No presente ensaio, proponho-me discorrer sobre a noção de espaço interior e exterior, sujeito e paisagem, narrativa e mundo, no livro Alguma Poesia, o primeiro da obra de Carlos Drummond de Andrade. A particularidade que motivará o maior interesse das presentes ideias está na concepção do parcelamento espacial, no poema, sem que esteja implicada a diferença, ou a interrupção do sentido, mas antes a disjunção entre um plano e outro, subjectivo e paisagístico: e se a partícula representativa da disjunção, “ou”, distingue dois sentidos, também os une numa possibilidade igualitária entre si, na relação com um fim especificamente visado e que, no caso, será o conhecimento do mundo como modo de experiência existencial subjectiva, pela escrita de poesia.
Neste sentido, exterior e interior, em Drummond, em particular no livro publicado em 1930, restarão, na relação um com o outro, contínua e contiguamente, mas cuja transferência, passagem, espécie de expiação do mundo, os distingue como estâncias necessárias para o conhecimento do meio, como paisagem activa e, por vezes, quase que subjectificada — por intervir no caminho do poeta — que se oferece indecifrável. O percurso, e o decurso (pois a poesia é, em boa medida, tempo), de um plano, exterior, para outro, o interior, ou vice-versa, constituirá processo desambiguador tanto do mundo que é ovação e melancolia, como do poeta que, por sua vez, tanto se revela espectador, como vítima participante da inquietação mundana que é viver e poder escrever sobre o que é isso de viver. Escrita e vida equacionam-se na sua obrigatoriedade, como imposição.
A substância maior do debate é o estatuto do poeta e da poesia, que só poderá responder ao mistério das coisas (que diferem essencialmente, mas se equivalem na unidade tempo-espaço), por meio da invenção de novos mistérios; como a pedra que surge no meio do caminho e cuja síntese é a mesma que o título e que o restante corpo textual: uma pedra no meio do caminho, — é eleita a lógica da tautologia e da repetição, como operador da conclusão e, consequentemente, da identidade. Servir-nos-á exemplarmente, para a questão, o poema “O Sobrevivente”, o qual decorre sob a impossibilidade — estamos perante, é claro, uma contradição performativa — da escrita de um poema, restando, em última instância, a possibilidade, essa sempre fiel e inesgotável, eterna no sentido moderno do termo (que significará algo como reclamar uma existência num tempo limitado), de elevar a tópico poético precisamente essa impossibilidade.
O círculo fechado que o livro forma, começando com “Poema de Sete Faces” e, terminando com “Poema da Purificação”, serve fielmente de metonímia para a tal lógica espacial entre algo que é dado exteriormente (a sua condição de sujeito “gauche”, definida por um anjo; no primeiro poema), e o que é do interior do poeta que conclui o livro como obra completa, fazendo um balanço final (no poema último).
O olhar do livro é o de um sujeito melancólico, em luto de uma identidade perdida e suprimida pelo mundo (“Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já esquecida.”), e cujo registo só poderá fazer-se na medida da comoção (a subjectividade como prisão), já que a reportagem objetiva do mundo não é sequer objectivável. Pois os dois poemas, estabelecendo uma relação referencial evidente entre si, parecem, em muito, inversos, sem que deixe de haver um sentido: o do mapeamento delineador e significante de um ciclo tão sinuoso quanto poderá ser o de um livro.
No primeiro poema, o sujeito é traçado por uma entidade que não só lhe é exterior, como o transcende, — um anjo — que representa a capacidade de acesso pleno ao mundo, e que define o sujeito como um gauche, alguém trapalhão, inadaptado; a essa primeira apresentação seguem-se três estrofes que parecem, à maneira do que disse Mário de Andrade numa carta a Drummond, datada de 12 de Julho de 30, “explosões sucessivas”, “explosões isoladas”, numa poesia “cujos poemas não têm nem principio nem meio nem fim”, de projectos conceptuais de mundo, onde o céu pudesse ser azul, não fossem os desejos, um mundo cheio de pernas das mais diversas cores, pernas que inquietam o sujeito sem que este questione a realidade sensorial e eroticamente imposta; e, por fim, um mundo da máscara que são os óculos e o bigode e que escondem um homem “sério, simples e forte”, que “quase não conversa”. A condição do sujeito é dada individualmente a partir de um exterior que dita e se oferece, como paisagem subjectificada pela sua acção autoral, e, de certo modo, autoritária. Já no “Poema da Purificação”, em fins da leitura do livro, o qual é sugerido, logo no primeiro verso, como um conjunto de “tantos combates”, o anjo bifurca-se em dois, um bom e um mau, como que indiciando a dimensão ética, moral, própria da interpretação (momento dos juízos); o anjo bom mata o mau, acontecimento que, ao invés de ser triunfante, apenas propaga o contágio entre bondade e maldade, pois com o sangue do anjo mau morrem os peixes.
