A Peste de Albert Camus: Reflexões

“O livro é um mudo que fala,
um surdo que responde,
um cego que guia,
um morto que vive”
(Padre António Vieira)

Ao receber o Prémio Nobel da Literatura no dia 10 de dezembro de 1957, em Estocolmo, Camus profere um discurso no qual expressa várias ideias em relação ao que representam, para si, a escrita e o papel de escritor. Nesse discurso, o autor começa por afirmar que não lhe é possível viver sem escrever, o que indicia desde logo uma forte inseparabilidade entre a vida e a escrita, como se uma e outra estivessem permanentemente entrelaçadas. Camus precisa de escrever, mas sobre o quê? Que temáticas escolher? O autor parece querer ir além dos meros problemas intelectuais ou das abstrações, o mesmo é dizer que os problemas filosóficos per se não parecem ser a sua preocupação principal, antes desejando conectar-se e estabelecer relações concretas com os homens com quem partilha a época em que vive. De facto, como nos deixa nos seus Essais, o homem parece estar no centro das suas preocupações: “J’ai choisi la justice (…) pour rester fidèle à la terre. Je continue à croire que ce monde n’a pas de sens supérieur. Mais je sais que quelque chose en lui a du sens, et c’est l’homme, parce qu’il est le seul être à exiger d’en avoir.”[i] Camus parece, assim, ser íntimo do mundo em que vive e dos homens que fazem, a cada dia, existir esse mundo que é o seu.

O ato de escrever é exigente e obriga. O escritor não se pode diferenciar dos deveres difíceis[ii] – o silêncio de um prisioneiro desconhecido é suficiente para retirar o escritor do seu exílio e levá-lo a não esquecer esse silêncio, retratando-o, expandindo-o, alimentando-o, através da sua escrita; nem da comunidade, em que se banha e se inspira em permanência – a escrita não pode representar uma alegria solitária, algo que se faz para prazer próprio, mas deve antes representar um meio de comover o maior número possível de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e das alegrias comuns. Neste sentido, a arte obriga o artista a não se separar, submetendo-o à mais humilde e à mais universal das verdades. O escritor não é, pois, o que vive preso na sua torre de marfim, afastado do resto do mundo por um abismo intransponível, mas antes o que, andando entre as gentes como uma parte integrante destas, observa o espaço do seu viver e do seu sentir, deles retirando algo e lhes dando, por sua vez, algo também. Não estar deslocado, estar presente, não fugir, encarar a situação que está à sua frente, por mais horrível que esta possa ser, parece ser então a tarefa do escritor para Camus que, deste modo, é aquele que vê, centrado no espírito do seu tempo, com os dois pés no chão, contemplando, se necessário for, o próprio rosto do horror e da morte, sob a acutilante obrigação de não desviar o olhar da mais absoluta das verdades, mantendo-se sempre fiel ao seu serviço errante e palpitante de observador e resgatador daquilo que ao seu redor se apresenta, e empenhando-se na sua jornada literária, que é, ainda e sempre, a sua jornada de homem livre e atento – livre para ser atento e atento para poder ser verdadeiramente livre -, constante procura daquilo que o cerca e envolve, o seu tempo partilhado com os outros.

Tal como Camus, eu me desafiei, ao escrever esta breve reflexão, a observar o tempo em que me coube viver. Não saí à rua, não fui para o meio das gentes, para a praia nem para um estádio de futebol, para um festival de música ou um cinema. Sair à rua livremente – sem máscara, sem desinfetante, sem medo – como eu gosto, ainda não é uma opção viável. Fiquei reclusa no meu próprio quarto, esse pitoresco canto do mundo, a olhar para a rua. E mais uma vez reli A Peste de Camus, esse simultâneo sonoro testemunho de passado e previsão de futuro[iii], objeto da breve reflexão que aqui vos deixo.

