A mulher em Mensagem: ventre revitalizador de uma nação adormecida. Texto de João Miguel Carneiro dos Santos. Porto, 26 de janeiro de 2016 (revisto em janeiro de 2023). Revisão de Sílvia P. Diogo. Imagem de capa: Justin Preissler, Alegoria da Europa, gravura, c. 1930-71, Alemanha, The Metropolitan Museum of Art, New York. https://www.metmuseum.org/art/collection/search/381354.
Considerando a célebre frase de Bernardo Soares – «Minha pátria é a língua portuguesa.» -, não será talvez arriscado dizer que nela está consignado todo um sentimento patriótico por Portugal e pela sua língua. Arriscado também não será, decerto, afirmarmos que esse patriotismo é já precoce em Fernando Pessoa, sendo esta ideia de imediato corroborada pelos versos que ele inocentemente dedicou à sua mãe:
Ó terras de Portugal
Ó terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Ainda gosto mais de ti.
(Pessoa, 1951:55)
Complexa que é a sua persona, torna-se difícil a tarefa de nomear qual a verdadeira pátria do poeta, pelas múltiplas perspetivas oferecidas nos seus textos. Por isso mesmo, talvez seja fundamental não apenas o exercício de identificação desse complexo e indefinido amor a uma Pátria, mas também o de atentar naquele que é, em si mesmo, o maior desígnio de “erguer alto o nome português”: a escrita de um livro como Mensagem. A confirmá-lo, citamos o que diz José Augusto Seabra em A Pátria de Pessoa ou a Língua Mátria:
«(…) Pessoa escreveria em tom exaltante: “Ninguém suspeita do meu amor patriótico, mais intenso do que o de quem quer que eu encontre, de quem quer que eu conheça”».
(Seabra, 1985:14)
Antes de avançarmos neste breve exercício de exegese relativamente ao tema a que nos propomos tratar, convém clarificar, uma vez mais, o valor que este autor atribui à Nação Portuguesa. Considera ele que
«Ser intensamente patriota (…) É, primeiro, valorizar em nós o indivíduo que somos, e fazer o possível por que se valorizem os nossos compatriotas, para que assim a Nação, que é a suma vida dos indivíduos que a compõem, e não o amontoado de pedras e areia que compõem o seu território,(…) possa orgulhar-se de nós, porque ela nos criou, somos seus filhos, e seus pais, porque a vamos criando.(…)».
(Pessoa, 1996:433)
Foi decerto dessa necessidade de valorização do indivíduo que, um ano antes da sua morte, Fernando Pessoa dá à estampa aquela que será a sua única obra publicada em vida, que já mencionamos.
Mas Mensagem não é apenas fruto de uma apologia de valores nacionalistas; é antes o gesto de uma certa ousadia daquele que se dizia criador de uma «Super-Nação futura». O tom profético que escorre por entre as suas páginas pode, talvez, relacionar-se com essa experiência inventiva de uma “Super-Nação”, povoada por criaturas superiores, dado que o que está em causa é a ressurreição de uma nação moribunda. É, pois, pelo investimento nessa recuperação da alma portuguesa que se torna necessário encontrar o cálice que unirá passado, presente e futuro numa visão unificadora da História e de quem nela é personagem, como algo necessário ao progresso. Se atentarmos no conjunto poético da obra a que nos referimos, não será difícil vermos nele todo um desejo de regeneração desse país adormecido que, ao longo da sua vida, se foi compondo e projetando.
Já não falamos, pois, de um projeto material e próximo do seu escritor como foram Os Lusíadas de Luís de Camões, mas sim de uma empresa espiritual assente na restauração de valores patrióticos edificados numa base mítica. Isto é, o que estava em causa, para o autor de uma obra como Mensagem, não era o mero canto das Armas e das Letras, mas sim o de (re)criação de mitos. Ele mesmo acredita que não há já a necessidade de se criar mitos para a nação portuguesa, mas antes de investir na sua recuperação. Não queremos com isto dizer que foi objetivo de Pessoa a total isenção de uma apoteose de personalidades e feitos históricos, mas antes explicar que a dimensão a eles conferida já não é equivalente à oferecida por Camões. Isto é evidente se nos apercebermos que a figura histórica concreta com que nos debatemos na epopeia quinhentista está, em Mensagem, totalmente apagada, restando apenas a sua funcionalidade e vivência míticas.

