I – Considerações iniciais
Será o conceito de ‘arte’ definível? Poderá ser a arte algo de tal forma subjetivo que seja impossível apresentar uma definição para a mesma, ou existe, ainda que de forma bastante geral, um caráter objetivo naquilo ao qual atribuímos a designação de ‘arte’? Uma das propostas de resposta a estas questões surgiu de Morris Weitz, que, influenciado por Ludwig Wittgenstein, apresentou a sua teoria acerca daquilo que é a arte. A sua tese principal, de uma forma muito geral, é a seguinte: o conceito de ‘arte’ não é definível através de condições necessárias e suficientes.
Esta ideia da impossibilidade de definir o conceito de ‘arte’ assenta, sobretudo, em dois aspetos fundamentais que, segundo o autor, uma definição restrita pode eliminar. Ou seja, uma definição de ‘arte’ baseada em condições necessárias e suficientes não só poderá impedir que certas obras — que, de uma forma geral, consideramos como ‘obras de arte’ — sejam incluídas nessa categoria, caso não correspondam aos critérios estabelecidos, como também poderá limitar bastante a criatividade dos artistas, que serão quase que forçados a criar obras de acordo com essas mesmas condições, para que as suas criações possam ser reconhecidas como ‘arte’.
Assim, Weitz propõe que o conceito de ‘arte’ seja enquadrado numa tipologia a que denomina «conceito aberto»[i]. De forma geral, o conceito de ‘arte’ seria um conceito que se vai abrindo — ou fechando — à inclusão de potenciais novas obras, consoante determinadas condições. Neste caso, o termo condições deve ser entendido num sentido mais lato, e não num sentido restrito de condições necessárias ou suficientes. Essas condições incluem alguma semelhança com outras obras que já são consideradas como ‘arte’ e a aceitação, por parte da ‘comunidade artística’ — que abrange desde especialistas a apreciadores/espectadores —, dessas novas criações como legítimas expressões artísticas.
Todavia, a proposta de Weitz pode acarretar consequências contraintuitivas, devido ao seu carácter marcadamente subjetivista no que diz respeito ao conceito de ‘arte’. A possibilidade de pensarmos em certas obras que são amplamente reconhecidas como ‘obras de arte‘ — tanto por especialistas como por cidadãos comuns, mesmo aqueles sem particular interesse na área — parece indicar que existe, afinal , algum grau de objetividade na definição deste conceito.
O problema da teoria de Weitz reside na desconsideração desse elemento de objetividade — ainda que se trate de uma objetividade ampla. Ou seja, pode não corresponder a uma propriedade extremamente específica, mas antes a uma característica mais geral, presente em certas obras que, quase de forma inquestionável, reconhecemos como ‘obras de arte’. Algumas dessas obras chegam mesmo a alcançar um estatuto superior, sendo designadas como ’obras-primas’, com um grau de consenso semelhante, ou até idêntico, ao que se observa no reconhecimento das próprias obras de arte.
II – A posição subjetivista em relação à definição do conceito de arte
Weitz é, talvez, um dos primeiros autores a questionar não apenas a definição do conceito de ‘arte’, mas o próprio conceito em si. A principal pergunta colocada pelo autor é a seguinte: será possível definir o conceito de ‘arte’, atribuindo-lhe um conjunto de propriedades necessárias e suficientes? Esta tem sido, indiscutivelmente, a tentativa de praticamente todas as teorias sobre a arte — desde Bell, a Collingwood, Tolstói, Parker entre muitos outros. Todavia, na perspetiva de Weitz, essa abordagem constitui um erro.
Weitz argumenta que o conceito de ‘arte’ não pode ser definido por meio de condições necessárias e suficientes, e que a tentativa de o fazer constitui um erro lógico. Segundo o autor, definir o conceito de ‘arte’ com o propósito de criar uma teoria da arte é «logicamente impossível»[ii]. Este é, aliás, o principal motivo pelo qual todas as teorias anteriores falharam na tentativa de definir o que é a arte. As suas propostas são, de forma geral, transversais na procura de condições necessárias ou suficientes que sustentem tal definição. No entanto, como Weitz defende, todas essas tentativas incorrem no erro lógico de tentar atribuir à arte propriedades que ela, por natureza, não possui — nomeadamente, a de ser ‘definível’ através de condições desse tipo.
