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A Passarola de Bartolomeu Gusmão: Ficção e Realidade 

Apesar do domínio do ar e o uso do espaço aéreo ser uma realidade relativamente recente, o sonho e a ambição de voar certamente não o são. Notamos desde a Pré-História uma universalidade do fascínio pelo ar e a ambição de teimosamente negar a banalidade de deslocações apenas com os pés assentes na terra. É uma ambição antiga, que se alarga a todas as culturas humanas, em todos os espaços e tempos. Este fascínio manifestou-se nos inúmeros mitos e lendas que descrevem humanos voadores e seres extraordinários com a capacidade de voar, tais como o mito de Ícarus, o do imperador Shun, o primeiro paraquedista, e o do lendário guerreiro voador Kibaga (1). Para além destes mitos, a ambição de voar manifestou-se igualmente nas tentativas práticas de a realizar, tendo vários indivíduos e instituições levado a cabo investigação e experimentação neste sentido.

Também nós, portugueses, humanos ambiciosos e sonhadores como o resto do mundo, partilhámos este antigo sonho de realizar o que a anatomia proíbe. Assim, na senda de tornar o voo humano uma realidade, identificamos, se bem que poucos, pelo menos importantes contributos portugueses: a viagem transatlântica de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, o primeiro uso de navegação astronómica no contexto da aviação (2) e as experiências aerostáticas do padre Bartolomeu de Gusmão. Neste breve texto, debruço-me sobre este último. 

Muitos conhecem a Passarola do padre Gusmão por intermédio da obra de José Saramago, Memorial do Convento, atualmente leitura obrigatória no 12º ano de escolaridade. Uma das narrativas desta obra foca-se, precisamente, na figura de Bartolomeu de Gusmão e na construção da sua máquina voadora, a Passarola. A obra de Saramago ajudou, sem dúvida, a difundir a ideia da Passarola, solidificando-a no imaginário cultural português. Contudo, e não obstante a qualidade nobel da narrativa, o facto desta ser a única exposição que muitas pessoas acabam por ter a este tema, faz com que a verdadeira Passarola fique ofuscada pela mistura de facto e ficção, que logicamente caracteriza a obra em questão. Outra razão disto é que o foco principal da comunidade académica está na análise literária e simbólica da Passarola na obra de Saramago, sendo pouca atenção dada à realidade histórica em que Saramago se baseou para a realização da sua obra, resultando assim a proliferação de certos mitos, imprecisões e anacronismos relativos ao aeróstato português. 

Assim, gostaria de dar a conhecer melhor o contexto histórico da Passarola, a figura que a conceptualizou, as experiências realizadas para a sua concretização e os impactos que este processo teve.    

A atividade do jesuíta Bartolomeu de Gusmão, que decorre nas duas primeiras décadas do século XVIII, faz parte de uma fase interessante da história da ciência. Estamos a poucas décadas do começo da Revolução Industrial, o método científico ainda não se fez conhecer por esse nome, mas várias das suas práticas já se encontram em vigor e pouco a pouco, o domínio das ciências alastra-se cada vez mais para além do clero. É, pois, um período de transição em várias dimensões, não somente tecnológica e epistemológica, mas também política e socioeconómica. Neste século XVIII, o progresso da conquista do ar encontra-se, igualmente, num momento de transição de um paradigma para outro. 