Por forma a não nos desviarmos do assunto a que nos propomos neste breve ensaio, torna-se necessária a tarefa de nos encaminharmos para aquilo que se prende com o papel da figura feminina nesta obra. Ao abrirmos Mensagem deparamo-nos, desde logo, com uma figura envolta em mistério, qual princesa adormecida de «Eros e Psique». Referimo-nos, claro está, ao poema «O dos castelos» e à figura da Europa, cujo rosto é, como sabemos, Portugal. É certo que não se trata de uma figura histórica, como outras a que faremos referência mais adiante, mas de uma representação alegórica de um território geográfico como figura feminina. Importante será também não esquecer o seu olhar esfíngico, porque é a partir dele que se reconfigurará o projeto de reinvenção de um futuro voltado para o passado. Desde logo, vemos que a figura feminina se encontra numa posição estratégica desse projeto pessoano que é Mensagem, porque é a ela que o poeta delega a tarefa de estar vigilante e contemplativa; a ela cabe carregar nos seus ombros o império espiritual português ainda não totalmente letárgico. Sobre isto, diz-nos António Cirurgião:
«[A Europa] como a esfinge, vive numa eterna vigília, a andar o mistério dos tempos e dos espaços.»
(Cirurgião, 1990:42)
Avancemos algumas páginas da obra e atentemos no poema «Mar Portuguez». Estamos agora na segunda parte de Mensagem e podemos reparar que, mais uma vez, a figura feminina – agora aqui representada de forma coletiva – se apresenta como figuração de um drama, também ele coletivo, encabeçado por essa empresa territorial que foram os Descobrimentos. Passamos a desvendá-lo: o sofrimento e a espera das mulheres – mães e esposas – ali consignadas serão sempre tomados como algo que só a elas lhes cabe. Não estamos decerto longe do episódio das “Despedidas em Belém” de Os Lusíadas, em que também se procurou representar esse «drama da humanidade em toda a sua grandeza, ao mostrar o poeta que o homem só se realiza pela renúncia, pelo sacrifício.» (1990:187). É através da invocação do fundamental papel das mulheres, enquanto figuras maternais e protetoras, que se consegue representar esse veículo de investimento e afirmação de uma (re)conquista patriótica não apenas conseguido pela figura masculina e essencialmente ativa.
Contudo, não se poderá apartar o imenso papel que tiveram os heróis masculinos na demanda construtiva de um forte poder imperial aqui consubstanciado na recriação do Quinto Império. Essa procura reconquistadora interior constrói-se, em Pessoa, através de um exercício de inventariação daqueles que foram os principais edificadores da nossa identidade nacional. É com Mensagem que esse desejo melhor se consegue projetar, pois temos de olhá-la como um projeto de reconstrução dessa tal “Super-Nação futura” apenas e só alicerçado na essência do ser português, a que anteriormente aludimos. Porém, o problema, cuja resolução se determina fundamental para o poeta, é o facto de Portugal se encontrar, nesse momento, numa profunda crise de identidade (nacional) como o comprovam os derradeiros versos desta obra: «Ninguém sabe que coisa quer. /Ninguém conhece que alma tem, /Nem o que é mal nem o que é bem (vv.7-9).»
Para Pessoa, a única forma de despertar o seu leitor, fazendo-o entender o projeto colossal que aquele tem em mãos, apenas se logrará, como também já o dissemos, através da inventariação de figuras históricas estruturantes que Mensagem procura restaurar e cuja grandeza tem o fito de adicionalmente restituir. Cabe a esta nova epopeia resgatar e devolver a Portugal uma resposta satisfatória ao problema do esquecimento e da desagregação das suas potências individuais. Logo depois de «Os castelos» e, claro, da figura da Europa que funciona como incipit deste projeto nacionalista, o nosso Pessoa-guia conduz-nos a uma revisitação daquelas que são as figuras de elenco do nosso passado histórico sedimentado. A partir daqui, vamos averiguar aquelas que constituem um papel criativo determinante para esse impulso transcendente.

