A Linguagem Poética e o Desvelamento do Ser Negro em Luiz Gama na Sociedade Brasileira do Século XIX

Texto de Nina Maria Silva da Conceição. Revisão de Sílvia Pereira Diogo. Resumo: A poesia libertária de Luiz Gama, célebre poeta brasileiro da segunda geração do romantismo, após 140 anos de sua morte, continua causando provocações e atuando como símbolo de resistência no movimento negro e causa antirracista. O objetivo deste artigo é apresentar considerações teóricas literário-filosóficas sobre a poética de Gama no seu consagrado poema “quem sou eu?” à luz da filosofia heideggeriana, no que tange o habitar poeticamente e o uso da linguagem poética como desvelamento da condição do dasein ante a corrupção, preconceito e a miscigenação da sociedade brasileira do século XIX, atrelado a Barthes (2010) e Hauser (2010). Palavras-chave: Linguagem; negritude; estudos sociais; desvelamento.

Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador, Bahia, em 21 de junho de 1830. É filho de Luiza Mahin – célebre africana livre, que atuou nas Revoltas dos Malês e Sabinada – e de um português branco fidalgo de nome desconhecido. Após o desaparecimento de sua mãe, Luiz é entregue ao pai, sujeito este que vende o filho de 10 anos como escravo a um traficante, a fim de quitar as suas dívidas. Gama desembarca no Rio de Janeiro e, posteriormente, vai para São Paulo para trabalhar na casa do Desembargador Antonio Pereira Cardoso como escravo doméstico, tendo como função lavar, cozinhar e costurar. Ao ser alfabetizado pelo estudante de direito Antonio Rodrigues do Padro Júnior – devido à sua inteligência –, e estar no centro das injustiças da sociedade brasileira para com os negros, Luiz Gama questiona o seu senhor, reivindica e alcança a sua liberdade.

Livre, Gama foi também Funcionário Público, tendo atuado no exército, operando também como copista, nomeado amanuense – ofício que tem como objectivo a cópia de documentos e correspondências – e rábula – isto é, advogado sem formação académica. Mais tarde, torna-se advogado autodidata. Para além disto, Gama, sob o pseudônimo de Getulino, lança em 1859 a sua única obra literária, Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, consolidando-se enquanto poeta no mundo literário. Também foi jornalista e fundou jornais importantes da época com cunho satírico, criticando a sociedade escravocrata. A certa altura, Luiz Gama casa-se com Claudina Fortunato Sampaio. Do casamento, tem um único filho, Benedito Graco Pinto da Gama, O poeta morre de diabetes em São Paulo, no dia 24 de agosto de 1882. Consagra-se como patrono da abolição devido à sua atuação enquanto advogado abolicionista, tendo libertado mais de 500 pessoas escravizadas. Em 2015 foi reconhecido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como membro da entidade. Mais de cem anos depois, a sua poética satírica é estudada e reconhecida pela crítica literária brasileira.

Primeiras Trovas Burlescas de Getulino teve sua primeira edição publicada em 1859, em São Paulo. A segunda edição é impressa no Rio de Janeiro, em 1861, eivada de correções e acréscimos de poemas. Foi uma obra bem recebida pela crítica da época, tendo permitido a entrada de Gama, enquanto poeta, no mundo literário e intelectual. O novo estatuto deu-lhe a vantagem de frequentar eventos como saraus, peças de teatros, reuniões literárias, políticas e sociais. A isto acresce o facto de ter tido as suas poesias publicadas nas páginas de jornais da época.

Trovas burlescas vincula Gama à segunda geração do Romantismo. No entanto, estudiosos como Andrade e Wanderley (2019) apontam uma aproximação dos poemas com a terceira fase do movimento, reconhecida através da sátira social, devido às temáticas glosadas, como a corrupção, o preconceito e a miscigenação. De acordo com o Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira (1967), Luiz Gama é considerado o primeiro poeta satírico do romantismo, tendo sido influenciado por Gregório de Matos e Faustino Xavier de Novais ao usar versos com expressões lírico-elegíacas. O uso do pseudónimo Getulino reafirma as suas origens africanas. A alusão à região Getúlia, por tribos bárbaras, ao Norte da África nos antigos mapas romanos, é por demais evidente. Hoje o território corresponde a Tunísia e Argélia, como cita Luiz Carlos Santos, na obra Luiz Gama – Retratos do Brasil Negro, publicada em 2010. E, Santos comenta a poética de Gama:

Sua poesia não é expressão de culpa. É ácida e reveladora, afirma e confirma sua identidade, seja por meio da herança do forte caráter materno, cujas origens estão na África, seja evidenciando a frágil identidade constitutiva do povo brasileiro.

SANTOS, 2010, p.41

POEMA

Quem sou eu?