O fabrico e uso de objetos aerodinâmicos de pequena dimensão era já uma proeza alcançada: projéteis, papagaios de papel e foguetes rudimentares são prova disso. Faltava, somente, pôr o ser humano a voar, feito este que há milénios se mantinha elusivo. Contavam-se, até ao século XVIII, dois meios sucessos, os voos de Abbas ibn Firnas, inventor andaluz do século IX, e de Frei Eilmer, monge inglês do século XI, ambos envolvendo asas artificiais e alturas mortais. Tendo melhor sorte que outros entusiastas do tema, tanto os seus contemporâneos como antecessores e sucessores, estes dois homens conseguiram planar o suficiente para sobreviver à queda, mas não escaparam a ferimentos graves. Não foi esta a sorte do primeiro português voador, um certo João de Almeida Torto, viseense de muitos ofícios e talentos, que em julho de 1540 tentou planar da torre da Sé de Viseu até ao campo de S. Mateus, com consequências mortais (3). O grande obstáculo tecnológico era a insuficiência da força biomuscular para gerar elevação, algo que levará o matemático Giovanni Aphonso Borelli a concluir, nos finais do século XVII, ser impossível o voo humano, já que o peso inato de um indivíduo não permitia gerar força suficiente para se conseguir a ascensão no ar. Esta revelação resultou na bifurcação do desenvolvimento dos transportes aéreos nos modelos aerodinâmico (o avião) e aerostático (o balão), sendo este último o modelo dominante após a publicação dos estudos deste matemático italiano (4). 

O desenvolvimento das ideias aerostáticas deveu-se muito à sua relativa simplicidade e às inovações a que assistimos na Época Moderna na área da química. O próprio Leonardo da Vinci, apesar de não ter imaginado o balão, estudou as propriedades ascendentes do ar aquecido (5). Foi, no entanto, o jesuíta Francesco Lana de Terzi, professor de matemática da Universidade de Ferrara, o primeiro europeu a teorizar e a visualizar o balão, no ano de 1670. Mais precisamente, a sua ideia consistia num navio que levitava por meio de esferas ocas de cobre, que presumidamente ficariam suspensas graças à Lei de Arquimedes (Impulsão) (6), algo a que ele chamou nave volante. É a este o estado de arte que Bartolomeu Lourenço de Gusmão pretende contribuir, ambicionando pôr em prática o conceito de uma nave voadora. 

Mas, ao contrário dos seus antecessores, contemporâneos e mesmo sucessores, o padre secular Bartolomeu de Gusmão teve a vantagem de poder beneficiar do apoio de um monarca europeu. Bartolomeu Lourenço de Gusmão era natural do Brasil e o quarto filho de uma família de 12 irmãos. Nestas circunstâncias poucos haviam que chegassem à corte portuguesa, no entanto Gusmão conseguiu-o. Para além de sorte óbvia, o seu talento técnico e científico atraiu atenções, entre as quais a de D. Rodrigues Anes de Sá Almeida e Menezes, 3º Marquês de Fontes, e importante membro da corte régia. A partir destes elos clientelistas, aspecto normativo da estrutura sociopolítica do século XVIII, o padre Bartolomeu viu-se, em 1708, como capelão do rei D. João V, o Magnânimo. 

Contudo, esta mesma ligação à corte régia trouxe-lhe certas atenções, expectativas e responsabilidades. Tais ligações fizeram com que a proposta de construção de uma máquina voadora, feita a D. João V pelo padre inventor, se noticie nas cortes de toda a Europa, impulsionando Bartolomeu de Gusmão a ídolo internacional e sendo apelidado de “Voador” (7). Recordemos que decorriam os inícios do século XVIII, o auge do absolutismo régio e em plena Guerra de Sucessão Espanhola. Existiam, por isso, tensões militares e diplomáticas palpáveis, onde os monarcas tudo faziam para criar e manter a sua imagem e uma reputação de soberano sábio e poderoso. Como consequência, ao associar-se à corte, o fracasso ou sucesso da invenção de Bartolomeu de Gusmão teria resultados negativos ou positivos na reputação e imagem de D. João V.  A drawing of a bird with a bird and a person standing on it