Lemos numa obra de Joel Serrão, de nome Fernando Pessoa Cidadão do Imaginário: «Uma coisa, todavia, para nós é certa: o Super-Camões alimenta-se, em última instância, do mesmo húmus nacional e nacionalizante do Marânus». (Serrão, 1981:149). Esta referência à epopeia saudosista de Teixeira de Pascoaes que, tal como Pessoa, procurou recuperar da trama histórica os seus protagonistas, revela-nos, uma vez mais, a importância da conceção unificadora daqueles que construíram o nosso império, ora mais territorial, ora mais espiritual e transcendente. Por seu turno, em Saudade e Profetismo em Fernando Pessoa, obra de Alfredo Antunes, vamos ao encontro desta mesma ideia: a de que «Pessoa e Pascoaes se encontravam, assim, na consciência nacional de redescoberta. Mudava apenas a formulação dos meios: para Pessoa será o «Espírito Civilizador» que há de operar a travessia e o milagre; para Pascoaes, essas Índias Espirituais serão conquista da Saudade transcendente.» (Antunes,1983:435)
O papel feminino que destacaremos a partir de Mensagem, está também presente em muitos textos pessoanos. Bastará recordarmos poemas que aludem, por exemplo, à nostalgia da infância para neles depararmos com a presença de uma figura feminina e materna. A título de exemplo, a ama de «Não sei, ama, onde era», a mãe de «O menino de sua mãe» ou, ainda, o aconchego da noite em «Passagem das horas», de Álvaro de Campos, aparecem, na perspetiva de Vilma de Albuquerque Silvestre, num artigo intitulado «Representação do feminino em Fernando Pessoa: uma introdução», «como a mulher, a virgem, a mãe, despojada de sensualidade ou de sexualidade, e interditada ao desejo e às volúpias dos prazeres».
A primeira figura feminina, enquanto presença real em Mensagem, é «D. Tareja». Embora se distinga da Europa de «Os castelos», que apenas existia como figuração antropomorfizada de um território imperial, a figura de D. Tareja apresenta, ainda assim, ligações àquela. Começando por situar o poema na estrutura da obra, colocamo-lo na primeira parte da divisão tripartida de Mensagem: «Brasão». Não é, como em toda a poesia pessoana, despropositado o lugar votado a este poema. É nele que conflui todo o diagrama histórico, subdividido nas suas personalidades, e mais ainda, nele está presente toda a memória coletiva que se pretende resgatar do esquecimento da História. Isto é, nesta parte inicial estão representados, como num políptico, os símbolos potenciadores daquele mistério a que fomos aludindo com «O dos castelos». A presença iniciática de D. Tareja, mãe de D. Afonso Henriques, surge associada à revisitação histórica da nação, fundamentalmente pelo seu papel na recuperação da consciência coletiva do seu passado, que é entendido como imprescindível para os sucessos futuros.
Mas, que importância terá esta figura feminina, quase despercebida entre as figuras maioritariamente masculinas, para o projeto que Pessoa quer desenvolver? Talvez, como se explica desde logo no primeiro verso de “D. Tareja” – “As nações todas são mysterios.”(vv.1-2) – seja necessário um impulso de mistério para que as nações, e em particular, a portuguesa, partam em busca de um sentido para a missão que lhes cabe. Como este, o verso seguinte poderá também constituir um axioma, já que confere a essas nações uma certa individualidade na tarefa de seguir em frente, procurando o sentido do seu destino. É como se cada uma fosse sagrada por Deus – ou por um impulso divino – no momento do seu nascimento ou no despertar do sono eterno, pela ressurreição, cumprindo assim mais uma função do projeto pessoano. O destino está muito evidentemente para além do alcance do herói, na medida em que o submete aos seus desígnios, fazendo com que os seus atos futuros sejam forçosamente resultado dessa força oculta que o domina. Não nos referimos a atos puramente materiais e quiçá passíveis de ser votados ao esquecimento. Falamos antes da conquista daquele “porto sempre por achar” (v.16) de que fala «Padrão».