No fim, apenas o pensamento — “e outro anjo pensou a ferida/do anjo batalhador” — será potencial mecanismo de purificação, sem que tal conclusão seja una, mas sim ambígua, pois o “anjo batalhador” que é pensado será tanto o bom quanto o mau. Enfim, a purificação faz-se pela coexistência de pólos conceptuais antagónicos. Resta pensar a contradição e o absurdo, através de eventuais contradições outras, exploradoras da falta de sentido. Do primeiro poema ao último, o movimento é de condensação e unificação, pela luta com as palavras, condicionadas por uma realidade “besta”, livre, desordenada: enquanto que no primeiro poema as estrofes figuram-se dispersas, avulsas, de assunto isolado, sem que haja uma ideia singular do poema que não a da fragmentação, da inacção do sujeito que é gauche por ditado de outrem, e o da confusão indistinta do mundo, no poema último a ideia de purificação impera pela aceitação da contradição como resolução do enigma, pela comoção e/ou pensamento; e tanto comoção como pensamento são o debruçar sobre uma realidade que nos excede sem nos excluir. É nesse estágio intervalar, flutuante, instável, que se encontra a figura do poeta.
Trata-se da poesia na sua condição comutativa, entre bondade e maldade, entre visível e invisível, entre facto e construção. Na ligação entre um e outro pólo, encontra-se a sátira, actuando por meio de uma quebra, situada, por norma, no fim do poema. É habitual, no presente livro, os poemas serem maioritariamente descritivos, de tónica narrativa tradicional, mas em cujos finais há um desvio significativo (leve-se à letra o termo) de sentido. Lembre-se “Papai Noel às Avessas”, no qual é descrita a história de um pai Natal que entra em casa de uma família, pela porta dos fundos, e ao invés de dar, tira, apodera-se, consome. Há a inversão (o avesso) da figura do pai Natal, por meio de uma forma poética de narrativa tradicional. Todavia, o maior extravio — marca moderna do texto — dar-se-à na última estrofe: “Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.” De repente, com o pai Natal também nós leitores somos conduzidos para o exterior da casa — para a horta de legumes — ou melhor, para o limiar da casa; o intervalo entre o privado e o público, tornado espectáculo; espectáculo no mínimo estranho, no qual uma luz de luar abençoa legumes. Não é tanto a construção bizarra que é projectada para o pai Natal o mecanismo produtor do avesso, ou do inverso, ou do criticamente irónico, mas sim a interrupção da narrativa, ou, o acrescento à narrativa já completa, de uma cena invulgar, mas provável. Na verdade se há legumes e luar, e é Natal, noite dos recomeços e das bençãos, porque não conjugar os elementos? O luar é figurativamente, poeticamente, uma benção, sobretudo por ser o luar daquela noite, a de Natal, mas é sim o alvo da benção que é marginal, os legumes, ao invés do menino Jesus, das crianças, da casa familiar, entre outras imagens convencionais. Todos são reais na cena do poema, apenas alternativamente reais, por saírem do seu contexto textual, e é o próprio real a ser assegurado como uma realidade de potenciais múltiplos sentidos e formas, nomeadamente legumes. O poeta tem por função o registo inventivo desse potência intervalar, desse espaço invisível, mas habitável, que é também sua (do poeta) morada: o limiar, a margem, a indecisão abençoada, potencializada.