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Esta ilustração, usada amiúde nos jornais que falavam do invento, é na verdade uma obra genial de ludíbrio e propaganda, já que a Passarola nunca existiu de facto. De acordo com Rodrigo Moura Visoni, um estudioso na matéria, a imagem seria de autoria de D. Joaquim Francisco de Sá Almeida e Meneses, filho do 3º Marquês de Fontes e aluno particular do padre Bartolomeu, o qual tinha acesso à oficina onde as experiências do seu mestre eram realizadas. Por esse motivo, e passo a citar, “o rapaz (…) assediado por curiosos, que constantemente lhe faziam indagações acerca da invenção, resolveu ele, para parar de ser importunado, elaborar o exótico desenho da Passarola, em que tudo era propositadamente falseado”(8). O desenho era inspirado nas ideias de Francesco Lana de Terzi, daí a existência das duas esferas de cobre. No entanto, estas não levitariam devido à Lei de Arquimedes mas sim ao magnetismo, fenómeno pouco conhecido na época e por isso mesmo com a particularidade de tudo explicar. O plano, que foi bem sucedido, consistiu em divulgar esta ilustração disfarçada de fuga de informação, fazendo-a passar como protótipo verossímil, de modo a ludibriar possíveis imitadores. 

Também, numa época e espaço de constante competitividade entre potências como era a Europa do séc. XVIII, a procura de vantagens entre as diversas potências era uma constante. Vemos bem esta atitude, por exemplo, no modo como o jornal londrino Daily Universal Register (que mais tarde passaria a chamar-se The Times), divulgou a Passarola, especulando sobre os seus usos: “carry Orders to Generals in remote Countries, as also Letters, Recruits, Provisions, Ammunitions and Money; supply besieg’d Places with all Necessities, and transport Merchandise through the Air.” (9). Vemos bem o ênfase nas aplicações militares, uma das preocupações primárias das elites da época. O projeto em si não era de natureza militar, mas o seu potencial bélico não podia ser ignorado. Vista neste contexto, a fuga de informação foi, efetivamente, uma ação de propaganda, provavelmente não intencional, que teve o efeito de projetar uma imagem de Portugal no limiar de um grande avanço tecnológico e do poder que assim viria a adquirir. Esta interpretação surge-nos nos aspectos mais óbvios, como na bandeira bem visível ou na forma da máquina inspirada na fauna ornitológica brasileira, alusão à extensão do Império Português. Vemo-la também nas esferas de cobre, em forma de esferas armilares, que fazem ascender a máquina graças à misteriosa força do magnetismo. O simbolismo é evidente: a utilização do magnetismo para fazer voar a Passarola pressupõe o seu conhecimento profundo por parte dos portugueses, que o aplicam sem hesitações. As esferas armilares mostram bem como todos os caminhos do mundo eram “nossos”, bem portugueses e controlados pelo saber português.  

Como era então a verdadeira Passarola? Na realidade, não era de todo uma Passarola, ou seja, um veículo voador. Eram, sim, balões de ar quente de pequenas dimensões, novidades genuínas para a Europa do século XVIII. Realizaram-se ao todo seis experiências ao longo da segunda metade do ano de 1709, todas na presença de D. João V, da sua corte, e de vários diplomatas, alguns deles que viajaram expressamente para assistir a estes eventos. As primeiras três tentativas fracassaram, já que o papel de que eram constituídos os balões pegou fogo das três vezes, se bem que em alturas diferentes da experiência: na primeira, logo de início antes de descolar; na segunda, durante o voo e ao dirigir-se para os cortinados, o balão foi derrubado por dois servos com paus; e na terceira, ao pousar. Na quarta experiência, realizada provavelmente no Terreiro do Paço, o balão funcionou perfeitamente, não se tendo queimado durante todo o processo de descolagem, voo e aterragem. O voo seguinte foi realizado no interior, mais precisamente na Sala das Audiências do Palácio de Belém, sem o receio de pegar fogo às cortinas, como se temia nas primeiras tentativas. Passados alguns meses, fez-se uma nova experiência, desta vez com um modelo maior, que também foi um sucesso. Esta foi a última experiência que temos a certeza de ter acontecido. Desconhecemos as dimensões exatas, mas podemos afirmar com toda a certeza que o aeróstato não suportaria o peso de uma pessoa. 