A principal razão de Weitz contra a impossibilidade de uma definição do conceito de ‘arte’ é a exclusão da criatividade artística. Weitz afirma que o carácter de permanente mudança e expansão da arte tornam impossível uma teoria com um conjunto de propriedades definidoras. Ver o conceito de ‘arte’ como definível através de condições necessárias e suficientes poderá impedir certas obras que consideramos, quase que unanimemente, como ‘arte’ de serem, à luz dessa definição, consideradas como tal. A possibilidade de criar novas obras de arte que possam, desafiar aquilo que, tradicionalmente, consideramos como arte seria impossibilitada pela definição restrita do conceito de arte, tendo tudo aquilo que seja arte de corresponder às tais condições necessárias e suficientes. Qualquer tentativa de colocar o conceito de ‘arte’ com uma tal definição irá, inevitavelmente, excluir certas obras que são, senão unanimemente, pelo menos maioritariamente, consideradas obras de arte.
Chegado a este ponto, é legítimo perguntar: – afinal, o que é a arte? Weitz afirma que o erro está exatamente na pergunta, e que aquilo que nos devemos questionar é que tipo de conceito é o conceito de ‘arte’ e não sobre o que é a ‘arte’. Para compreender da melhor forma a teoria da arte de Weitz é necessário recuar a Wittgenstein e toda a herança que deixou e que influenciou profundamente a posição cética de Weitz em relação à definição do conceito de ‘arte’.
Ora, aquilo que Wittgenstein nos diz, de uma maneira muito geral, é que existem certos termos que não compartilham entre si um denominador comum. Ou seja, não existe uma definição que abarque tudo aquilo ao que aquele termo se refere. Wittgenstein chamou a estes termos, «termos para semelhanças de família.»[iii] (A alusão à família deve-se ao simples facto de ser possível identificar vários membros de uma família, sendo eles todos diferentes, devido às semelhanças que têm entre si, comprovadas pelo seu código genético.)
A ideia é a seguinte: o que nos permite identificar aquilo que corresponde a um certo conceito é a sua semelhança com algo que corresponde a esse mesmo conceito. Utilizando o exemplo de Wittgenstein levemos em consideração o conceito de ‘jogo’. Ora, é difícil dar uma definição exata daquilo que é um jogo devido à gigantesca diversidade de tudo aquilo que consideramos um jogo. Desde desportos, a jogos de tabuleiro, videojogos, jogos de cartas, etc… Contudo, aquilo que nos permite classificar estas coisas como jogos, ou seja, como partes abrangidas pelo conceito de ‘jogo’, são as semelhanças que têm entre si.
Para identificar aquilo que faz, ou não, parte do conceito de ‘jogo’ teremos de sobrepor as suas semelhanças com aquilo que é considerado um jogo e perceber se existe algum tipo de correspondência entre elas. Este tipo de conceitos, como o conceito de ‘jogo’, não tem uma essência, uma característica comum que identifique única e exclusivamente tudo aquilo que é um jogo: contém sim conceitos «para semelhanças de família». A sua atribuição a uma determinada atividade X recai na análise comparativa com outras atividades Y, Z que sejam abrangidas pelo conceito de ‘jogo’.
Ora, aplicando a filosofia de Wittgenstein à arte, Weitz identificou a arte como um «termo para semelhanças de família» (Weitz irá utilizar a designação de «conceito aberto»[iv]), ou seja, um termo cuja aplicação não depende de um conjunto de condições necessárias e suficientes, mas, da semelhança que um determinado objeto R possa ter com outros objetos S,T aos quais chamamos obras de arte.
Weitz começa por distinguir dois tipos de conceitos os «abertos»[v] e os «fechados»[vi]. Um conceito «aberto» requer que se pondere sobre se se deve ampliar ou não o uso do conceito, para incluir um caso novo. Já num conceito «fechado» podemos ter condições suficientes e necessárias para aplicação desse mesmo conceito.
O conceito de arte seria assim um «conceito aberto». Aberto de tal forma que permite a possibilidade de se expandir sobre novos casos que não partilhem, necessariamente, de uma característica comum. Cabe aos utilizadores da linguagem decidir se os casos deverão ou não ser abrangidos pelo conceito. No caso do conceito de ‘arte’, caberia aos especialistas e aos críticos decidir se o mesmo deveria ser alargado de forma a poder incluir novas ‘obras de arte’.
