Apesar de ter escolhido este tema antes de terem começado os acontecimentos a que o nosso mundo assiste hoje, acho que se tornou mais apropriado e importante, pois tal como o público de Teócrito e de Vergílio, na antiguidade, também nós na contemporaneidade temos o direito de nos afogar na leveza e beleza da poesia bucólica, temática que se torna assim o refúgio de que tanto necessitamos. Deste modo considero que escrever sobre este tema durante estes tempos sombrios tem sido a luz que o meu cérebro necessita. Mas porquê este tema? A poesia bucólica é um género de grande interesse pessoal, e por vezes chego à conclusão de que muitas pessoas acabam por colocá-lo de parte optando por obras de cariz mais mundano, épico ou até mesmo mais comercial. A poesia bucólica, não só clássica mas também contemporânea, possui uma enorme riqueza que por vezes acaba por ser esquecida.
O tema do bucólico — palavra que advém do grego βουκολῐκός, de βουκόλος, que significa guardador de gado — foi na Antiguidade muito apreciado pelos escritores como Teócrito e Vergílio. Contudo, conseguimos encontrar esse tom pastoril noutros escritores fora da antiguidade clássica. O gosto por este género foi algo que se foi cultivando desde a antiguidade até aos nossos dias, sendo importante relacionar todas estas obras e estes autores, comprovando assim o legado e a influência que vem desde a antiguidade.
O termo βουκολῐκός só apareceu uma vez antes de Teócrito, como menciona Kathryn Gutzwiller, e isto prova que apesar de Teócrito não ser o inventor deste género ele é, sem dúvida, quem o trabalhou mais, tendo depois passado o testemunho a Vergílio, autor que elevou a prática a outro patamar. O desenvolvimento tem muito a ver com o ambiente em que se vivia na época helenística, quando os primeiros filólogos e poetas da biblioteca de Alexandria tinham como principal objectivo das suas carreiras produzir algo que nunca tivesse sido criado.: desenvolver novos géneros, criar poemas mais curtos face aos grandes poemas épicos e didáticos, entre outros. Este sentimento leva a que Teócrito desenvolva em específico este género bucólico, mas que não o burile, criando assim uma poesia culta, porém bastante leve. Teócrito é um de facto um poeta doctus, ou seja, um poeta erudito, como afirma J. Vara.
Contudo, é duvidoso que Teócrito seja de facto o único inventor do género bucólico, pois assim estamos a colocar de parte todos os excertos com essas características que encontramos noutras obras da antiguidade. Grandes obras como a Ilíada, a Odisseia de Homero, as Argonáuticas de Apolónio, ou até mesmo poemas da lírica arcaica contém passagens que podemos considerar bucólicas, como menciona Maria Helena De Teves Costa Urena Prieto. É curioso também que em Hesíodo conseguimos encontrar um primeiro ensaio do que viria a ser este pastor-cantor.
De acordo com os estudiosos, em ambas as situações a poesia bucólica veio colmatar o excesso de um ambiente fortemente citadino. Existia uma sensação de que a natureza seria o lugar ideal para onde se poderia escapar, como Márcio Ribeiro menciona. Apesar de Teócrito também viver num ambiente semelhante ao de Vergílio, existe a hipótese de que o escritor nunca tenha estado em profundo ou prolongado contacto com as pastagens ou até mesmo com pastores, ao contrário do primeiro.
Ao falar sobre a problemática acerca de quem fora o criador do género, não é possível colocar de parte a problemática sobre a origem deste género poético. É importante salientar que é de opinião geral que existe uma “relação muito íntima entre as origens do bucolismo e as festas das colheitas e das vindimas, bem como as tumultuosas festas dionisíacas e fálicas, festejos estes que se realizavam nos campos”, na citação de Márcio Ribeiro. Mas quais são as características deste género? E como é que o distinguimos dos outros géneros literários?
É fundamental explicar primeiro quais os significados etimológicos das palavras associadas a este género e a formas poéticas típicas do mesmo. Ribeiro, e outros, dizem que o idílio, εἰδύλλιον, é uma “composição poética breve, poesia curta”. Os leitores e estudiosos modernos associam esta palavra ao tópico da poesia bucólica; no entanto no seu significado mais primitivo nada tem a ver com o tema pastoral. A écloga, ἐκλογή, significa etimologicamente “escolha”, “extrato”, ou, num sentido mais amplo, “poesia ou trecho seleto”, mas novamente só num ambiente moderno é que este termo está associado à poesia bucólica. E por fim a bucólica, βουκολικόν, e é dele que advém o nome deste género literário, a poesia βουκολῐκᾰ́.
Alguns estudiosos consideram a poesia bucólica como um género híbrido, pois dentro destes poemas são evidentes as influências e os empréstimos que os escritores foram retirar a outros, como a poesia lírica, a épica e o drama.