Quem sou eu? que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrito
Esta palavra — “Ninguém!” —

A. E. Zaluar — “Dores e Flores”

Amo o pobre, deixo o rico,
Vivo como o Tico-tico;
Não me envolvo em torvelinho,
Vivo só no meu cantinho:
Da grandeza sempre longe,
Como vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que são antigos,
Fujo sempre à hipocrisia,
À sandice, à fidalguia;
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino
Que no pletro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas,
Têm brasões, não — das Kalendas,
E, com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções,
Galgam altas posições!
Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratante, bem ou mal
Com semblante festival.
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante,
Que blasona arte divina,
Com sulfatos de quinina,
Trabusanas, xaropadas,
E mil outras patacoadas,
Que, sem pingo de rubor,
Diz a todos, que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
— Faz a todos injustiça —
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
— Neste dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.
Fujo às léguas do lojista,
Do beato e do sacrista —
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados,
Mas que, tendo ocasião,
São mais feros que o Leão.
Fujo ao cego lisonjeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleável, sem firmeza,
Vive à lei da natureza;
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas num momento.
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta…
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes…
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, veadores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, cabos, furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar-e-guerra,
— Tudo marra, tudo berra —
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos. —
O amante de Syiringa
Tinha pelo e má catinga;
O deus Mendes, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E, segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos ludus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!

(In: SILVA, Júlio Romão da (Org.). Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1981, p. 177-181)

“Quem sou eu?” é um poema também conhecido como “A bodarrada”. Segundo Andrade e Wanderley (2019), o poema possui uma estrofe única com 138 versos de sete sílabas poéticas, isto é, redondilha maior, e rimas equivalentes aos dísticos. Esta composição apresenta a poética satírica de Luiz Gama, cujo objetivo não é somente incitar o riso do público por meio do exagero, como também transformar a visão social e firmar uma atitude de resistência do poeta que escreve. De acordo com Andrade e Wanderley, os versos 13, 19 e 20 (“Faço versos, não sou vate […] Sei que é louco e que é pateta/ Quem se mete a ser poeta”) configuram-se como metalinguísticos: apresentam a desidealização do romantismo através da concepção de poeta, tendo em vista que o termo “vate” – de origem latina – significa pessoa que faz poesia ou versos. Neste contexto, o ‹‹eu-lírico›› não se considera um “vate”, devido ao cunho social da poesia, mas acaba por recuperar mais tarde a concepção do “vate” na rima de “poeta” com “pateta”, harmonizando-se uma na outra.

Dos versos 69 até o final do poema, o ‹‹eu-lírico››, numa primeira instância, afirma e ressalta a sua negritude, independentemente da sociedade da época correlacionar essa identidade à palavra “bode”, no sentido pejorativo, para se referir aos negros de pele escura. Em segunda instância, estende-se o uso semântico da palavra “bode”, a fim de relacioná-la com os brancos e atribuir-lhe o mesmo sentido dado aos negros, equiparando assim as duas raças. A mesma solução poética é utilizada para nivelar as outras raças e classes e posições sociais nos demais versos, como atestam os exemplos: cinzento/rajado, baios/pampas/malhados, plebeus/nobres, ricos/podres, sábios/importantes/tratantes, condes/duquesas, deputados/senadores/vereadores, frades/bispos/cardeais, citando-se também o exército militar. Além do mais, o uso da palavra “bode” ao longo de todo o poema é também uma metáfora, através da qual Luiz Gama mostra os defeitos e vícios da sociedade preconceituosa, corrupta e “esbranquiçadas”, mas não está exclusiva a esse uso (ANDRADE e WANDERLEY, 2019).

Considerado por muitos estudiosos como um poeta da terceira geração do Romantismo, de acordo com Hauser (1892), Luiz Gama configura-se como poeta romântico da segunda geração, devido à politização da arte e da sua vida artística. A isto acresce o facto de que a burguesia, enquanto seu público, durante o romantismo, buscava um efeito de escárnio na literatura. Tendo isso em mente, em ‘’Quem sou eu?”, o poeta, além de “entreter” o publico, também expõe a sua opinião, tal qual a frase: Vous verrez qu’il faudra finir par avoir une opinion [Vereis que no fim será preciso ter uma opinião] (1932, apud. HAUSER, 1892).

