Adaptação de Ana Cristina Carvalho (CiscNova, FCSH Nova de Lisboa) a partir de uma conversa com Urbano Tavares Rodrigues sobre Ferreira de Castro e a relação entre ambos, em Lisboa, a 6 de Maio de 2013, a propósito do doutoramento em Ecologia Humana da autora, que incidiu sobre os conteúdos ambientais na literatura de ficção castriana.
O Ferreira de Castro era um homem com um grande amor à paisagem. Com esse amor ensinou-me a ver Sintra, a conhecer a região. Encontrávamo-nos muitas vezes num cafezinho ali no largo do palácio da vila, não me lembro agora do nome. Mais no Verão e na Primavera, que ele receava o Inverno, agasalhava-se, protegia-se muito. Também nos juntávamos em Lisboa, mas em Sintra percorríamos os caminhos e fazíamos o roteiro das fontes. As fontes, do que me recordo, eram das coisas que mais o apaixonavam na serra. E visitámo-las todas. Também as árvores? Pode ser, o verde e as árvores certamente também o atraíam, não sei.
Ele teve outra enorme paixão, a Diana de Lis. Ah foi correspondida? Não me lembro…
Eu gostava muito dele, admirava-o imenso, quando morreu fartei-me de chorar. Montámos-lhe uma guarda-de-honra de escritores no funeral: eu, o Mário Ventura Henriques, a Natália Correia, o João de Melo e outros. Dos que privaram com ele estão vivos ainda a Agustina e o João de Melo, que foi meu assistente em Letras, como eu fui do Vitorino Nemésio.
O Ferreira de Castro e os amigos reuniam-se num café ali no Chiado – “Café Chiado”, creio que se chamava mesmo assim. Os amigos adoravam-no. Eram mais velhos, da geração anterior à nossa. Às vezes juntava-me eu, o Armindo Rodrigues, poeta, e o pessoal das Belas Artes, como o Manuel da Fonseca. Uma tarde, o Ferreira de Castro estava sentado cá fora, eu ia a passar. Eu era jovem, muito magro, as raparigas gostavam de mim e vieram umas deitar-me os braços ao pescoço. Ele era já homem maduro, sério, muito discreto, e diz para os amigos “Não percebo a sorte deste tipo com as mulheres! Eu compreendo a paixão da carne, não compreendo é a paixão dos ossos”. Tinha este humor, reservado apenas a um círculo muito próximo.
Naquela época, na verdade, eu parava mais noutra tertúlia, a do Abelaira. Uma vez estávamos ali sentados uns sete ou oito, o José Gomes Ferreira entre eles, tínhamos acabado de escrever um papel contra o governo e recolhíamos assinaturas. Vemos o Herberto Helder descer o Chiado, pedimos-lhe a dele. Mas ele, sendo funcionário da Emissora, se assinasse perdia logo o lugar, tinha família, via-se numa situação dramática. E nós compreendemos isso.
Houve um tempo em que acumulei o trabalho de redação do Diário de Lisboa e d’O Século, onde o Ferreira de Castro também foi redator. N’O Século, nas noites em que havia pouco serviço ou nas horas vazias de piquete, eu escrevia contos e romances. Parece-me que ele chegou a fazer o mesmo.
O Cunhal, que também tinha grande respeito e estima pelo Ferreira de Castro, ouviu um dia uma intervenção minha no círculo dos intelectuais do Partido Comunista e achou belíssima. Reclamou com a célula, que eu estava ali mal, que não sabiam aproveitar as pessoas, e convidou- me para ser um dos dirigentes do setor intelectual. E pronto, fiquei a ser. As reuniões do partido decorriam à noite e eram chatas; só animavam com o Manuel da Fonseca, contava anedotas,
toda a gente se ria. Agora querem que eu continue, eu continuo. Em Dezembro faço 90, posso não chegar lá. Mas estou completamente preparado para partir.
O Ferreira de Castro era a personificação da delicadeza, fosse entre amigos ou com qualquer admirador na rua. Uma vez fui pedir-lhe financiamento para um 1o de Maio, já não sei de que ano, e ele a desculpar-se: “Eh pá, sabes que eu sou completamente antifascista. Mas não sou comunista…”. Era um grande coração. E eu vim de lá com o dinheiro.