Em «D. Tareja» não se incentiva a um encorajamento para a conquista da espada ou da luz da chama que repelirá a sombra, antes se procede a uma invocação quase precatória do seu poder enquanto mãe misteriosa da nossa nação: “Ó mãe de reis e avó de imperios/Vella por nós!”(vv.3-4). Repare-se no tom oracional da apóstrofe que se coaduna com o imperativo verbal seguinte, num claro pedido de proteção e vigília para o que somos. Vemos novamente um apelo à ternura maternal que em Pessoa é, como foi já visto, sinónimo de felicidade e de segurança. É D. Tareja a mãe real de Portugal, porque dela nasceu o nosso primeiro rei e foi dela que brotou a luz da sua criação. Na opinião de António Cirurgião, «é de certa maneira a transformação de D. Tareja na Magna Mater do império que foi Portugal, no tempo das grandes descobertas marítimas e conquistas, nos séculos XV e XVI, e do império que virá a ser: o Quinto Império, feito tema fundamental da Mensagem» (1990:71). A considerarmos isto verdadeiro, podemos desde logo estabelecer outro paralelo, justificando, assim, a importância da figura feminina no universo de Mensagem.

Passando à estrofe seguinte, vemos de imediato qual foi o principal papel de D. Tareja, para além de o de progenitora. Foi ela cujo “seio augusto amamentou/ Com bruta e natural certeza/O que, imprevisto, Deus fadou” (vv.5-7). Isto poderá levar-nos à mitológica loba que amamentou Rómulo e Remo, fundadores de um império. Mais ainda, não podemos descurar de atentar no adjetivo que carateriza o seu seio, que etimologicamente se associa a algo divino, superior e, por isso mesmo, digno de veneração. Porém, convém deixar claro que não é por ser apresentada como figura a quem se invoca auxílio, porque é detentora de poder, que se pode afirmar categoricamente que ela é divina e intocável. Não o é, pelo seguinte: ao realçar, em forma de contraste, o seio divino com que amamenta o seu descendente com a “bruta e natural certeza” com que o faz, Pessoa dá logo a conhecer o lado humano e instintivo da figura. É esse estímulo natural na tarefa de amamentação de um futuro rei, também de certa forma feito como algo inconsciente e, por isso, “imprevisto” que se passa do plano do desejo e da vontade divina para o plano daqueles que o cumprem.
O nosso profeta invoca a atenção da rainha para que esteja vigilante perante aquele seu filho – aqui, obviamente, representando Portugal – que envelheceu: “O homem que foi teu menino/Envelheceu.”(vv.11-12). Novamente, estamos perante duas situações: uma é a de que, nem mesmo regressando à nossa origem, nos encontramos totalmente sãos e rejuvenescidos; outra é a da urgência de se tentar ainda combater esse estado exânime a que a alma portuguesa está votada. Porém, Pessoa acredita na possibilidade de ainda se poder escapar a essa condição: através do diálogo entre a mãe do nosso fundador e Deus, a força superior: “Dê tua prece outro destino/A quem fadou o instincto teu” (vv.9-10). Essa possível solução apenas se consolidará se se conseguir que a força divina conceda um outro destino àquele que está moribundo. Esta hipótese é quase dada como adquirida: “Mas todo vivo é eterno infante” (vv.13-14). Portugal está no fim da sua vida, mas é ainda capaz de se reerguer, se assim o conceder Deus por intermédio de D. Tareja, a quem o poeta se dirige. Dela não se espera já o resgate por inteiro da imagem presencial do seu filho enquanto jovem “infante”, mas a da sua existência espiritual ressuscitada. À tarefa de alimentar o filho com o seu “antigo seio” cabe ainda a de vigília na noite “onde está e não ha o dia”, por forma a não nos olvidarmos do instinto patriótico já há muito perdido.
