensão noética do real, aponta para uma abordagem metafísica da coisa-em-si, o leitor depara-se com uma visão que pugna pela força pictórica do imaginário simbólico e cosmogónico, suplantando quer a realidade fenoménica, quer a ontológica. Eis que esta mirífica estranheza se condensa com a primeira marca de numinoso, a majestas: “Son disciple Ling, pliant sous le poids d’un sac plein d’esquisses (…) car se sac, aux yeux de Ling, était rempli de montagnes sous la neige, de fleuves au printemps, et du visage de la lune d’été” (p. 1143).
Neste momento, a atmosfera do fantástico imanente irrompe e a majestas do objecto imagético (os esquissos do mestre), pela sua carga simbólica, traduz esse movimento soteriológico artístico onde esse eu abscôndito cede espaço a uma altergrafia, reforçando o étimo, que se metamorfoseia, por sua vez, numa cosmografia porquanto nos narra esse in illo tempore ancestral da criação originante e fundante do mundo (NESS, 1991: 795-796). Trata-se, assim, de um aprendizado que compreenderá a superação dos medos do discípulo, num jogo de tensões não só entre o real e o ideal, mas sobretudo da superação do real pelo imaginário. É neste sentido que a sublimação do outro pela máscara[10], numa clara transgressão da identidade e da díade masculino-feminina, nos transporta para esse universo da metamorfose artística: “(…) Alors, comprenant que Wang-Fô venait de lui faire cadeau d’une âme et d’une perception neuves” (p. 1145). Exorta-se o desequilíbrio pela submersão de um real por um outro, o da obra: “(…) On disait que Wang-Fô avait le pouvoir de donner la vie à ses peintures par une dernière touche de couleur qu’il – ajoutait à leurs yeux. (.. .)” (p. 1145).
A entrada da segunda dupla de personagens – Wang-Fô e o Imperador Dragon Céleste – conduz o leitor, célere e concentradamente, para um novo desequilíbrio cénico que se dá em tom geminado quer na passagem de um espaço aberto para um espaço fechado, esse axis mundi (FREDERICK, 1995: 15) do palácio, quer na percepção espacial do confronto entre duas realidades (a do poder e a da sabedoria), dois mundos, duas percepções, duas formas de ser e estar antagónicas: “(…) Ils arrivèrent sur le seuil du palais impérial (…) Tout se concertait pour donner d’idée d’une puissance et d’une subtilité surhumaines (…) un mur énorme séparait le jardin du reste du monde (…)” (p. 1147, itálico meu).
Neste excerto a clara representação do elemento da majestas implica o tom de solenidade que tanto se encontra no profundo recolhimento da elevação da alma para o sagrado (OTTO, 1992: 55), como na ideia de separação entre o sagrado e o profano pela tonalidade de uma atmosfera ultraterrena e de hipertensão do elemento não-racional, esse mysterium fascinans (OTTO, 1992: 59) cuja receptividade e permeabilidade ao sagrado adensa a actividade criacional (JULIEN, 2006: 124). Defendo, deste modo, que o imperador poderá surgir como um anti-duplo do pintor reforçado pela marca de oralidade que aponta para o sentimento do estado de criatura, por parte de Wang-Fô, num diálogo onde se confrontam concepções díspares sobre a vida e a morte, a Eternidade e a finitude a partir de sinais cosmogónicos: “(…) dit Wang-Fô, prosterné, je suis vieux, je suis pauvre, je suis faible. Tu est comme l’été ; je suis comme l’hiver. Tu as dix mille vies ; je n’en ai qu’une, et qui va finir. (.. .)” (p. 1148). É neste sentido que, para Yourcenar, se desenha uma interina correspondência entre o nascimento do indivíduo e o do artista, entendidos não tanto como metáforas, mais como duplo um do outro (HOGSETT, 1996: 341).