Em suma, a teoria de Weitz é a de que o conceito de ‘arte’ é um «conceito aberto» e cuja atribuição é feita pelos utilizadores da linguagem, neste caso, especialistas e críticos de arte, através da análise comparativa entre o objeto que pretendemos considerar ‘arte’, e os outros objetos que já consideramos arte, na busca de semelhanças entre os mesmos. A sua tese assenta fundamentalmente no argumento de que, o carácter mutante da arte torna impossível definir esse mesmo conceito, e a tentativa de o fazer não é mais do que a limitação da criatividade. Daqui nasce a necessidade de abrir o conceito de ‘arte’ e de não o limitar através de uma definição com condições necessárias e suficientes.
III – Os problemas da posição subjetivista e a afirmação do objetivismo
A principal razão pela qual me parece que devemos rejeitar o ceticismo de Weitz, em relação à possibilidade da definição de um conceito de ‘arte’, é o grau elevado de subjetividade que a sua proposta apresenta para a ‘definição’ (ou a ausência da mesma) do conceito de ‘arte’. Parece-me que a arte tem um caracter mais objetivo que a teoria de Weitz falha em captar, e que o conceito de ‘arte’ é definível, ainda que o possa ser em termos muito gerais, e esta questão não deve ser confundida com a nossa capacidade, ou falta dela, de descobrir essa mesma definição.
Para ilustrar o problema devemos colocar a seguinte questão:
- Algo deve ser considerado uma ‘obra de arte’ pelo seu reconhecimento por parte de indivíduos como tal (uma visão subjetiva, no caso, em relação à avaliação dos indivíduos) ou essa designação é independente dos indivíduos (uma visão objetiva, a ‘obra de arte’ apresenta um valor intrínseco)
Se esse reconhecimento depende dos indivíduos, parece-me que existem, no mínimo, alguns problemas técnicos. Quais são os indivíduos que podem deliberar e decidir se algo é ou não uma ‘obra de arte’? Quantos desses indivíduos é que são necessários para definir se algo é uma ‘obra de arte’? (sobretudo em casos de discórdia.) Algo pode ser, durante um determinado período, uma ‘obra de arte’ e depois deixar de o ser? Parece que se deixarmos o conceito de ‘arte’ demasiado dependente do individuo (sujeito à sua avaliação) isso pode ser potencialmente problemático.
Ainda que estas questões técnicas possam ser consideradas ‘pequenos problemas’ e que possam ser refinados numa teoria final mais completa, estas questões deixam adivinhar outros futuros problemas que uma proposta mais subjetiva para aquilo que é a arte, como a de Weitz, podem apresentar. Aprofundemo-los supondo a seguinte possibilidade:
Em vez dos indivíduos terem começado a identificar semelhanças entre as ‘obras de arte’ e a atribui-lhes essa mesma designação albergando-as como parte do conceito de ‘arte’, eles teriam aplicado essas mesmas designações a objetos comuns do nosso quotidiano, nomeadamente utensílios de culinária. No período clássico teríamos utensílios de barro, na idade medieval já teríamos utensílios de metal, no período renascentista teríamos o revivalismo do barro, na época moderna o avanço dos metais e uma maior diversidade no tipo de material usado para os utensílios; e por fim, no período contemporâneo, teríamos utensílios de cozinha robóticos.
Weitz diria que se a linguagem tivesse desenvolvido dessa maneira, então não haveria problema em aplicar a esses objetos, a designação de ‘obra de arte’. As semelhanças entre eles são evidentes, e a sua consideração como arte não é de todo incoerente com a teoria de Weitz. Todavia, suponhamos que nesta realidade paralela, os grandes artistas teriam produzido as suas obras, seja lá por que motivo for, e que teriam sido produzidas a Gioconda de Da Vinci, ou a Guernicade Picasso.