A construção do livro é a construção de uma identidade e de um estatuto que agora se valoriza pelo exercício do questionamento, concepção livresca que rima com o facto de constituir apresentação ao público de um poeta novo (novo na publicação e em idade; Drummond contava à altura 28 anos). Daí que se siga, logo no início, o poema “Também Já Fui Brasileiro”, no qual o sujeito translada a sua condição de brasileiro para um passado com ritmo, tempo em que era querido pelos amigos e odiado pelos inimigos, em que o seu estatuto era consonante com o estatuto dos outros, tempo em que foi poeta, mas cuja poesia se deixou perturbar pelo excesso de estrelas e céu, imagens metafóricas para falar de mulheres. Pois o tempo de Alguma Poesia é o de afirmar a ausência de ritmo pela escrita de poesia, fórmula irónica por excelência, chegando o sujeito ao ponto de negar a própria ironia. O poeta antes deslizava, agora não. Todavia, o passado que é retratado nas duas primeiras estrofes indica um tempo programado, organizado, motivo de contradição com o verbo deslizar e a noção, em si implicada, de neutralidade, por parte de um sujeito que desliza, como se apenas acontecesse. Pegando no termo acontecer, atente-se em “Poema que Aconteceu”, segundo o qual a poesia afigura-se coisa que acontece, floresce, desprovida de motivação, de deliberação autoral, sendo também o próprio texto uma imposição fora da subjectividade do poeta, afirmando-se registo da percepção que parte de ser marca da individualidade, exclusiva de um sujeito, para constituir impressão da ordem da paisagem, numa lógica em que a escrita antecipa a consciência, sob pena da mesma não chegar nunca: “A mão que escreve este poema/não sabe que está escrevendo/mas é possível que se soubesse/nem ligasse.” Assim, a realidade torna-se um alerta para a consciência viciada em si própria, no âmbito de uma poética constitutivamente egocêntrica, na qual os caprichos são admitidos como movimento da fuga inevitável, face à incomunicabilidade do poeta, entidade vocal, face a um mundo visual, oculto por imagens, e que emudece: “Tristeza de guardar um segredo/que todos sabem/e não contar a ninguém/(que esta vida não presta).” A poesia como denúncia da mudez. Face à mudez autoritária a que a realidade enigmática nos remete, resta responder com quebra, suspensão, interrupção, desvario e que, por exemplo, “Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.” Aqui regressamos ao verso final de tantos poemas de Alguma Poesia, que parecem sobreviver ao restante texto, o qual, em aliança com esse fim, forma um circuito entre o banal e o surpreendente (o fim), produzindo o efeito poético, garante de um singular estatuto de poesia.
Trata-se de desconstruir a matéria poética dos objectos, devolvendo-lhe um sentido renovado, intelectualizado, ironizado, satirizado, com poesia, que se trata, aqui, de uma actualização, a versão polida do mundo como matéria-prima, em bruto. O mundo destaca-se por servir a intenção de escrita do poeta, na medida em que se oferece, de permeio, objecto a descobrir e, consequentemente, a reinventar, num gesto não de reanimação — pois a realidade é já, por si, movimento e dança — mas num meneio de fixação poética, registo sensível, convergente para um sentido total e, sobretudo, autoral: deslindar o mundo será a assinatura maior de um sujeito em crise de identidade, ou em formação identitária, que será o mesmo.
Todavia, essa descoberta do mundo faz-se sob a perspectiva de um sujeito cuja nacionalidade se esvai a cada novidade do real, sob o pano de fundo de um Brasil que lhe é exílio, o que o perpetua sujeito isolado, só, melancólico; o sujeito para quem os outros são paisagem, como o poeta que, em “Nota Social”, equiparado à cigarra cujo canto não é ouvido pela multidão que o aplaude a si, chega a casa e “está melancólico”. A melancolia é uma constante, e é, para mais, uma melancolia contagiante, pois a partir do momento em que se sabe desse estado do poeta, tudo o resto, a ovação, o entusiasmo, o ânimo da multidão, é desvirtuado, torna-se tolo, descabido. Sobeja a melancolia imperiosa.
Encontraremos poemas, como “Já Fui Brasileiro”, no qual progredir intelectual e poeticamente será abandonar a feição comunitária, nacional, plural, do sujeito. Este forma-se, crescendo, na relação com um real alegórico que exclui o outro relacional, e o torna personagem, ferramenta, de uma narrativa poética a que chamamos Alguma Poesia, o que motivará o estado reservado e, no fundo, aprisionado, do sujeito. A sensação de exílio é permanente e expressa directamente pelo autor, numa carta a Mário de Andrade, datada de Novembro de 1924, na qual afirma: “O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado. E isto não acontece apenas comigo, apenas: ‘Eu sou um exilado, tu és um exilado, ele é um exilado.’ Sabe uma coisa? Acho o Brasil infecto.” De repente, o estatuto de exilado do poeta universaliza-se pelas três pessoas do singular a que se aplica a condição adjectival, e decorre não de uma conjuntura individual, singular — apanágio dos poetas geniais, categoricamente distintos e em inconformidade com um mundo pouco e redutor para os seus ideias e sensibilidades únicas — mas de um traço genealógico do Brasil; o Brasil que é infecto, cuja mancha, cuja podridão, inviabiliza a plenitude e o sentimento de pertença. Isto serve igualmente de justificação à escolha de Drummond pela moderação do apelo nacionalista, saudosista até, próprio do modernismo brasileiro, e que provocou, por vezes, acesas discussões epistolares com o companheiro Mário de Andrade.