Atinge-se, assim, a ideia do tempo circular da mesmidade pela submersão nos “(…) corridors de ma mémoire (…)” (p. 1149) do imperador e, adivinhando-se um novo princípio de desequilíbrio pela indistinção do ideal e do real, sugere-se que a pintura, enquanto arte privilegiada da representação do mundo, é portal para essoutro imaginário mais vivo. A ruptura gnosiológica entre o mundo da imagem e da realidade fenoménica, não só agudiza o antagonismo perceptivo, como estabelece a hegemonia da harmonia e da beleza artística face à desordem do mundo:
Et pour m’aider à me représenter toutes ces choses, je me servais de tes peintures. Tu m’as menti, Wang- Fô, vieil imposteur: le monde n’est qu’un amas de taches confuses, jetées sur le vide par un peintre insensé, sans cesse effacées par nos larmes. (…) Le seul empire sur lequel il vaille la peine régner est celui où tu pénètres, vieux Wang, par le chemin des Milles Courbes et des Milles Couleurs (…). (pp. 1149-1150, itálico meu)
A acusação do Imperador, assente na inversão disjuntiva de dois mundos e na dor intensa e desgostosa pelo conseguimento do pintor em ser amado, conduz o leitor a uma nova afinidade do numinoso com o atributo repulsivo tremendum através da punição dupla e cruelmente simbólica, porquanto a visão, desde a Antiguidade, é viático de conhecimento e, neste conto, de representação metamórfica do real, e as mãos do pintor, esse demiurgo criacional, actualizam e materializam o ímpar reino da arte:
(…) j’ai décidé qu’on te brûlait les yeux, puisque tes yeux sont les deux portes magiques qui t’ouvrent ton royaume. (…) j’ai décidé qu’on te couperait les mains (…) Et je te hais aussi, vieux Wang-Fô, parce que tu as su te faire aimer (…)”. (p. 1150, itálico meu)
Esta terrífica proposta de regresso ao equilíbrio, não deixa de conter um rasgão mistérico, construindo a atmosfera perfeita para que o leitor pressinta a presença de Infinito que habita a obra. Deste modo, o único objecto amado – o objecto numinoso – é descrito, num processo de enumeração, como sendo o objecto artístico. Aí o leitor presencia, num movimento aquoso de metamorfose, o vazio espacial pela submersão total no mundo pictórico, efeito concentracionário que, paradoxalmente, permite a expansão sublimada da consciência artística in illo tempore através do abaixamento mundano: “(…) Wang-Fô, absorbé dans sa peinture, ne s’apercevait pas qu’il travaillait assis dans l’eau (…) L’eau atteignait enfin au niveau du cœur impérial.” (p. 1152). Os vestígios iniciáticos deste acontecimento maravilhoso, onde dentro e fora são um e o mesmo, só figuram no imperador e o discípulo, ao ressurgir com uma nova percepção do real, glosa o sentido íntimo do conto ao afirmar: “(…) Ces gens ne sont pas faits pour se perdre à l’intérieur d’une peinture. (…)” (p. 1153).
A construção de diferentes planos de indistinção entre o real e o imaginário, aliada ao apontamento estético do lenço vermelho de Ling que, a meu ver, é passagem de testemunho dessa nova visão, atesta a salvação por um mundo de imagens, não só do pintor e do seu discípulo, mas do objecto numinoso que é o quadro. Dada a condenação do mundo profano, o desfecho poético acentua o primado da invenção e da criação artística pela encenação de um mise-en-abyme (FREDERICK, 1995: 15) onde a evidência imagética da arte, suplantando a coisa-em-si, se torna realidade, inundando-a de infinito e ilusão:
(…) Déjà, on ne distinguait plus le visage des deux hommes assis dans le canot. Mais on apercevait encore l’écharpe rouge de Ling, et la barbe de Wang-Fô flottait au vent. (…) et le peintre Wang-Fô et son disciple Ling disparurent sur cette mer de jade bleu que Wang-Fô venait d’inventer (…). (p. 1153)
Sustenho que não é apenas no sentimento de aspiração religiosa que o epekeina (OTTO, 1992: 42)[11], esse “para além de”, se exprime, também o sentimento da grandiosidade solene, ao ultrapassar a capacidade de percepção imediata ou mediada pela razão, pincela essa “unidade de impressão”, verdadeiramente maravilhosa e mágica e, nesse âmbito, as personagens yourcenarianas “(…) travaille a transcender les limites de la conscience, de pénétrer dans le monde infini et éternel de l’inconscient” (HARRIS, 1988: 296). É assim que a compreensão alegórica do conto passa quer pela meditação tanatológica, quer pela viagem iniciática de dois sábios: Wang-Fô, o sábio actualizado, e Ling, o sábio em potência (JULIEN, 2006: 134). Com efeito, o que se furta a uma explicação racional aparece no elemento do mirum (OTTO, 1992: 86-87), logo, “No domínio artístico, é o sublime que representa o numinoso com maior intensidade” (OTTO, 1992: 94). Esta intersecção vertiginosa de planos contempla a faculdade da memória e induz “a ‘antiguidade’ que lhe subjaz” (MOURÃO-FERREIRA, 1988: 44).