De novo, e de acordo com a visão de António Cirurgião, podemos decerto afirmar que «Semanticamente, a poesia gira à volta de três conceitos fundamentais ou núcleos sémicos: o da maternidade, o da intervenção do sobrenatural, e o do renascimento» (Cirurgião, 1990:73). Acreditamos ser esse o leitmotiv de que se ocupa a figura feminina nesta obra, sendo a sua subtil presença um jogo dialético entre o caráter humano e a sua projeção divina, a sua vontade de intervenção entre Deus e a sua humanidade e o diálogo entre o efémero e o sempiterno. É também pela presença de uma outra figura feminina, que a seguir faremos referência, que se justifica a relevância do seu semblante no panorama de revisão histórica de que «Brasão» e, mais especificamente, “Os castellos”, se ocupam.

Avançamos três poemas ao de “D. Tareja” e vamos encontrar uma outra figura feminina – «D. Philippa de Lencastre». É ela, como se sabe, a esposa do rei D. João I, fundador da segunda dinastia, e mãe da nossa Ínclita Geração. Este conhecimento histórico é tanto mais importante, quanto é certo que é a partir dele que se constrói esse novo rosto mítico desenhado pelo poeta e, evidentemente, muito importante para o reaver do nosso passado pleno de valores simbólicos. É a partir da faceta histórico-mítica desta segunda figura que se pretenderá consolidar, uma vez mais, a matriz unificadora daquele seu projeto futuro. Isto é, torna-se imperativa a recuperação do mistério iniciático que abre a epopeia moderna. Conseguimos comprová-lo, desde logo, com a leitura do primeiro verso do poema: “Que enigma havia em teu seio/Que só genios concebia?” (vv.1-2).
De novo, estamos no domínio do onírico, do fantástico, do inexplicável; estamos como que mergulhados no feitiço da História e das suas mágicas façanhas. Pessoa volta a questionar, retoricamente, a presença daquela mulher e do seu papel no desenredar do fio histórico nacional. Uma vez mais, não é conferido ao feminino o poder de se revelar afirmativamente como alguém que intervém de forma ativa na consecução de qualquer desígnio. Não é por acaso que o sujeito da enunciação lhe responde, embora ainda de forma interrogativa: “Que archanjo teus sonhos veio/Vellar, maternos, um dia?” (vv.3-4). Uma vez mais, estamos no plano do divino e do maravilhoso, ao querer suspeitar que, tal como à Virgem Maria, aparecera, a certa altura, um anjo, também a D.Philippa de Lencastre. Na primeira das duas quadras não é possível apartar esse pendor para o enigmático e para o misterioso que já, em «D.Tareja», se fazia presente. A permanência do ato de “vellar” surge, desta feita, imediatamente correlacionada com o nascimento e a proteção não apenas de um “infante” futuro rei, mas já de um plural de infantes predestinados – a que Camões conferirá o epíteto de “Ínclita Geração”. A sua genialidade, se quisermos parafrasear o cognome oferecido por Fernando Pessoa, ou a sua celebridade, no dizer do poeta quinhentista são, em si mesmas, o grande impulso criador daquele, já antes nomeado, império territorial que trouxera a expansão marítima.
Atentemos ainda noutra palavra que compõe esta primeira quadra: “seio”. Podemos, de facto, entendê-lo como lugar de conceção – o útero –, ou podemos ainda ir mais longe e, recuando umas páginas, ao encontro do mesmo “seio” já gravado no poema dedicado à mãe do nosso primeiro rei. Como vemos, torna-se inevitável, nesta obra, a associação a uma figura maternal, a partir daquele que é o seu elemento corporal mais alusivo e figurado. Isto é, não podemos deixar de associar ao papel materno o seu seio vigilante e o seu ato de amamentação.
Doravante começará a tornar-se mais elucidativa a funcionalidade revisitadora do rosto feminino em Mensagem, ao mesmo tempo que se tenta fazer entender que, não obstante o seu papel algo passivo, é também com ele – e a partir dele – que se começa a entrever a sua dimensão não apenas maternal, mas também de esfera portadora de outros mitos.