Atente-se agora nos excertos do poema “Europa, França e Baía”:
Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cais bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.
O pulo da Mancha num segundo.
Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas.
Tarifas bancos fábricas trustes craques.
Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam um tapete
para Sua Graciosa Majestade Britânica pisar.
E a lua de Londres como um remorso.
(…)
Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa.
(…)
Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a “Canção do exílio”.
Como era mesmo a “Canção do exílio”?
Eu tão esquecido de minha terra…
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá.
A Europa é teorizada, no poema destacado, de forma decadente, podre, valorada na potência comercial, indiferente, meramente transitória, que constitui, e é apreensível na medida do visível, do materialmente assimilável, pelos olhos brasileiros do sujeito que se saturam de visões febris de atmosferas industriais, poluídas e poluentes, e híbridas (que é isso de uma Torre Eiffel com antenas, como um caranguejo?). A decadência é sintetizada num deboche disfórico: “Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa.” A sabedoria escorre, não se constrói, e escorre, para mais, em água suja.
O trabalho do poeta é documentar a decadência e responder-lhe com humor — por norma numa estrofe final suspensiva — e que, no presente poema, imprime um duplo esquecimento: o da sua terra, cuja saudade é apenas ausência de memória; e o esquecimento, parcial, de onde se deixa entrever certo tom de desprezo, pelo texto ao qual faz uma referência insuficiente, propositadamente insuficiente, ao poema “Canção do Exílio”, do poeta romântico Gonçalves Dias: é que os últimos versos em tudo são semelhantes ao da composição do poeta oitocentista, tirando o referente possessivo “minha”, relativamente à terra, o Brasil, que, na versão de Drummond, é elidido, clarificando a condição de estrangeiro do sujeito, no seu próprio país. Contudo, o Brasil, que para Gonçalves Dias é não só motivo de saudade, mas também espaço da felicidade pura, sobretudo quando comparada à Europa industrializada, feia e mecânica, para Drummond é mero motivo descritivo: uma terra com palmeiras e onde canta o sabiá, mas da qual não há maior lembrança que essa pontual, referencial, exterior a si. O Brasil como paisagem, como espectáculo, como motivo artístico, sinalizado na e pela distância cénica.
O sujeito desloca-se da sua origem, do seu país, e coloca-se entre passado e presente, entre rememoração de uma poesia antiga, romântica, e a sua actualização moderna. Pois é precisamente nesse hiato que a sua originalidade, onde a poesia como forma virtual de olhar as coisas e os tempos, se faz valer. Não há filtros em Drummond. Há sim a exposição do circuito secreto, o próprio filtro, entre o que é comum, popular, quotidiano (topos amplificado em A Rosa do Povo, de 1945), e o imaginário poético, como contestação do real, pois fazer poesia será, numa lógica política, perguntar o real, sem o excluir, numa tentativa de acerto, de consequências bilaterais, entre sujeito e paisagem. Os dois pólos equacionam-se pelo não acontecimento, pois a poesia de Drummond, mais que tudo, é registo sensível, leitura escrita, ensaio.
Lembre-se novamente o célebre poema “No Meio do Caminho”: o corpo do texto vicia-se linguisticamente na tautologia, pela repetição levada ao delírio, da frase, quase sentenciosa, pela sua ininteligibilidade, “No meio do caminho tinha uma pedra”. Ora, a insistência da frase leva-nos a crer que aí reside a chave para a compreensão do poema. Contudo, facilmente nos toma o desespero pelo sentido, e sua aparente falta, pois o que é tido como sustento explicativo encerra um não acontecimento, um não sentido, a não ser o da referência, uma pedra no meio do caminho, e o efeito dessa alusão referencial, que é tempo e matéria — não nos esqueçamos da impressão profundamente sensitiva, física, das retinas “tão fatigadas” pela existência dessa pedra, objecto que tudo pode ser, que representa a autorização legitima da poesia à imaginação.
Em “Sweet Home”, provavelmente o poema de maior carga humorística — cuja figura principal é dada por meio de uma poltrona cujo tipo é “de humorista inglês” — é projectada uma cena descritiva, banal, de alguém sentado, a fumar cachimbo numa poltrona, cenário para uma breve divagação sobre o carácter romanesco da vida, por mentiras que veiculam nos jornais, que só permitem uma consciência parcial, por “folhetins”, da existência que não é nunca, assim, total e/ou completa. Todavia, rapidamente se regressa ao conforto inicial, agora em regozijo: “Ó gozo de minha poltrona!/Ó doçura de folhetim!/Ó bocejo de felicidade!” O folhetim, a cegueira parcial e inevitável de existir, passa a ser também motivo de júbilo. A reflexão emotiva sucumbe ao simples estar, acontecimento oco em si mesmo, mas que, pela referência, pelo texto como uma pedra no meio de (um) caminho, é transformado em tópico, forma vital de estar no mundo, compreendido num tempo e numa matéria.