Num movimento equidistante desta majestosidade, encontra-se o último conto da colectânea, “La Tristesse de Cornélius Berg”[12], cujo título, pela adição do substantivo qualificativo que precede o nome do protagonista, aponta para o sentimento do estado de criatura. Assim, “Ao sentimento de um objecto numinoso, o sentimento de dependência ou, mais exactamente, do estado de criatura, (…) encerra uma espécie de depreciação de si próprio” (OTTO, 1992: 20). A tonalidade secundária deste sentimento emerge como sombra ou efeito, pálido e longínquo, do que se pode presenciar face à grandeza do numinoso, no aspecto dúplice da sua aparição, terrífica e majestática.
Partindo do post-scriptum e do incipit do conto, aliados a uma espécie de spleen implícito no título, torna-se inelutável a comparação especular do pintor ocidental, sorte de anti-duplo, com a do pintor oriental. Este cotejamento pictórico tematizado pela Autora leva-me a afirmar que entre ambos existe um ciclo, simbólico e complementar, entre o Ocidente, enquanto fundo da gravidade do corpo e da finitude, e o Oriente como possibilidade de concessão da imortalidade inefável:
As civilizações antigas e orientais eram mais sensíveis do que nós somos aos ciclos das coisas, às gerações divinas e humanas que se sucedem, às alterações no seio do imóvel. Só o homem ocidental é que quis fazer do seu Deus uma fortaleza, e da imortalidade pessoal uma muralha contra o tempo. (GALEY, 2011: 219)
Este hiato de mundividências mantém, tal como no conto anterior, o motivo artístico da viagem e da errância e, ainda que o pintor oriental frequente tavernas, a atmosfera que aqui se constrói encontra-se nos antípodas do primeiro conto não só pela mudança prismática da percepção do real por Cornélius, como pela ausência de reconhecimento da alteridade das suas capacidades artísticas, resultado da degenerescência física e da consciência da finitude: “Cornelius Berg, dès sa rentrée dans Amsterdam (…) peignant encore, parfois, de petits portraits (…) Par malheur, sa main tremblait (…) Il se dépitait, refusait de livrer l’ouvrage (…) finissait par ne plus travailler” (p. 1215). Associado a um grau de consciência cujo passado glorioso, enquanto ilusão, obscurece o presente ficcional, o real constrói-se num espaço-tempo profano e enclausurado na ebriedade e no fumo, essa vanitas urbana[13]: “Il passait de longues heures au fond des tavernes enfumées comme une conscience d’ivrogne, où d’anciens élèves de Rembrandt, ses condisciples d’autrefois, lui payaient à boire, espérant qu’il leur raconterait ses voyages” (p. 1215).