*

A temática trabalhada n’A Peste de Camus, contida logo no próprio título, vem enquadrar-se numa tradição literária bem determinada que existe desde a Antiguidade Clássica. Com efeito, o tema da peste tem vindo a ser sobejamente abordado na literatura, em várias tradições culturais e linguísticas. Só nas épocas moderna e contemporânea podemos encontrar as obras A Journal of the Plague Year (1722) – obra de onde, aliás, é retirada a epígrafe para A Peste de Camus – e Due Preparations for the Plague as well for soul and body (1722) de Daniel Dafoe, The Last Man (1826), da romântica Mary Shelley, I Promessi Sposi (1827) de Alessandro Manzoni, The Scarlet Plague (1912) de Jack London, Narcissus und Goldmund (1930) de Hermann Hesse, O Ensaio sobre a Cegueira (1995) de José Saramago[iv] e The Pesthouse (2008) de Jim Crace[v].

A temática da peste tem também dado azo a inúmeras representações pictóricas, como, por exemplo, Plaga Hospital de Francisco Goya (1798-1800, Coleção Privada), The Plague de Arnold Böcklin (1898, Kunstmuseum Basel) e Pesta I Trappen de Theodor Severin Kittelson (1900), entre inúmeras outras.

Abaixo, podemos ver “Plaga Hospital” de Francisco Goya:

Tal como nas fortes imagens pintadas por Camus ao longo da sua obra, o quadro de Goya acerca a realidade dura e negra de todos aqueles afetados pela peste.

A janela permite antever raios de sol que, todavia, não têm força suficiente para penetrar todo o espaço, desfigurando-se e desfazendo-se a meio da cena, mantendo-se somente o suficiente para iluminar “os caídos”.

Os feridos, deitados ou semierguidos, ocupam o chão, palco dos caídos na guerra, dos caídos da fome, da pobreza, da opressão ou da miséria, daqueles que caíram e já não têm força ou possibilidade para se levantar.

O forte contraste entre a rua, luminosa e clara (espaço do sol, do dia e da vida), chama ainda mais a atenção para aqueles que não conseguiram sobre-viver (sur-vivre) à própria condição efémera de mortais.

*

No capítulo de abertura de A Peste de Camus são-nos dados indícios quanto à narração da história. Para escrever a história constante n’A Peste, o narrador, ainda desconhecido – só mesmo na parte final da obra é que ficamos a saber que o narrador é o Doutor Bernard Rieux, simultaneamente a personagem principal da história – faz uso não só do seu testemunho, mas também dos de outras personagens; tendo recolhido as confidências de todas as personagens envolvidas para a escrita daquilo que apelida de ‘crónica’[vi], e, em último lugar, os textos que acabaram por ir parar às suas mãos, avisa que os mesmos poderão ser ou não usados, quando e como achar mais apropriado.

Rieux acaba por tomar nas suas mãos dois importantes trabalhos, cada um respeitante a um papel – o de médico e o de escritor -, em que se desdobra. Em primeiro lugar, no papel de médico, Rieux dá-se a tarefa de remediar, na medida da sua capacidade, os acontecimentos relativos à peste, através da preparação de medidas de resistência à doença e da ajuda efetiva ao outro. Rieux sente-se e torna-se responsável perante o outro e o seu destino, despido de qualquer outro objetivo que não o de ajudar, e nada recebendo em retorno se não a possível salvação do doente[vii]. É ele que, aquando da infestação dos ratos, telefona ao serviço comunal de desratização, aconselhando-os a atuar. É ele quem, mais tarde, contacta outros médicos para saber se existem sintomas em comum entre os pacientes da cidade. Mesmo quando se discute que tipo de doença estaria a provocar tantas mortes, e a palavra ‘peste’ é recebida com ceticismo e acérrima discussão, não é, para Rieux, tão importante saber do que se trata, mas antes de como se trata, importando impedir que a doença se espalhe e evitar mortes desnecessárias.

Conhecedor e mestre de si mesmo (mestre, aqui, no sentido em que possui autodomínio e autocontrolo), livre e independente a partir de dentro – o que talvez tenha contribuído para nunca desistir perante as dificuldades apresentadas pela peste – coloca-se do lado das vítimas, silenciadas pela mão amarga da doença, e, contribuindo de forma ativa, sacrifica-se para algo de bem que o transcende – a comunidade. Parece haver, por parte de Rieux, uma consciência aguda de pertencer a Oran. Consciente de si e do seu lugar, Rieux está, também, consciente dos outros que constituem a comunidade que o envolve, e a estes está preso, como que por um fio invisível de ternura.