A D. Philippa de Lencastre Pessoa confere, simultaneamente, a função de progenitora, de testemunha de uma fé e de maga. Para o entendermos, basta que atentemos na segunda quadra do poema, “(…) Princeza do Santo Gral,/Humano ventre do Imperio/Madrinha de Portugal.”(vv.6-8). Embora tenha associado estas três funcionalidades da revivência histórico-mítica à esposa do nosso Príncipe de Avis, podemos compará-las de forma invertida à que surge nos versos de Pessoa. Isto é, o seu desígnio enquanto progenitora está imediatamente associada ao epíteto “Humano ventre do Imperio” (v.7). Aqui, e também à semelhança do que acontecia em «D. Tareja», confluem num mesmo verso duas realidades distintas: uma, condicionada à sua presença civil, e a outra ligada à sua dimensão magnificente e imperial. Por outro lado, a sua presença enquanto testemunha desse país ainda algo neófito, pelo atribuído epíteto “Madrinha de Portugal” (v.8), prende-se com o seu gesto de proteção e de vigília, como se Portugal fosse ainda o pequeno infante que segura nas suas mãos para conduzir à pia da fé. Já o seu papel de maga, justifica-o o verso “Princeza do Santo Gral”(v.6). Para isso, vejamos o que nos propõe, de novo, António Cirurgião, como possível interpretação deste verso: «Ao chamar a D.Philippa de Lencastre “Princeza do Santo Gral” ,está o poeta a acenar para três realidades: a primeira de carácter histórico, a segunda de carácter lendário, e a terceira de carácter profético.» (Cirurgião, 1990:91)
Acreditamos que, em Mensagem, são talvez estas duas últimas realidades as que mais se coadunam com o seu propósito literário: o de fazer entender qual é, efetivamente, o papel da mulher, ainda que a sua presença figurativa seja algo minoritária na dinâmica textual. É certo que, desde o princípio dos tempos, houve a necessidade de encontrar algo que pudesse transcender a banal vida do ser humano, por forma a libertá-lo da sua condição efémera, alimentando a sua fé e reconfortando-o na sua dor. É certo, também, que várias têm sido as crenças que têm acompanhado o Homem na sua temporária jornada, sendo a vinda de um Messias aquela que mais facilmente une os crentes.

Em Mensagem não estamos, de maneira alguma, longe de esgotar essa fé, nem é sequer esse o desejo do autor. Porém, para o que aqui importa comentar, a configuração e a perpetuação da lenda do Santo Gral assumem especial relevância, cabendo-lhes, uma vez mais, uma funcionalidade universal e agrupadora no aparato profético da obra. Sabemos, diz-nos a História, que aquela suserana terá tido berço em Inglaterra e, coincidência ou não, também ali terá nascido a secreta demanda do Gral, simbólica verdade há muito perdida, porém à espera de ser reencontrada. Não querendo depauperar a base simbólica desta tradição de raiz medieval, confinando-a apenas a uma dimensão, podemos estabelecer como sendo a sua principal substância o reencontro, já antes nomeado, entre o humano e o divino, entre a matéria e a alma. A inequívoca certeza de que tenha existido – ou que exista ainda – um rei Artur ou um seu Galaaz cavaleiro, não é, de todo, motivo relevante no núcleo profético que comanda toda a obra. A este respeito, citemos a leitura de Alfredo Antunes, em Saudade e Profetismo em Fernando Pessoa:
«A Mensagem está toda ela construída sobre uma estrutura de símbolos e de mitos. São estas as formas mais certas para atingir a universalidade, já que só pelo símbolo se transcende o mero nível conceitual. O símbolo dirige-se mais ao subconsciente do que ao intelecto de um povo.»
(Antunes, 1983: 462)
Isto significa que não importa saber qual é, efetivamente, o verdadeiro caminho por onde se deva seguir, mas antes ter a vontade de o querer percorrer; não basta que acreditemos apenas no que está para além de nós, mas que nos atrevamos a olhar-nos e a rever-nos por dentro. Talvez, por isso mesmo, Pessoa tenha querido trazer a figura feminina para o interior da sua obra poética, para nos incentivar que não cabe neste quadrante somente o combate sanguinolento, mas, e muito para além dele, o combate entre o que fomos, o que somos, e o que seremos. E essa é a tarefa mais difícil para os portugueses, no entendimento de Pessoa, como lemos ainda na obra já anteriormente citada:
«(…) o profetismo lusíada comporta o risco das situações novas, o saber sem saber, o esperar contra os dados, ou um viver por antecipação, onde a fé e a esperança suplantam a antevisão. Tal profetismo é sempre o transbordar para o messianismo, sebástico ou não; é falar antes do tempo sobre o inexistente que nem sequer se prepara».