A diferença exacerbada entre as expetativas e a realidade garantiram que não se desenvolvesse muito interesse para lá da excitação inicial, por parte quer das elites portuguesas quer das elites estrangeiras. As experiências de Bartolomeu de Gusmão provaram que o aeróstato, mesmo se fosse construído com dimensões adequadas para o transporte de pessoas e mercadorias, seria um veículo potencialmente perigoso e difícil de controlar. Também o facto de ter fracassado três vezes seguidas em frente da corte e de vários diplomatas, fez com que o projeto fosse abandonado, deixando de ter patrocínio régio. Por outras palavras, podemos dizer que foi uma “moda” de curta duração, um pouco como acontece hoje em dia. O padre foi acusado de ser um aldrabão e de tirar proveito da generosidade e da hospitalidade do rei. Bartolomeu acabou por deixar a corte, conseguindo, no entanto, manter elos importantes com diversos membros desta. Na década de 1710 viajou pela Europa e dedicou-se a diversos outros projetos e inventos. Ideias não lhe faltavam: carvão artificial, bombas para retirar água de navios em risco de naufragar, lentes refratoras para cozinhar… O aeróstato ocupou-lhe apenas um ano da sua vida e era uma ideia de entre as muitas a que se dedicou. Em 1720, é chamado de novo à corte portuguesa por D. João V para servir como criptógrafo, cargo de grande importância e confiança, o que mostra bem que, apesar do episódio do aeróstato, o padre Gusmão continuava a gozar de boa reputação junto da corte e do monarca. 

Embora o projeto do padre brasileiro tenha ficado muito aquém do esperado, tanto os balões como a ideia da Passarola foram um sucesso a longo prazo. Mesmo com os seus fracassos, o padre Bartolomeu estava correto em apostar no princípio do balão de ar quente. 74 anos mais tarde, os irmãos franceses Joseph e Jacques Montgolfier completaram a experiência do aeróstato de Bartolomeu de Gusmão, tornando-se os primeiros homens a realmente ascender do solo. Se os Montgolfier foram os cultivadores da arte da Aerostação, Bartolomeu de Gusmão foi quem descobriu e plantou as sementes. A Passarola como ideia acabou por ter mais sucesso do que as próprias experiências com os balões, já que permaneceu na memória cultural e coletiva do mundo português, aí se mantendo até aos nossos dias, como testemunha bem, por exemplo, a obra literária de Saramago.

  1. Richard Hallion, Taking Flight : Inventing the Aerial Age from Antiquity through the First World War (New York : Oxford University Press, 2003), 5, http://archive.org/details/takingflightinve0000hall

  2. Luís M. Alves de Fraga. Súmula Histórica das Aviações Militares e da Força Aérea de Portugal. 17-18. 
  3. José Duarte André. Precursores da Aviação em Portugal – Parte I
  4. Richard Hallion, Taking Flight : Inventing the Aerial Age from Antiquity through the First World War (New York : Oxford University Press, 2003), 34, http://archive.org/details/takingflightinve0000hall 
  5. Rodrigo Moura Visoni, João Batista Garcia. Bartolomeu Lourenço de Gusmão: o primeiro cientista brasileiro. Revista Brasileira de Ensino de Física, vol 31. 2009.
  6. Rodrigo Moura Visoni, João Batista Garcia. Bartolomeu Lourenço de Gusmão: o primeiro cientista brasileiro. 2009.
  7. Rodrigo Moura Visoni, João Batista Garcia. 2009.
  8. Rodrigo Moura Visoni, João Batista Garcia. 2009.
  9. Richard Hallion, Taking Flight : Inventing the Aerial Age from Antiquity through the First World War (New York : Oxford University Press, 2003), 33, http://archive.org/details/takingflightinve0000hall