Oferecendo-se como profissional e como homem, ou, melhor dizendo, como profissional humano, ao presente, para que o maior número possível de pessoas possam ter um futuro, Rieux dedica o seu tempo ao serviço do outro, muitas vezes esquecendo-se de descansar e de cuidar de si, quase como se o indivíduo desaparecesse, e ficasse só o médico, ajudando a curar e a salvar outros[viii].

Em segundo lugar, Rieux toma nas suas mãos a tarefa de refletir e narrar aquilo que em Oran sucedeu, aquilo que ali foi levado a testemunhar[ix]. De facto, para além do trabalho hercúleo que (se) dá de tratar os doentes e tentar travar a propagação da peste, no fim das privações e dores provocadas por esta, quando a cidade reganha a paz e a alegria de outrora, Rieux ainda toma entre mãos a escrita da crónica da peste.

Rieux é capaz de fazer uso tanto da linguagem comunicacional e utilitária do dia a dia, espontânea e rápida, que se desvanece mal é dita, no tratamento com os outros, como de uma linguagem literária, a da reflexão e rememoração dos pensamentos e ideias, ponderada e lenta, com um pendor mais demorado. Em ambos os casos, o médico parece exigir-se ser, na relação com os outros, através da linguagem, sendo esta, em simultâneo o seu escudo e a sua guia. Apesar de ter contatado com a peste diretamente e todos os dias, nunca é por esta infetado, talvez porque, tal como nos diz Saramago em relação à mulher do médico de Ensaio sobre a Cegueira[x], seja necessário para dar olhos e ouvidos ao horror da peste, mantendo-se fiel a essa obrigação até à última página, levado pelas circunstâncias, mas não por estas perdido, a questionar, a lembrar e a narrar.

A importância de olhar – olhar para o outro e através ou para além do outro é, aliás, de sobeja relevância. A forma esmagadora e pungente da peste coloca o indivíduo perante a aporia da escolha – Devo olhar de frente o horror? Serei capaz de dele não desviar o olhar? Movendo-se agilmente por entre os escombros de uma cidade desolada, Rieux nunca hesita. Perante a questão – O que faço com o que adveio, com o que aconteceu? – Rieux atua, em dois momentos, primeiro pela sua tarefa de médico e, mais tarde, pela não menos árdua tarefa de escritor. Rieux podia ter cruzado os braços, ficado fechado em casa com medo, ter tentado sair de Oran para ir ter com a mulher, que estava moribunda num sanatório, ou para qualquer lugar seguro, (i.e., não afetado pela peste), mas parece esquecer-se ou pelo menos colocar tudo isso de parte para servir o outro. De resto, desde o início recebemos indícios quanto ao caráter do médico. Releia-se, a título de exemplo, o diálogo com o jornalista Raymond Rambert, quando este tinha acabado de chegar à cidade. Nessa cena, mais ou menos a meio do segundo capítulo, Rieux afirma: “Je n’admets que les témoignages sans reserves. (…)”, estando decidido “(…) à refuser (…) l’injustice et les concessions.” (p. 19). Um pouco mais tarde, depois daquilo que constitui, provavelmente, a cena mais pungente e dolorosa da obra, a da morte do filho primogénito do juiz Othon, Rieux diz ao padre Paneleux, “(…) je refuserai jusqu’à la mort d’aimer cette création où des enfants sont torturés” (cf. pp. 197-199).

A crónica de Rieux não constitui um relato unilateral, antes contém várias perspetivas. Como este afirma logo na abertura da obra, o seu trabalho é o de historiador e não o de ficcionista. Por conseguinte, aquilo que resulta do seu trabalho é uma escrita de e para a comunidade. Não se trata de um indivíduo expondo uma só visão – a sua – sobre os outros e as coisas, mas a reunião e posterior apresentação de diversas visões. Tal como Maria Gabriela Llansol tão bem resumiu: “É-me impossível dizer eu. Nós, talvez. Mas dizer todos, «com esta que escreve incluída», é melhor. A, aquela, esta, a.”[xi]

Todo o trabalho de preparação – que ocorreu já, na sua grande parte, aquando da sua atuação como médico que vê e sente o sofrimento alheio[xii], estando atento ao outro e ao que este tem para lhe dizer – implica que essa escrita, seja, também, escrita com e para o outro, aberta às gerações futuras em dádiva de olhar e pensar feita palavras doravante inscritas nas tábuas de todos os homens. Colocando a sua pena em ação, Rieux dá ao mundo.