Contrariamente ao pintor oriental, que pelo sonho e pela ilusão imagética suplanta o real, o leitor depara-se com uma figura cuja capacidade onírica se encontra cristalizada pelo sentimento de melancolia e insatisfação, rejeitando o real, encarado como vil e disforme: “Ceux qui se rappelaient le bruyant Cornélius d’autrefois s’étonnaient de le retrouver si taciturne (…) Il s’asseyait, la figure tournée vers la muraille, son chapeau sur les yeux, pour ne pas voir le public, qui, disait-il, le dégoûtait” (p. 1215). A capacidade de representação dos rostos humanos, só igualada a Rembrandt pelo sonho, encontra-se, assim, contaminada por uma indiferença face ao ritmo vibrátil das cores e das pigmentações, contrastante com o sonho e o objecto numinoso de Wang-Fô: “Le mal qui est en l’homme et dans le monde est une force tenace et obscure que tous les pouvoirs humains, même concertés à un degré exceptionnel (…) sont impuissants à annihiler de façon définitive” (HARRIS, 1988: 298).
Parece existir, deste modo, uma indubitável inversão do mundo pictórico oriental nos variegados domínios perceptivo, anímico e artístico. Contudo, apesar desse fraccionamento especular, não deixa de surpreender, pela voz do narrador omnisciente, a sugestão breve da existência da majestas nos gestos do pintor ocidental e essa orla de sacralidade que habita os espaços vazios da personificada cidade: “Ses mains déformées avaient, en touchant les objects qu’il ne peignait plus, toutes les sollicitudes de la tendresse. Dans la triste rue d’Amsterdam, il rêvait à des campagnes tremblantes de rosée (…) trop sacrés pour l’homme” (p. 1216).
A importância ecfrástica[14] da luz e do génio artístico neste conto, à maneira das pinturas de Rembrandt, acompanha a pungente descrição do narrador omnisciente que nos cede o retrato da mediocridade técnica do pintor ocidental: “À mesure que se perdait le peu talent qu’il avait jamais possédé, du génie semblait lui venir” (p. 1216). A haver aqui um sentido de despojamento, em comparação com aquilo que o leitor encontra em Wang-Fô, surge invertido e deturpado, porquanto a única figura de contacto com o real é alguém embrutecido pela rotina que instrumentaliza o pintor, desconhecendo as virtudes da arte. A tragicidade do protagonista, além da manifesta solidão, é adensada pela sensibilidade artística intocada, resquício de paridade com Wang-Fô:
Le seul qui le saluât encore étai le vieux syndic de Haarlem. (…) il savait que le vieux syndic ne l’invitait que pour avoir son opinion sur une variété nouvelle. Personne n’aurait pu designer par des mots l’infinie diversité des blancs, des bleus, des roses et des mauves (pp. 1216-1217).
O desconcertante síndico de Haarlem[15] afigura-se como um possível duplo ocidental do Imperador, ainda que este último possua uma fina e apurada sensibilidade artística não comparável àquele. Ao recorrer a um elemento externo para balizar as tonalidades das túlipas, o síndico rodeia-se da bela natura naturata e, em amplificatio afectiva (LAUSBERG, 2011: 166), reitera a máxima renascentista da criação como obra de arte de Deus, sumo pintor na sua majestas: “Dieu est le peintre de l’univers” (p. 1218).
Cônscio do relevante papel da memória e da sua estreme ligação ao decurso da temporalidade e ao sentimento de finitude, não é estranho que Cornélius medite e, retrospectivamente, enumere não só os locais por onde deambulou, mas as correspondentes expressões mundanas. Mais uma vez, e contrariamente à capacidade transfiguradora do pintor oriental, o tom amargurado e irónico deste epílogo, exibindo marcas de oralidade, acentua a disparidade entre o Belo e a Fealdade, o Bem e o Mal, o Sagrado e o Profano. Avista-se a desarmonia entre o mundo criado como tela (paisagem) e o mundo visto enquanto Criação: “‘Dieu est le peintre de l’univers.’ Et, avec amertume, à voix basse: ‘Quel malheur, monsieur le syndic, que Dieu ne se soit pas borne à la peinture des paysages’” (p. 1218). Porém, esta dialéctica de caminhos opostos ou até divergentes, numa arte de correspondência simétrica e especular (JULIEN, 2006: 174), não deixa de insinuar uma possibilidade análoga de efeitos.