(ibidem: 433-434)
Parecemos estar, novamente, no princípio deste ensaio. Justifica-se, assim, o velado mistério representado naquelas mulheres de quem nós nascemos como pátria, «e porque envolve a escuta de vagos anseios nacionalistas é, também, campo para uma verdadeira saudade colectiva marcada pelo distanciamento entre a lembrança da grandeza passada e a grandeza antevista na profecia.». (1983:434)
Ao abrir “Prece”, o poeta de novo invoca, rogadamente: “Senhor, a noite veio e a alma é vil. (v.1) / Dá o sopro, a aragem – ou a desgraça ou ancia -, /Com que a chamma do exforço se remoça. / E outra vez conquistemos a Distancia – / Do mar ou outra, mas que seja nossa!” (vv.9-12). Estamos no poema final da segunda parte de Mensagem, e aqui balançam duas vozes – a do poeta profeta e a do povo que ele representa simbolicamente. À semelhança do que acontece nos poemas «D. Tareja» e «D. Philippa de Lencastre», a oração e a ladainha repetem-se. Todavia, o que se escuta agora é o que apenas se pode escutar: um lamento por não se ter conseguido cumprir a ressurreição da apagada chama. Vejamos, em jeito de comparação, um excerto de outro seu poema – «Elegia na Sombra»–, para melhor entendermos o íntegro enlace entre Mãe e Pátria; patriotismo e amor maternal:
Presa da inquietação que não tem nome
E nem revolta ou ânsia sabes ter
Nem da esperança sentes sede ou fome.
Dorme, e a teus pés teus filhos, nós que o somos,
Colheremos, inúteis e cansados
O agasalho do amor que ainda pomos
Em ter teus pés gloriosos por amados.
Dorme, mãe Pátria, nula e postergada,
E, se um sonho de esperança te surgir,
Não creias nele, porque tudo é nada,
E nunca vem aquilo que há-de vir.
(Pessoa, 1973: est.28-29)
Terão sido ouvidas as preces de D. Tareja e de D. Philippa de Lencastre? Serão os seus seios capazes de ainda alimentar qualquer outra esperança? Nada disto terá, porventura, uma resposta íntegra e cabal. Devemos antes acreditar em algum resquício de salvação, sem, porém, esperarmos que o profeta e a sua pátria continuem a iludir-se. Ainda a propósito, diz-nos Alfredo Antunes:
«a Mensagem consagra a curva concreta entre a profecia e a saudade. A Mensagem continua, assim, a marcar o tempo de «advento» na lembrança das profecias. E enquanto tempo de expectação na vigília dos tempos messiânicos assim recordados na memória das profecias, tornou-se particularmente viva»
(Antunes,1983:475-476)
No momento de finalização deste que se propôs ser um esboço crítico sobre a figura feminina em Mensagem, acreditamos ter delineado de forma evidente um percurso que corresponde ao propósito enunciado pelo seu título: o de identificar a funcionalidade da mulher no universo ficcional da epopeia moderna de Fernando Pessoa. Por acreditarmos que, como inicialmente dissemos, à semelhança do que acontece na sua poesia lírica, também em Mensagem, a evocação da figura maternal, do seu gesto e dos seus carinhos, não representa apenas um sinal de desespero do presente sem alento, mas antes uma saudade do passado e da sua infância de descoberta.
Quisemos, assim, mostrar que nem só de homens se faz a História e apelar ao papel da mulher enquanto figura revitalizadora de uma nação adormecida e inerte oferecendo, a partir do texto do poeta, um retrato da heroína portuguesa: mais do que progenitora, mensageira carismática de inesgotável energia criativa.
Bibliografia
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