O que é que se oferece, o que se dá ao outro, quando se escreve? Em que medida é a escrita de um livro um ato de dádiva? O conceito de ‘dádiva’, quando trabalhado no campo dos Estudos Literários, faz ressoar, de imediato, ecos derridianos. Com efeito, Derrida foi um dos mais importantes autores a dedicar-se à temática do dom[xiii]. Para este (cf. Derrida, 1992: 45),

         Un don est (…) un acte volontaire, individuel ou collectif, qui peut ou non avoir été sollicité par celui, celles ou ceux qui le reçoivent. (…) Ce qui est donné – (…) ce n’est pas quelque chose, mais la bonté même, la bonté donatrice, le donner ou la donation du don. Bonté qui non seulement doit s’oublier elle-même mais dont la source reste inaccessible au donataire. (…)”

Assim sendo, para Derrida, o que é dado não é um objeto, algo concreto, palpável, que possa ser facilmente identificado ou definido, mas a própria bondade – a bondade que dá, o dar ou a doação do dom – o gesto invisível sem traço de origem nem de fim que, todavia, está lá, continua lá, furando as paredes do espaço e do tempo. Mais importante do que é dado, do que resultou do ato de dar, é o próprio gesto de dar, a iniciativa de (se) oferecer ao outro. Ou, como tão bem sintetiza a poeta Ana Hatherly (in O Pavão Negro), A verdadeira mão que o poeta estende não tem dedos: é um gesto que se perde no próprio acto de dar-se, referindo-se a esse dom supremo da literatura, que, sem se dar se dá, e sem verdadeiramente se ver se vê.

Como analisa Elisabete Marques (cf. Marques, 2013: 259, destacado meu):

         A problemática do dom, no pensamento derridiano, não é separável da escrita, do traço ou do texto: um traço, uma letra, uma língua, um corpus, uma obra, são-nos dados, sem que nada de identificável (nem sujeito, nem intenção) reste da sua origem ou do seu ponto de partida. A instância doadora está morta, mas o dom continua a produzir efeitos e desencadeará reacções sem termo nem previsão. Toda e qualquer obra conta uma história do dom, na medida em que se dissemina sem retorno, sem outro saldo senão uma superabundância infinita, para lá de todo o valor.

O dom não tem origem identificável nem valor – não se pode dizer de onde vem, quem doou o dom. Todavia, este pode continuar a doar e a ter efeitos absolutamente imprevisíveis pela e na sua doação. Ao escolher escrever a crónica da peste, Rieux não convida o protagonismo nem se faz mais importante do que os demais. Tal como na sua atuação enquanto médico, a motivação da sua ação é a própria ação. Contudo, descrevendo os homens naquilo que têm de mais frágil – a sua existência periclitante – e aquilo que mais temem – a inexplicável morte que tudo ordena e todos ceifa -, Rieux não só tornou a dor e a privação extremas imagináveis, como ofereceu ao futuro o relato comentado daqueles dias, onde se enfrenta aquilo que de outro modo cairia no esquecimento e não teria espaço.

*

Há uma série de paralelismos que podemos estabelecer entre o mundo ficcional apresentado por Camus da Oran de 1940 e o mundo real dos homens de finais de 2019 e inícios de 2020.

Tal como na Oran de Camus no início ninguém ligou muito ao aparecimento dos ratos, por serem poucos, e só quando estes começaram a aumentar é que as pessoas se preocuparam verdadeiramente com os mesmos, assim também na Lisboa (e na Madrid, e na Paris, e na Berlim…) real de finais de 2019 e inícios de 2020 permanecemos impávidos, observando o vírus espalhando-se pelo mundo. Só quando este bateu à nossa porta é que nos começámos a preocupar. Como se viu, este não foi o melhor procedimento. Daqui podemos retirar valiosos ensinamentos em relação às alterações climáticas, verdadeiras causadoras do coronavírus. Não podemos ficar parados enquanto observamos a morte das espécies e só atuarmos quando restarmos nós e as baratas. Temos de começar a atuar hoje para podermos salvaguardar o nosso futuro.