Com efeito, o percurso gizado aponta para uma variabilidade do efeito numinoso, cujas gradações inferiores e superiores sugerem uma numengrafia yourcenariana que orbita entre a vaga de quietude e de profundo recolhimento e o estremecimento convulsivo que poderá conduzir o leitor e a construção precisa das personagens a estranhas excitações, ao inebriamento, aos arrebatamentos, ao êxtase, ora seráfico, ora demoníaco. A plasticidade ontocosmogónica desta numengrafia pode, igualmente, adivinhar o pasmo de horror ou indiciar atmosferas interditas, dando vazão a essa região de mistério inefável. Aliás, no conto acerca da deusa Kali, fica explicitada a afinidade do numinoso com esse domínio do tremendum que, na sua forma mais bruta, poderá aparecer ligado ao insólito.
Os traços da busca pela arcana origem, propulsionada pela força de uma arguta percepção mitológica, objectivam e reforçam o carácter do mirum, enquanto ars sacer do surpreendente puro e simples, do paradoxo e da antinomia. É neste sentido que o elemento dionisíaco, presidindo à acção criativa do numen, interseccionado com o atributo “fascinante”, se redimensiona com o deinós, esse elemento que ultrapassa os limites da nossa capacidade de percepção espacial através de signos analógicos (OTTO, 1992).
À guisa de conclusão diria que é possível encontrar, ao longo de toda a colectânea, marcas de relação com o numinoso reincidindo, principalmente, nos três elementos aqui analisados. A atmosfera enigmática e singular, tantas vezes mágica e maravilhosa, arguta e lucidamente, construída pela autora, torna-se símbolo dessa numengrafia que “(…) justamente por ser de inúmeros tempos é que se nos afigura cada vez mais moderna” (MOURÃO-FERREIRA, 1988: 41), permitindo viajar por caminhos que se bifurcam no dúplice sentido yourcenariano: como Ulisses, mas também como Proteu (GALEY, 2011: 264).
BIBILIOGRAFIA ACTIVA
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Texto publicado, pela primeira vez, em Impossibilia, N.º 9 (Abril, 2015), pp. 12-27, tendo sofrido ligeiras alterações de estilo, mas não de conteúdo. ↑
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GUSDORF, 1984: p. 57. ↑
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No avant-propos a autora esclarece que esta colectânea engloba uma recolha de relatos que compreendem o arco temporal de 1928 a 1978, salientando: “(…) toute chronologie est factice. La durée du travail littéraire se confond avec celle de l’existence de l’auteur lui-même” (YOURCENAR, 1982: x). Com efeito, a primeira edição da colectânea, data de 1938, tendo existido uma reedição, em 1978, acompanhada e revista pela autora que, pela leitura do post-scritpum, contém numerosas alterações de estilo, sobretudo, numa das nouvelles que aqui será trabalhada, a supressão de um conte intitulado Les Emmurés du Kremlin e o aditamento da última nouvelle (YOURCENAR, 1982: x). Acrescento ainda que a 1ª edição foi dedicada a Andreas Embirikos (1901-1975), cuja relação de amizade e itinerância poético-artística “permanece bastante obscura” (SAVIGNEAU, 1992: 118). ↑
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A título de curiosidade, aclaro que o verdadeiro nome da autora é Marguerite Cleenewerck de Crayencour e Yourcenar surge como anagrama do seu apelido. ↑
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A este respeito, ilustre-se: “En France, la nouvelle est la victime de deux grands a priori: d’une part, il n’y aurait que les seuls Mérimée et Maupassant a mériter le titre de nouvelliste; d’autre part, la nouvelle ne serait qu’un sous-produit du roman auquel il est par conséquent inutile de s’intéresser” (GODENNE, 1982: 382). Neste artigo, Marguerite Yourcenar é classificada como nouvelliste occasionnel, com Nouvelles Orientales (GODENNE, 1982: 384). Revê-se o carácter marginal do conto nos países anglo-saxónicos e hispano-americanos, condenado “(…) siempre al rincón oscuro de la última página de la efímera revista o del volandero periódico” (PIÑA-ROSALES, 2009: 476). ↑