Em tom de conclusão permito-me citar integralmente o poema “Quadrilha”, cuja noção de término é particularmente preciosa:
João amava Teresa que amava Raimundo
que amanha Maria que amava Joaquim que amava Lili
que que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J.Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
A primeira parte do texto trata-se da exposição de uma narrativa amorosa de sentimentos não correspondidos. A história compreende, assim, a enumeração de nomes (João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim e Lili) cuja relação consiste precisamente no amor não correspondido entre si. As figuras relacionam-se na medida justa da ausência de vínculo, e o sentido da narrativa torna-se a própria falta de sentido, mas que todavia assegura uma congruência e, enfim, um sentido. Todavia, o vício por que o poema se pauta num primeiro momento resolve-se no casamento, prova de amor correspondido, mas que funcionará como cicatriz da falta de correspondência anterior. E porquê? É que Lili, amada por Joaquim, e que não amava ninguém, casa com alguém fora do circuito da narrativa. Com efeito, o sentido, o desenlace, a possibilidade formal de haver um fim, surge apenas no espaço exterior ao da intenção narrativa, ao do impulso criativo, o que é duplamente desolador e consolador; pois se é frustrante que o inventor, o autor, de uma história, não consiga incluir nela um fim satisfatório e essencial para que a sua narrativa seja reconhecida como tal, o facto de existir a possibilidade de integrar na sua criação algo que é dado pelo mundo, pela circunstância extra-textual, faz de si, do autor, um ser contextualizado e participante de um mundo habitado por outros; enfim, faz do autor um ser com origem — um referente constitutivo.
Contudo, é claro que tudo isto não é nada mais nada menos do que projecção fictícia, que corrobora uma poética de autor em permanente convergência para as noções distintas, mas adjuntas, e em cuja fronteira resta o seu sentido secreto, da(s) paisagen(s) e do(s) sujeito(s). A ideia de fronteira, no poema destacado, consubstancia-se na admissão de que é J.Pinto Fernandes que vem pôr fim ao vício da narrativa que lhe é precedente, admissão aliada à da que o mesmo J.Pinto Fernandes é elemento estrangeiro à história que o determina, o que provoca dois efeitos geminados: o da angústia e o do cómico, pois ser a estranheza, o desconhecido, o mecanismo para a compreensão, é admitir certa impotência, mas que sendo inscrita em poema de uma autoridade estável, torna-se apenas irónico. Ora a graça, ora a melancolia, a angústia, são marcas tanto da poesia do autor, como são os elementos que, pela forma suspensivamente conclusiva com que surgem no texto, garantem o carácter moderno de Alguma Poesia.
Uma poesia que é cicatriz, uma “ferida de um anjo batalhador”, de alguém que questiona, entre movimentos ora de foque ora de desfoque da realidade, em cuja incerteza são descobertos sentidos renovados, onde legumes são abençoados, tardes são azuis, onde uma mulher é sensualmente louvada pela marca de mosquito e bala no seu corpo. Um paraíso disfórico, sonhado como sonho da vida de um sujeito a nascer para as coisas, por meio de uma poesia sem pretensão de ser nada mais que isto: fronteira, intervalo, sonho, rima que não é solução, mas que muito soluciona pela reiteração sensível da ausência de solução. Poesia que é Alguma (Poesia) — o que, se não nos permite saber nada em concreto, credita-se pela liberdade para imaginar o que quer que seja. É efectivamente poesia, distinta na potência que a constitui, rarefazendo o enigma do mundo, numa forma de libertinagem pela lírica, pelo dizer das coisas, sem valorizações quantitativas ou qualitativas que a comprometam.
Bibliografia:
– BARROS BAPTISTA, Abel (2010). De Espécie Complicada, Ensaio de Crítica Literária. Angelus Novos: Coimbra.Pp. 81-94; 143-169;
– Cadernos de Literatura Brasileira, Carlos Drummond de Andrade (2012), Instituto Moreira Salles;
– DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos (2013). Alguma Poesia. Companhia das Letras: São Paulo;
– DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos & DE ANDRADE, Mário (2002). Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Bem-Te-Vi: Rio de Janeiro. Pp. 56,387.