Alguns neorrealistas acusaram-no de escrever mal. Muito injustamente. A Lã e a Neve, por exemplo, é um livro belíssimo, aquele que mais se aproxima no neorrealismo. Pessoalmente, o meu preferido é A Curva da Estrada, decorrido em Espanha, com um protagonista político assaltado de dúvidas, muito bem retratado. É que com o neorrealismo o socialismo quis evacuar o escritor da obra. Mas o escritor está lá e faz falta.
A literatura do Ferreira de Castro foi considerada “impura” num período, que vai até hoje, em que se combate toda a obra de empenhamento social, e que deixou cair um pouco no esquecimento os neorrealistas. Continua esta moda de outros valores, da literatura de consumo fácil, que não presta, que é lixo. Ainda há bons escritores, isso sim, mas empenhados politicamente, poucos.
Eu combato o que se está a passar atualmente. Tanto quanto eu posso. Aqui em casa, sem poder sair à rua, escrevo e o que digo é absolutamente contra este governo, este período de ditadura do capitalismo ultraliberal, neofascista e sem vergonha, e os negócios sujos por trás disto. Já combatia quando tomei partido pelo Delgado, e em consequência despediram-me e silenciaram-me. Uma Pedrada no Charco escapou à apreensão graças ao Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências, 1958, prémio que o Ferreira de Castro tinha recebido duas décadas antes.
A ele pouparam-no, pelo prestígio internacional. Enquanto escritor, eu não sentia a autocensura que tanto o atormentava a ele. Ele era mais realista, nós escrevíamos tudo codificado, usávamos de muita imaginação para enganar a censura.
E eu tinha uma enorme coragem física. Da última vez que estive preso foi terrível. Cinco dias e cinco noites sem dormir, e quando finalmente me largaram só conseguia dormir uma hora por dia. O médico de Caxias garantiu-me que não era fascista, que admirava a minha obra, tratou-me por doutor, coisa a eu que não estava habituado na Pide, onde me insultavam com “cabrão” e tudo do pior, e deu-me um valium inútil. Eram dores constantes no corpo todo, enxaquecas, dores nos dedos. Geralmente os carcereiros são maus, mas o meu não era. Disse- me que sofrer assim tanto só tinha visto o Pulido Valente e perguntou-me se podia fazer alguma coisa por mim. “Pode. Está lá fora um saco com o meu nome. Lá dentro estão uns supositórios analgésicos. Se me trouxer um…”. Não eram autorizados a isso, claro, mas ele foi buscá-lo. Então dormi. Soltaram-me ao fim de meio ano, com receio do movimento pela minha libertação, criado em 1969, aqui e lá fora. Em França movimentou o Sartre e outros, em Portugal muitos, entre eles o Ferreira de Castro, que sempre assumiu posição a meu favor.
Dos poetas, ele conviveu com o Ruy Belo e o Herberto Helder, que me lembre. O Ruy Belo escreveu um poema, “Muriel”, belíssimo. O nome da mulher do Ferreira de Castro, Elena Muriel, mas não inspirado nela. Muito bonita. Como era também muito bonita a Maria Judite de Carvalho, minha mulher, mãe da minha filha Isabel. É ela nesta fotografia. Tinha uns olhos verdes e cabelo louro escuro, que aqui parece ainda mais escuro, porque ela o pintava. Morreu
estupidamente, com um cancro. E custou-me tanto, tanto, eu tinha um carinho tão grande, um amor tão grande por ela.
Não me lembro de pormenores sobre a relação do Ferreira de Castro com a natureza, com os rios, o campo ou os animais. Só me lembro das fontes. Foi há muitos anos e esse tópico não era importante. O importante era o combate político e as questões sociais. Mas lembro-me das nossas conversas, das memórias vivas que ele guardava de Belém-do-Pará e da vida de sofrimento que lá passou. Falava também muito do parente que não lhe deu apoio, desse abandono. Lembro-me de ele evocar, com muita ternura, o Amazonas e o seringal para onde emigrou rapazinho. Fiquei com grande curiosidade de conhecer os locais d’A Selva, que é um livro impressionante. E fui lá, percorri-os um a um. Fiquei impressionado.
O Ferreira de Castro era bom, bom como o pão. Tinha uma comunhão quase mística com a natureza, como eu também tenho. Não é bem uma comunhão mística: é quase mística.
ACC, 2013-2023