Podemos pensar a poética de Luiz Gama a partir do que Heidegger nos conta acerca de Hölderlin – filósofo e poeta romântico alemão. Heidegger pensa a poesia romântica alemã como algo produzido para além da subjetividade, isto é, tendo em vista a fuga do idílico; ao mesmo tempo é-lhe inerente uma capacidade de formar a opinião pública de maneira evoluída e crítica. Para a poesia de Luiz Gama não devemos estar esquecidos do contexto histórico que lhe serve de pano de fundo, o Romantismo. De modo geral podemos descrevê-lo como movimento artístico que retrata a burguesia do século XVIII e XIX, empenhado na constituição de uma nova elite da sociedade, por meio da superação de regimes absolutistas. Através de ideais românticos, isto é, partindo desde o culto ao “eu”, sobressai a exaltação da natureza, a idealização do herói e a fuga da realidade por intermédio da morte, da loucura e do sonho. O nacionalismo também está fortemente presente aqui, com a poesia social que questiona justamente os moldes da sociedade. À luz destes ideais se pode pensar a poesia romântica brasileira, que também buscava a subjetividade do ‹‹eu-lírico›› e os seus aspectos românticos característicos. A versão brasileira do Romantismo literário também pode ser apresentada por meio de denúncias sociais da sociedade da época, tendo em conta a necessidade de conscientizar a opinião pública de forma crítica e evoluída. Neste contexto, levemos em consideração a formação histórica do Romantismo no Brasil, que surge após a Independência (1822) e, a posteriori, com a libertação dos escravizados (1888) e com a Proclamação da República (1889), trazendo mudanças sociais, culturais e económicas para o país. Luiz Gama, de acordo com Heidegger, também habita poeticamente este habitat social como uma ocupação do corpo. No poeta convivem a morada do hábito e o movimento do ser em expansão a um lugar que lhe seja habitual, isto é, assim como o engenheiro habita as ferramentas, o poeta habita a linguagem. Na esteira do que postulou Heidegger (1951, p. 42), este habitar poético pode ser um estar diante da presença dos deuses e ao mesmo tempo ser atingindo pela presença essencial das coisas. Com isso em vista, Gama habita poeticamente o poema “Quem sou eu?”, dando-se conta da sua própria condição de negro, assim como dos seus iguais que não possuíam essa consciência, e utiliza a linguagem poética para apontar a discriminação racial para com a população escravizada, que não podia assumir um lugar na sociedade da época, cujo garante revolvia em torno da condição de subalterno.

Gama recorre à subjetividade e à fantasia do Romantismo quando traz a metáfora do bode para se referir às diversas castas da sociedade brasileira do século XIX. Esse efeito é conseguido através dos contrastes: “bodes negros, bodes brancos/ e, sejamos todos francos,/uns plebeus, e outros nobres,/bodes ricos, bodes pobres/”. Além de atentar contra a corte, a república e a igreja, ao comparar os bodes a Condes, Duquesas, Marquesas, Deputados, Senadores, Bispos, Frades e Cardeais, acaba por fracturar os limites do real com o irreal, misturando-os, e atribuir sentido crítico à vida social e histórica da população negra da época, marcada pelo racismo, segregada e discriminada. Sendo um poeta da segunda geração do Romantismo, ainda assim incluído na terceira geração como vimos atrás, perante a chamada social ou hugoana e com os apontamentos de denúncia social, Luiz Gama habita poeticamente o seu lugar na literatura brasileira. É tomando consciência da sua vida e da condição de homem negro que lhe subjaz que se liga à vida social e histórica dos microcosmos e do macrocosmo da época. Através da linguagem, capacidade soberana ao homem, e da sensibilidade satírica para atingir e criticar o universal, o poeta condena o movimento esclavagista do século XIX.

Heidegger diz-nos, adicionalmente, que a linguagem é a essência do dizer. Nesse sentido, o poeta possui a liberdade para se imiscuir na língua portuguesa. Essa casa do Ser que é a linguagem é um veículo que a poesia utiliza para evocar o falar silencioso e transformá-lo numa ressonância. Para Heidegger, o poeta é o único que, por meio da linguagem, pode desocultar ou desvelar o que está escondido. Então, o que se encobre na poesia, e está nas aparências dos fenómenos que constituem o universo, tem possibilidade para ser posto a descoberto. Seguindo esta linha de pensamento, Luiz Gama parece incorrer nesse desvelamento de forma constante: a manifestação da verdade da sociedade da época, o ênfase nas preocupações do cotidiano, tudo isto por meio da sua poética. Ao afirmar-se enquanto sujeito negro e apontar a prática da discriminação racial no Brasil do século XIX, traduz na imagem do “bode”, convencionalmente associada àquele grupo de pessoas estigmatizadas, uma espécie de apelo à sublimação que faz com que toda a população se unifique diante dessa imagem zoomórfica: isto é, à luz da crítica de costumes, todas as pessoas da sociedade oitocentista podem adquirir as características de bode! Mas Gama não apela a tal transformação na tentativa de se tornar branco, como muito frequentemente sucedia na sociedade da época pela parta da população negra almejar a uma espécie de embraquecimento, muito pelo contrário aliás! O que o poeta pretende é reafirmar a sua negritude e a condição de existência negra ante os partidários do racismo. Os seguintes versos demonstram essa capacidade do poeta: “Se negro sou, ou sou bode/pouco importa. O que isto pode”. O poeta assume a condição de negro perante a história que o precede. Não devemos esquecer que fora escravo e superou essa condição. É, agora, ex-escravo e advogado. Para além da figura literária, o carácter sobressai. Traz a temática lírico-racial à ordem do dia, dando voz e espaço à pluralidade do ser negro em sociedade e na literatura, assim como à população racialmente diversa na sociedade brasileira. De resto, procura desvelar as práticas de corrupção das conjunturas do século que observa. Os seguintes versos são especialmente demonstrativos desse desidério: “Não tolero o magistrado,/Que do brio descuidado,/Vende a lei, trai a justiça/ Faz a todos injustiça/Com rigor deprime o pobre/Presta abrigo ao rico, ao nobre,/E só acha horrendo crime/No mendigo, que deprime”.

