
Voltamos a chamar a atenção para o facto de a leitura do famoso “paradoxo da tolerância” de Karl Popper, popularizada por um famoso cartoon que circula na internet (pode ver-se no fim deste texto, num cartaz vermelho) ser uma distorção grosseira das palavras do filósofo, que nunca advogou cancelamentos nem restrições do discurso. É provável que venhamos a perder a conta das vezes que o fazemos. A melhor fonte para verificá-lo será mesmo o pequeno trecho em que Popper fala do assunto: colocamo-lo aqui em baixo, e será fácil verificar como é quase oposto ao ponto do cartoon original. Reforçamos assim a preocupação com essa referência a Popper, e com a exibição do cartoon demagógico enquanto sugestão de silenciamento/censura/opressão daqueles de quem discordamos. Lendo a passagem, é fácil constatar como o filósofo não estava perto de sugerir tal comportamento.
Less well known is the paradox of tolerance: Unlimited tolerance must lead to the disappearance of tolerance. If we extend unlimited tolerance even to those who are intolerant, if we are not prepared to defend a tolerant society against the onslaught of the intolerant, then the tolerant will be destroyed, and tolerance with them.— In this formulation, I do not imply, for instance, that we should always suppress the utterance of intolerant philosophies; as long as we can counter them by rational argument and keep them in check by public opinion, suppression would certainly be most unwise. [sublinhado nosso] But we should claim the right to suppress them if necessary even by force; for it may easily turn out that they are not prepared to meet us on the level of rational argument, but begin by denouncing all argument; they may forbid their followers to listen to rational argument, because it is deceptive, and teach them to answer arguments by the use of their fists or pistols. We should therefore claim, in the name of tolerance, the right not to tolerate the intolerant. We should claim that any movement preaching intolerance places itself outside the law and we should consider incitement to intolerance and persecution as criminal, in the same way as we should consider incitement to murder, or to kidnapping, or to the revival of the slave trade, as criminal.
— Popper, Karl, The Open Society and its Enemies, Vol. 2, 1945. London: Routledge.
Alguns aspectos da passagem — que, aliás, não representa mais na obra do que uma mera nota de rodapé — são manifestamente contraditórios: por um lado, define vagamente incitamento à intolerância e à perseguição como criminoso, não sendo claro que tipo de incitamento é que isso configuraria, quando antes afirmava que a discussão, mesmo que envolva intolerância, é admissível na arena democrática. Fazendo a síntese de ambas as premissas, supõe-se que a “pregação da intolerância” e o “incitamento à intolerância e à perseguição” referida na última parte não constituem meramente definições fracas de “discurso de ódio”, como aquelas que envolvam mera expressão de opiniões intolerantes, mas componham efectivamente o tipo de discurso que nos quadros legislativos ocidentais componham, para além da dúvida razoável, incitamento credível à violência imediata. Só esta leitura consegue conciliar a afirmação categórica, pouco antes, de que seria estúpido suprimir a possibilidade de articular discurso intolerante, desde que o mesmo possa ser balizado pelas regras da discussão civilizada dentro da sociedade democrática.
O que temos, então, é uma leitura muito afastada da leitura simplista, radical, totalitária e fundamentalmente intolerante propagada pelo famoso cartoon. Tudo o que o mesmo veicula é a possibilidade de deixar a porta aberta para a supressão da mera expressão verbal sem consequências materiais discerníveis, que é o primeiro passo adoptado por regra nas sociedades antidemocráticas para suprimir quaisquer expressões que considerem indesejadas.