No início, os habitantes de Oran não acreditaram que a situação iria durar. As pessoas pensavam que tudo aquilo seria passageiro e, mesmo que não fosse, não as poderia afetar a elas. Todavia, a situação acabou por se complicar tanto que foi decretado o fecho da cidade e todos, sem exceção, foram afetados. O mesmo ocorreu com a vinda do coronavírus. Separados os países uns dos outros, afastadas as gentes das outras gentes, experienciou-se um sentimento angustiante e asfixiante de fecho e de exílio e perdeu-se o sentido do futuro. Tornámo-nos, aos poucos, tal como os habitantes de Oran, prisioneiros da peste. Afastados, em muitos casos, das mães, dos pais, dos filhos, dos namorados e dos amigos, os telegramas tornaram-se o último reduto dos habitantes da cidade argeliana. No nosso caso, dependemos da internet, que se afirmou ainda mais nas nossas vidas[xiv]. Tal como tão bem retratado n’A Peste de Camus, assim também em Lisboa a reclusão alterou as relações humanas e trouxe ao de cima sentimentos até aí silenciados, adensando-se os conflitos[xv]. As pessoas deixaram de poder escolher onde ir, o que fazer, como viver, e o sentimento de impotência multiplicou-se.

A peste de Camus começou e acabou com os ratos e iniciou-se e finalizou-se de maneira abrupta. Pelo contrário, a nossa peste moderna ainda não acabou e ninguém pode saber como será o seu desfecho, nem que estragos humanos, culturais, sociais e económicos causará nas nossas sociedades a médio e longo prazo.

A obra de Camus traz à tona reflexões relevantes com as quais nos deparamos ainda hoje. Por um lado, a existência ou não existência do livre arbítrio – será que ainda podemos ser livres, agora que somos definidos por esta peste moderna? Por outro lado, o absurdo do coronavírus, que mata toda e qualquer pessoa, não pode ser resolvido nem explicado pelo intelecto, e é difícil de conciliar com qualquer teoria moral. Para além disto, é pertinente destacar ainda a questão da solidariedade e da comunidade. As crises sanitárias fazem-nos pensar:

– Qual o papel do indivíduo no seio da comunidade? Em que é que cada um de nós pode contribuir para ajudar o outro? Veja-se como, em plena crise do COVID-19, cada um de nós pode escolher ser um cidadão responsável e respeitador das ordens impostas, ou um cidadão irresponsável, que serve para aumentar ainda mais o caos e a dor[xvi].

Ao mesmo tempo, A Peste de Camus ensina-nos a não desistir, a perseverar mesmo quando é duro, e também a adaptar-nos à mudança e aos acontecimentos menos felizes do mundo.

Obra em permanente hodiernidade e proximidade, aquilo que torna A Peste tão interessante é que esta pode ser lida a inúmeros níveis. Por um lado, pode ser lida como uma história acerca dos efeitos (sociais, religiosos, científicos, entre outros) da peste numa cidade. Por outro lado, é possível lê-la estabelecendo analogias várias com regimes políticos e acontecimentos históricos. Como expressa o filósofo Michel Onfray (2012: 316-317):

         Ce roman de Camus est, au moins, à double sens: la peste réelle, autrement dit l’épidémie bien connue, bien sûr, mais également la peste symbolique que l’auteur ne définit pas avec précision afin de laisser la porte ouverte aux sens. Le fascisme? Le totalitarisme? La dictature? Le franquisme? Le national- socialisme? Oui. Le régime de Vichy, le maréchalisme, l’État français, la Révolution nationale? Oui, aussi. Mais tout aussi bien le marxisme-léninisme, le soviétisme, la révolution qui veut le sang, le régime qui s’appuie sur la guillotine et justifie la mort d’un homme et fonde la politique de la terreur. (…)

Com efeito, no final (p. 279, destacado meu) de A Peste de Camus vem um alerta:

         Écoutant, en effet, les cris d’allégresse qui montaient de la ville, Rieux se souvenait que cette allégresse était toujours menacée. Car il savait ce que cette foule en joie ignorait, et qu’on peut lire dans les livres, que le bacille de la peste ne meurt ni ne disparaît jamais, qu’il peut rester pendant des dizaines d’années endormi dans les meubles et le linge, qu’il attend patiemment dans les chambres, (…) et que, peut-être, le jour viendrait où, pour le malheur et l’enseignement des hommes, la peste réveillerait ses rats et les enverrait mourir dans une cité heureuse.

A semente da peste não morre nem desaparece nunca…

Tal como sucedeu em Oran, em 1940, hoje, cidades de todo o mundo, até aqui adormecidas no ritmo frenético do dia a dia, foram subitamente acordadas pelo terror de mais uma peste por elas próprias semeada. A peste de hoje não é, todavia, somente a COVID-19. Mais do que a Covid-19, a peste de hoje é a suprema irresponsabilidade e cegueira das pessoas, que escolhem ignorar o grande drama do século XXI – a morte do planeta terra – e continuam a viver como se este não estivesse a ser permanentemente golpeado. Por isso, o grande ensinamento que devemos retirar desta crise é:

Não podemos continuar a utilizar a natureza como um local de onde entramos e saímos sempre que quisermos, como se dela não fizéssemos parte. Não podemos retirar, retirar, retirar e voltar a retirar da natureza o bom que ela oferece, dando-lhe lixo em troca. Quando lhe retiramos algo, é do nosso próprio corpo que tiramos sangue, são os nossos próprios membros que desmembramos e trituramos. Temos de ser mais como Camus e Rieux, mais inquisitivos, e afastar-nos dos comportamentos das gentes da cidade de Oran, que parecem não se questionar muito, nem procurar saber por que fazem o que fazem e por que ou como vivem.

Rieux e Camus devem ser exemplos para nós, na medida em que não se contentam com o que sucede, mas agem com vista a saber o que está a acontecer e porquê, e tentam fazer algo para alterar uma situação que sentem não lhes convir a si nem à sociedade. Cada dia, um elevado número de espécies se extingue devido às más ações da espécie Homo Sapiens. Podemos mesmo ficar de braços cruzados assistindo impávidos e serenos ao dia em que nós mesmos nos autoextinguiremos? O dia em que pelas nossas ações nocivas ou pelas nossas inações ainda mais nocivas, assistiremos ao nosso próprio extermínio, aí, sim, finalmente nos apercebendo do mal que temos vindo a cometer? Sim, porque isso é o que vai acontecer se continuarmos neste ritmo desenfreado de produção, consumo e desperdício. Isso é o que sucederá se todos, conjuntamente, não alterarmos os nossos comportamentos. Hoje é a COVID-19. E amanhã?

Temos todos de aprender a viver com qualidade dentro dos limites do planeta, que devem ser também os nossos, e a reeducar os nossos maus hábitos. Temos de aprender a sossegar, a abrandar, a refletir, se queremos poder continuar a acordar amanhã como espécie neste planeta maravilhoso, que tem vindo, ao longo dos tempos, e cada vez a um ritmo mais acelerado, a ser usado, manipulado, violado e envenenado – suprema vítima dos nossos gestos assassinos.

[i] Camus, Albert. “Lettres à un ami allemand” in Essais. Paris: Gallimard, 1965, p. 241, destacado meu

[ii] No original, « L’art n’est pas à mes yeux une réjouissance solitaire. Il est un moyen d’émouvoir le plus grand nombre d’hommes en leur offrant une image privilégiée des soufrances et des joies communes. Il oblige donc l’artiste à ne pas se séparer ; il le soumet à la vérité la plus humble et la plus universelle. (…) Le rôle de l’écrivain, du même coup, ne se sépare pas de devoirs dificiles. Par définition, il ne peut se mettre aujourd’hui au service de ceux qui font l’histoire : il est au service de ceux qui la subissent. (…) Mais dans toutes les circonstances de sa vie, obscur ou provisoirement célèbre, jeté dans les fers de la tyrannie ou libre pour un temps de s’exprimer, l’écrivain peut retrouver le sentiment d’une communauté vivante qui le justifera, à la seule condition qu’il accepte, autant qu’il peut, les deux charges qui font la grandeur de son métier : le service de la vérité et celui de la liberté. » (cf. Camus, 1957. Discurso do Nobel: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1957/camus/25232-albert-camus-banquet-speech- 1957/)

[iii] Tal como na citação inicial do Padre António Vieira, eis que o livro nos fala, nos responde e nos guia como entidade viva que é.