Ora, parece estranho que nesta realidade paralela obras como a Guernica ou a Gioconda existam e que não sejam apreciadas ou valorizadas como ‘arte’, como qualquer um de nós, intuitivamente acharia. Se intuitivamente achamos que o valor destas obras se mantém nesta realidade, então estamos a reconhecer que o estatuto de algo como arte é independente das avaliações dos indivíduos e tem um carácter mais objetivo. A teoria de Weitz falha em captar precisamente este carácter mais objetivo que, com este exemplo bastante intuitivo, podemos compreender que existe na arte.
IV – Considerações finais
A proposta de Weitz para o conceito de ‘arte’ perde-se nas consequências contraintuitivas que a sua teoria pressupõe. Parece bastante estranho, mesmo numa realidade paralela, como é que seria possível que obras transversalmente consideradas como ‘obras de arte’ possam perder essa designação. Quando nós observamos este tipo de obras, arrisco-me a dizer que não passa pela cabeça de ninguém, não as considerar como arte. Ainda que possam existir várias posições acerca daquilo que é a ‘arte’ e o que deve ser considerado ou não uma ‘obra de arte’ parece existir, senão uma unanimidade, pelo menos um consenso alargado no que a certas obras diz respeito, como a Gioconda ou a Guernica, no que toca a considerá-las como ‘obras de arte’.
Esse consenso extremamente alargado, proveniente de posições potencialmente díspares, parece indicar, em conjunto com as intuições que todos nós, provavelmente, teremos ao observar essas ‘obras de arte’ quase inquestionáveis, que existe uma certa objetividade na definição de arte ainda que possa ser algo de um carácter bastante geral e que talvez nós ainda nem tenhamos a capacidade de descobrir.
Se podemos considerar que existe, ou que pelo menos é o cenário mais provável, devido às nossas intuições mais básicas e ao consenso extremamente alargado, de que certas ‘obras de arte’ têm um valor independente de qualquer avaliação dos agentes, então a proposta de Weitz de que o conceito de ‘arte’ é impossível de definir com um conjunto de condições necessárias e suficientes, parece cair por terra. Se existir alguma objetividade, ainda que, esta possa ter um carácter bastante geral, então o conceito de arte é possível de definir.
Em suma, a proposta de Weitz parece ter consequências muito pouco intuitivas e ir contra um consenso extremamente alargado (e intuitivo) de que certas ‘obras de arte’ têm um valor por si só (objetivo) e não dependem das avaliações dos indivíduos (subjetivismo). Se procedermos à remoção desse carácter subjetivo da proposta de Weitz para o conceito de ‘arte’ parece que encontramos um problema, visto que, o mesmo é necessário para manter uma das suas teses principais: a de que o conceito de ‘arte’ é impossível de definir. Ora, se o conceito de ‘arte’, intuitivamente, não nos parece subjetivo, então, o mais provável, é que seja, de facto, objetivo, e que a teoria de Weitz, em relação ao conceito de ‘arte’, esteja errada.
[i] [i] Weitz, M. (1956) “O Papel da Teoria na Estética”, tradução portuguesa de Carmo D’ Orey in C. D’ Orey O que é a arte? p.69
[ii] Weitz, M. (1956) “O Papel da Teoria na Estética”, tradução portuguesa de Carmo D’ Orey in C. D’ Orey O que é a arte? p.63
[iii] Warburton, Nigel. “Semelhanças de Família”, tradução portuguesa de Célia Teixeira, in O que é a arte? 2007 p.81.
[iv] Weitz, M. (1956) “O Papel da Teoria na Estética”, tradução portuguesa de Carmo D’ Orey in C. D’ Orey O que é a arte? p.69
[v] Weitz, M. (1956) “O Papel da Teoria na Estética”, tradução portuguesa de Carmo D’ Orey in C. D’ Orey O que é a arte? p.69
[vi] Weitz, M. (1956) “O Papel da Teoria na Estética”, tradução portuguesa de Carmo D’ Orey in C. D’ Orey O que é a arte? p.69
V – Bibliografia
- Weitz, M. (1956) “O Papel da Teoria na Estética”, tradução portuguesa de Carmo D’ Orey in C. D’ Orey , O que é a arte?ed. 2007, Lisboa: Dinalivro, pp. 61-77. Link Wook.
- Warburton, Nigel. “Semelhanças de Família”, tradução portuguesa de Célia Teixeira, in O que é a arte? ed. 2007, Lisboa : Bizâncio. Link Wook.