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Por ser caixa de ressonância do numinoso, esclareço: “O Sagrado é uma palavra que temos de tomar muito a sério (…) ficou-me sempre o sentimento do imenso invisível e do imenso incompreensível que nos rodeiam” (GALEY, 2011: 44). ↑
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Pensador e teólogo protestante alemão (1869-1937) que se dedicou à exegese da experiência religiosa primeva, estabelecendo uma iniludível relação com o Sagrado, o Mito e o Numinoso, enquanto princípios hermenêuticos, epistémicos e estéticos de uma possível cifra do divino e do diabólico. ↑
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Informa a autora no esclarecedor post-scriptum: conto publicado em 1928 na La Revue Européenne. Sendo o conto de abertura da 1ª edição (JULIEN, 2006: 165), na sua reedição em 1978, não só a disposição organizacional será outra (ocupando o oitavo lugar na colectânea), como a sua conclusão foi reescrita “(…) afin d’y souligner davantage certaines vues métaphysiques (…)” (YOURCENAR, 1982: 1219). Esta aguda consciência autoral é assumida como uma “impressão de falha” (GALEY, 2011: 197): “Non contente de ses préfaces originales, elle ne manquera jamais l’occasion d’une réédition pour en écrire de nouvelles, et finira même par obtenir de Gallimard le privilège d’être l’auteur de sa propre biographie, a la troisième personne, dans la collection de la Pléiade” (ALLAMAND, 2002: 891). ↑
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Recriação livre de um apólogo taoísta chinês, primeiramente, publicado em 1936, em La Revue de Paris (pp. 1219-1220). Ainda que o termo apólogo indique uma narrativa de pendor moral, o objectivo desta indagação não visa explorar esse sentido, nem tampouco examinar a copiosa intertextualidade, eximiamente investigada por Anne-Yvonne Julien. ↑
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A temática da identidade e da alteridade nas autobiografias yourcenarianas acentua este aspecto: “Un Yvan Leclerc n’avait pas attendu les biographes pour déclarer, dès 1985, que Marguerite Yourcenar ne savait parler de soi que sous le masque. Sans qu’il faille pour autant confondre le masque et l’être, ni refuser qu’on puisse bénéficier, grâce au masque, d’un supplément d’être (DELCROIX, 2000: 220). Aliás, os “sucessivos déguisements” constituem “sucessivos retratos de sucessivas vozes” que compõem a unicidade da ímpar voz da autora (MOURÃO-FERREIRA, 1988: 32). ↑
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Não deixa de ser elucidativo o livro que contém entrevistas biográficas da autora, revelando uma faceta mais intimista sobre a construção do(s) “eu(s)” literário(s) a partir da infância. Aqui, surge a declaração autoral de ter vivido experiências místicas, cinzelando essa sensibilidade religiosa e mítica, ignorada totalmente pelo seu público (GALEY, 2011: 9-40). ↑
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Segundo a autora, este conto seria a conclusão de um romance inacabado: As Túlipas de Cornélius Berg (p. 1220). Indicação que reforça a manifesta contaminação genológica. ↑
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Reforçando a presença ecfrástica nesta obra da autora, não deixa de ser curiosa a ligação deste tabernáculo ocidental à pintura de Rembrandt, mestre de Cornélius: Cristo em Emaús (FREDERICK, 1995: 126). ↑
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A este propósito, é revelador o desejo autoral de oferecer ao leitor “um certo ângulo de visão, uma certa imagem do mundo, uma certa pintura da condição humana” (GALEY, 2011: 60). ↑
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O termo síndico deriva do grego sundikós, designando advogado ou assistente de justiça. Novo apontamento pictórico que poderá lembrar Os síndicos de Rembrandt (FREDERICK, 1995: 131). ↑