[iv] Apesar de não ser trabalhada, n’o Ensaio sobre a Cegueira, a ‘peste’ propriamente dita, optei por referir este livro, seguindo o estudo de alguns teóricos, com os quais partilho a opinião de que a cegueira é uma outra forma de peste. Ver, a este propósito, p.e. Vidrutiu, Cristina Simona. The Epidemic Imaginary. Historical and metaphorical representations of plague in literature. Tese de doutoramento, Roménia: Universitatea Babeș-Bolyai, 2011.

[v] Ao longo dos anos, diversos estudos têm vindo a lume acerca do tema ‘a peste’, sob diversos prismas, o que denota desde já a importância e o elevado interesse que este tema tem despertado. Vejam-se, a propósito, alguns dos estudos produzidos:
– Cokke, Jennifer. Legacies of Plague in Literature, Theory and Film. NY: Palgrave Macmillan, 2009.
– Fabre, Gérard. Épidémies et contagions. L’imaginaire du mal. Paris: Presses Universitaires de France, University Press, 1992.
– Totaro, Rebecca. Suffering in paradise: the bubonic plague in English literature from More to Milton. Pittsburgh: Duquesne University Press, 2005.

[vi] Originalmente, ‘crónica’ (do grego khroniká, ‘crónica’, neutro plural de kronikón, ‘relativo ao tempo’, pelo latim neutro plural chronĭca, ‘crónica’; ‘narrativa cronológica’) referia-se a textos que continham a narração de acontecimentos por ordem cronológica, sem apresentar qualquer análise ou interpretação dos factos narrados.

As crónicas começaram a ser escritas já na Antiguidade Clássica, mas foi durante a Idade Média e o Renascimento que estas atingiram o seu período áureo. Em Portugal, podemos destacar as crónicas de Fernão Lopes (Crónica del Rei D. João I, Crónica de D. Fernando, Crónica de D. Pedro, entre outras).

Mais tarde, ‘crónica’ passou a referir-se a textos de teor jornalístico, tendo como base factos ou assuntos da atualidade e nos quais os autores tendem a expor a sua opinião sobre esse mesmo assunto.
Atualmente, ‘crónica’ refere-se a uma narrativa ou história num sentido mais amplo. Vejam-se, a título de exemplo, as crónicas do autor moçambicano Mia Couto: Cronicando (1988), O País do Queixa Andar (2003), Pensatempos. Textos de Opinião (2005). E se Obama fosse Africano? e Outras Interinvenções (2009).

Para mais informações consultar:
– Cuddon, John Anthony. A Dictionary of Literary Terms and Literary Theory. Chichester (West Sussex): Wiley-Blackwell, 2013, p. 124

[vii] Ainda assim, e apesar de a pilha dos mortos aumentar à sua volta, é preciso notar que Rieux nunca desiste de ajudar todos aqueles que dele precisam. Quase nunca deixa cristalizaram-se na sua cabeça as perguntas: para quê? para quem? – empenhado como está na ajuda e tentativa de cura efetivas dos outros, quase como se essa tentativa bastasse por si mesma e nada mais importasse.

[viii] Em Rieux encontramos, ao longo de toda a obra, um exemplo permanente de honestidade, coragem e nobreza ética. Que homem exemplar é este que Camus desenha? Será Rieux o homem camusiano ideal? Será que Camus pretendia transmitir, através de Rieux, o papel do escritor naquela época, tal como expresso no seu discurso do Nobel?