Nos poemas de temática bucólica conseguimos identificar assim bastantes tópicos típicos do género, τόποι, os quais são comuns a Teócrito e Vergílio. Entre estes τόποι encontramos, num lugar central, um ambiente campestre, que tem como protagonista o pastor, nomeadamente o boieiro. É curioso ser este o mais mencionado, pois na época clássica animais o boi era o mais valioso; parece que existe uma hierarquia dentro do próprio mundo dos pastores. Depois, entre outros τόποι, enonctramos o sentimento da natureza, a música, o canto, as sombras — que, no ambiente bucólico, são símbolo de paz e de sossego ao invés de ter uma conotação funesta associada com o mundo inferior —, a figura omnipresente do amor (heterossexual ou homossexual), a interação com os animais, o amor não correspondido, o lugar paradisíaco, o otium — tempo livre, tempo de lazer — que está presente, o canto de himeneu, o ᾰ̓γών — reunião — entre os pastores. Também é de salientar, numa série de sub-tópicos menos relevantes ou já enumerados de outras maneiras, mas também ilustrativos e típicos do género, o aparecimento da floresta mista, com várias espécies de árvores; as écfrases — são uma das características mais importantes pois contribuem para o enriquecimento do texto — o artificialismo — encontramos personagens mundanas ou cenas pastorais descritas num vocabulário épico — e o locus amoenus, a paisagem serena.
Relevante é também a parte métrica, sendo típico deste género o verso hexâmetrodactílico, assim como a parte musical destes poemas de curta extensão. O facto de os pastores serem cantores e tocadores que, durante os seus momentos de ócio, descansam e produzem estes cantos, contribui para a grandiosidade do tema. Infelizmente, um leitor moderno não tem a mesma sensibilidade que um leitor, ou ouvinte, grego ou romano teria para reconhecer a musicalidade dos versos de Teócrito ou de Vergílio, nem a língua original é acessível hoje, tal como menciona João Baptista Toledo Prado. No que toca à métrica é importante salientar que este poetas escolheram a mesma da épica e da poesia didática. Sendo esses poemas de grande extensão, que contêm neles não só uma enorme tradição literária como prestígio, os poetas helenísticos e, depois os seus sucessores, usaram para esta formas mais curtas da poesia bucólica o mesmo metro, retratando temas mais leves e de temáticas consideradas na antiguidade como inferiores.
Por último, falemos um pouco de dois poetas centrais neste género. Apesar de os poetas intitulados bucólicos seguirem os mesmos τόποι e apresentarem as mesmas características estilísticas e métricas, conseguimos encontrar diferenças entre eles. Isto é evidente nos casos de Teócrito e Vergílio, especialmente no que toca à caracterização das personagens e ao papel que entregam a cada elemento na sua obra. Por exemplo, Vergílio analisa a psicologia da paixão em profundidade, como menciona Ribeiro, e também dá mais enfase ao aspecto dramático e musical, coisa que não acontece em Teócrito. A interpretação do local mítico da Arcádia é vista de forma diferente pelos dois autores, o que serve também como outro exemplo dos focos que cada poeta demonstra.
Quando pensamos neste tipo de poesia o primeiro autor que temos em mente é Teócrito e, de facto, apesar de toda a problemática em torno da origem deste género, este autor continua a ser um dos mais importantes e germinais dentro do mesmo. Teócrito foi um poeta Siracusano, que escreveu maioritariamente em dialecto dórico, tal como o fazia o poeta Álcman, e em hexâmetros dactílicos. Teócrito não se foca apenas num estilo, e, como tal, em três dos seus idílios é possível verificar uma influência do género literário mimos, forma popular em que a história era representada com recurso a grande gestualidade e expressividade, tal como menciona Ribeiro. É um poeta que descreve com vivacidade as passagens mais dramáticas, o que acaba por ajudar à visualização do que está a acontecer dentro do poema. Dentro das características já mencionadas, a poesia de Teócrito abrange todas, distinguindo-se assim das outras obras clássicas e dos outros géneros, fazendo do género bucólico algo único, mesmo sendo este considerado um género de teor híbrido. A poesia que Teócrito desenvolveu fez com que o seu legado fosse transmitido durante séculos.
Tal como já foi mencionado as obras de Teócrito tiveram também uma enorme influência no autor que abordaremos a seguir. Vergílio foi um poeta romano que escreveu, não só, mas também, sobre temáticas bucólicas, para um público constituído por um povo cansado das disputas civis e da vida citadina, um público que necessitava de uma forma de alcançar a paz interior e de encontrar um local de conforto cultural e referencial. Vergílio também segue os vários τόποι deste género literário, tendo algumas diferenças em relação a Teócrito, como já fora mencionado, e dessa forma acabou por consolidar uma tradição que vamos encontrar noutros autores. Estes dois autores mesmo com as suas diferenças foram moldando as bases para a tradição e para a transmissão do género bucólico.
Por fim, concluímos dizendo e estabelecendo que a poesia bucólica é mais do que uma herança, é mais do que um género literário e conseguimos observá-lo quando nos debruçamos sobre a época em que Teócrito e Vergílio escreveram. Ela tem um papel fundamental nas culturas e serve de inspiração para muitos outros géneros literários que agora se influenciam neste, ao contrário do que acontecera no início, e continua a desempenhar um papel importante na nossa cultura. Como mencionei no início, em tempos de guerra e de conflitos, como estes a que assistimos hoje, a literatura é uma das nossas melhores aliadas.
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