De acordo com Santos (2010,) o afro-brasileiro deixa de ser apenas objeto de enunciação e passa a ser sujeito com direito à voz nas produções literárias, cujo espaço era até então dado apenas aos brancos. Neste sentido, há um deslocamento do olhar, que sai da visão eurocêntrica para se debruçar mais amplamente sobre a mestiça e a africana, como alternativa à convencional forma de olhar do branco sobre os negros. Tornar-se a poesia de Gama num olhar plural: a perspectiva de um homem negro intelectualizado. Podemos dizer, com as devidas reservas, que o ‹‹não-ser ninguém›› de Zular – poeta português naturalizado brasileiro, que aparece na epígrafe de “Quem sou eu?” –, como o ‹‹ninguém›› de Gama, se apropria da língua ‹‹fascista››, como apontou Barthes em Aula (1977), não pela mensagem que carrega, mas pelo jogo de palavras que emite: a sua fala abala as estruturas da própria língua e o seu sistema. Desta forma, a poética de Luiz Gama abala a sociedade contemporânea e os centros da literatura brasileira.

Considerado um dos primeiros poetas afro-brasileiros a enxergar-se como negro, Luiz Gama tem a firmeza humana para expressar, através de suas poesias com olhar revolucionário, um lugar autonomizado de fala, diferenciado pela relação com as causas do negro no Brasil. A sua poesia foi pouco explorada em vida, devido à ligação abolicionista e à sátira urdida nos poemas, que atrelavam o poeta, no fim das contas, a uma ideia de rebeldia perante a sociedade. Ainda assim podemos afirmar que o poema “Quem sou eu?” é considerado um divisor de aguas da literatura afro-brasileira (SILVA e PAIXÃO, 2013). Com o passar dos anos, a poesia de Gama passou a ser valorizada, reconhecida e estudada para além dos limites da literatura brasileira contemporânea.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, A. de O., & Wanderley, N. de A. (2019). A Sátira Em Luiz Gama: Uma Leitura Do Poema “Quem Sou Eu?”. A Cor Das Letras20(3), 128–142. https://doi.org/10.13102/cl.v20i3.4768.

BARTHES, Roland. Aula. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2002.

FRAGA, Myriam. A luta de cada um: Luiz Gama. São Paulo: Instituto Callis,2005.

HAUSER, Arnold. Rococó, Classicismo, Romantismo: Cap 6. O Romantismo alemão e ocidental. IN: História social da arte e literatura. 2ª. ed. Brasil. Editora Martins Fontes, 2010. p. 661-726.

MARTIN, Heidegger.“…Poeticamente o homem habita…”. IN: Ensaio e Conferências. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012, p.165-181.

Pequeno dicionário de literatura brasileira – biográfico, crítico e bibliográfico. Editora: Cultrix. Edição: 1ª Edição. Ano: 1967.

QUEM FOI LUIZ GAMA PATRONO DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL. Revista Galileu, 2021. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/Historia/noticia/2021/06/quem-foi-luiz-gama-patrono-da-abolicao-da-escravidao-no-brasil.html. Acesso em: 09/06/2022.

SANTOS, Luiz Carlos. A luta pela liberdade como projeto de vida: na literatura. IN: Luiz Gama. São Paulo: Selo Negro, 2010, p.50-63.

SCHMIDT, K. Lawerence. Cap. 4 A hermenêutica no segundo Heidegger: O caminho para a linguagem. Hermenêutica. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 3ª edição, 2014, p.108-113.

SILVA, Darlete Batista dos Santos; PAIXÃO, Magnólia Ferreira Cruz da. Cap 3. Resistência negro-poético: o lírico e o satírico: “Bodarrada: consciência negra poética”. O NEGRO COMO SUJEITO NA POESIA DE LUIZ GAMA. Saber aberto, 2013, p.53-57. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11896/825