[ix] Como nos diz Elisabete Marques (cf. Marques, 2013: 125, destacado meu) “A noção de testemunho (…) carrega consigo implicitamente uma concepção de tempo. Sendo um discurso comprometido com a atestação de factos, o testemunho vem sempre depois deles, segundo uma lógica causal, e justifica-se no propósito de comunicar o evento testemunhado, vivido, visto. Além disso, o testemunho supõe a presença de quem testemunha, supõe um presente da presença. A testemunha confirma no momento do seu testemunho, em presença, a sua promessa de verdade.”

[x] “Se a mulher do médico não cega é porque é capaz de compaixão, é porque os seus olhos são necessários para que o horror seja visto. Ela mesma diz: ‘Eu sou a que nasceu para ver o horror.’ É uma Antígona que, tal como a outra, não tinha nascido para a luta, mas que vai ter de lutar porque não há outra pessoa para o fazer…” (Saramago, 2018: 186)

[xi] Llansol, Maria Gabriela. Um Arco Singular. Livro de Horas II. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 169

[xii] O papel de médico vem contribuir para o de escritor, na medida em que lhe oferece a possibilidade de observar e aceder, em primeira mão, às consequências da peste. Nesta obra, os dois papéis – de médico e de escritor – parecem não ser simultâneos, mas antes consequentes, i.e., Rieux acaba por ser, depois de médico, escritor, e parece só poder ser escritor porque atuou como médico. A maneira como Rieux escreve parece ser influenciada pelo facto de ser médico. Assim, numa outra oportunidade, seria interessante atentar em questões de narrativa médica na Peste, i.e., em que medida/até que ponto é que a narração da obra é uma ‘narração de médico’ e de que se fala quando se fala de ‘narração de médico’?
13 É impossível, creio, falar de ‘dom’ ou de ‘dádiva’ sem falar de ‘amizade’, ‘amor’, ‘solidariedade’ e ‘comunidade’ pois que o dom envolve ou gravita em torno de todos estes conceitos, conceitos esses que são, aliás, chave no que à obra em análise diz respeito.

[xiii] É impossível, creio, falar de ‘dom’ ou de ‘dádiva’ sem falar de ‘amizade’, ‘amor’, ‘solidariedade’ e ‘comunidade’ pois que o dom envolve ou gravita em torno de todos estes conceitos, conceitos esses que são, aliás, chave no que à obra em análise diz respeito.

[xiv] Como se altera a sociedade numa crise? Veja-se como, em Portugal, rapidamente nos adaptamos à telescola e ao teletrabalho.

[xv] No Portugal pandémico de 2020, multiplicaram-se os casos de violência doméstica (a este propósito, ver, p.e.: https://www.publico.pt/2020/06/16/sociedade/noticia/covid19-pandemia-agudizou-situacoes-violencia-domestica-ja-existentes-1920817)

Fechados em casa com os seus abusadores, as vítimas caíram em desespero. Aumentaram os casos de depressão e os níveis de nervosismo e de ansiedade nunca foram tão altos. Os locais de convívio e de lazer fecharam. As igrejas fecharam-se e muita gente se questionou – onde para Deus?

[xvi] É caso para perguntar: quando o caos chega à nossa cidade, vamos ser cidadãos responsáveis e cumpridores e só sair para comprar pão e passear o cão, ou pessoas desprovidas de cidadania e festejar até mais não? É assustador verificar o número de pessoas que parecem viver como se não houvesse pandemia.

Fontes consultadas:

Imagens

Imagem da capa: Quadro de Theodor Severin Kittelsen (1900)
https://eterart.com/art/0x1d62481fb8614ede8e3240a00d2da9ebe943c1a4/musstad-1900/
A imagem pertence ao domínio público.

Quadro da página 4: “Plaga Hospital” de Francisco Goya (1798-1800)
https://www.wikiart.org/es/francisco-de-goya/plaga-hospital-1800
A imagem pertence ao domínio público.

Textos

– Anglard, Véronique. La peste, Albert Camus: résumé analytique, commentaire critique, documents. Paris: Nathan, 1993.

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– Encyclopaedia Britannica: https://www.britannica.com/art/chronicle-literature)
– Collins Dictionary: https://www.collinsdictionary.com/dictionary/english/chronicle

– Dicionário da Porto Editora: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua- portuguesa/crónica