A Poética do Sublime em Kant no Cinema de Andrei Tarkovsky

Texto de Marta Silva de Almeida. Revisão de Sílvia Pereira Diogo. A reflexão estética é associada ao gosto através da conceção de Kant, e da sua diferenciação através do belo e do sublime. O sublime é o que surge quando nos deparamos com um objeto artístico que ultrapassa a nossa capacidade de entendimento e que não conseguimos compreender ou dar-lhe um conceito; o sublime é algo que violenta – não pode ser medido. Enquanto que o belo se delimita a si mesmo, o sublime transcende esses limites, sendo representado na sua totalidade. Mais a mais, o sublime é uma experiência estética que provoca medo, desconforto e, pode até ser denominada de prazer negativo. Pensando acerca da dicotomia entre belo e sublime em Kant, este ensaio propõe-se a observar o cinema de Andrei Tarkovsky, através de uma visão do conceito de sublime. PALAVRAS-CHAVE: Tarkovsky, sublime, belo, filosofia, cinema, estética, Kant.

INTRODUÇÃO

A forma como interagimos com o mundo dá-nos diferentes perceções do mesmo. Ao estudarmos estética, o trabalho de Immanuel Kant é imprescindível para o entendimento dos conceitos que hoje temos presentes no mundo que nos acolhe. O seu estudo acerca da arte e da vivência humana trouxe precisamente dois conceitos: um juízo de carácter estético e outro de carácter teórico. Vamos deter-nos, como o leitor já deve ter antecipado, no primeiro.

Juízo de gosto é um conceito que demonstra como o gosto é algo inerente a todos os humanos – este juízo de gosto interliga-se com a questão estética, uma vez que a apreciação estética e de gosto que fazemos a uma obra de arte é possível devido a esse juízo do gosto. É importante realçar também que, para este filósofo, a experiência estética dizia respeito à natureza e não diretamente à obra de arte. Assim, é possível perceber como o ser humano é afetado esteticamente por objetos artísticos como pela natureza. Sentimos prazer estético devido a uma condição subjetiva do juízo do gosto[1], ou seja: o objeto artístico é, em si, uma representação de algo e, dependendo do recetor da obra de arte, existe uma experiência estética que poderá culminar em prazer ou desprazer. O juízo do gosto não se prende a nenhum conceito ou justificação, estando, por isso, o prazer que o sujeito sente associado a uma representação que ele próprio faz a partir das suas faculdades cognitivas. A ideia de belo, de acordo com o filósofo, exige desinteresse, ou seja, se a priori não existe nenhum fator de racionalidade, “belo é o que é conhecido sem conceito como objeto de uma complacência necessária”[2]. O belo está, portanto, ligado a uma ideia de universalidade sem necessitar de conceito; o objeto é percebido através da cognição. De resto se pode dizer que o belo também se delimita a si mesmo. O sublime, por seu turno, parece quase conseguir entregar ao observador a possibilidade de liberdade, sendo que o sublime se encontra no observador. Ou seja, a própria experiência estética entrega a possibilidade de liberdade.

O cinema é uma arte que respira movimento, da imagem para o fotograma; uma arte que nos permite um entendimento – a possibilidade de nos revermos nas personagens, na narrativa, nos espaços, e ao mesmo tempo, por outras palavras, mas não desassociadas daquelas, a possibilidade da nossa vivência através do objeto artístico que é o cinema, muito em acordo, aliás, com o sentimento geral descrito no parágrafo anterior. É possível navegar por esta arte e encontrar nela pedaços de nós próprios, que não conhecíamos, ou revisitar situações que nunca imaginámos. Tentando pensar o cinema de um ponto de vista estético, especialmente sobre o olhar do belo e do sublime, irei fazer paralelismos com o cinema de Andrei Tarkovsky, cujo trabalho artístico impele à ideia de sublime, ou assim me parece.

A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: O BELO E O SUBLIME

Associamos o conceito de belo e sublime a experiências estéticas, usualmente ligadas ao meio artístico ou a algo relacionado com as artes. Sendo que a observação de um objeto artístico cria sentimentos e emoções no observador, o ser humano, ao longo do tempo, sentiu a necessidade de definir essas emoções de forma palpável e inteligível. Assim, surgiram os conceitos de belo na sociedade clássica e, na sua génese, grosso modo, o belo significava, entre muitas coisas, algo que suscita interesse, agrado ou admiração.

Focando em Kant, e na sua concepção de belo, este conceito tem como base o gosto. O gosto, segundo o filósofo, é um juízo reflexivo estético, ou seja, o ser humano enquanto observador tem a capacidade de julgar o que observa e essa observação poderá deter um sentimento de prazer; sentimento este que remete para as faculdades cognitivas do sujeito perante o que observa. Kant afirma que, para existir os sentimentos que levam ao juízo de gosto, não é necessário haver conhecimento a priori, ou seja, não é necessário haver qualquer entendimento perante o objeto observado e, assim, apenas se analisa perante uma fruição estética: gostamos ou não gostamos. Segundo o filósofo, existem dois tipos de juízo, sendo eles o determinante e o reflexivo. O juízo determinante é aquele que diz respeito ao próprio objeto, ou seja, à forma como o objetivo é apreendido empiricamente; é um juízo do intelecto. Já o juízo reflexivo ocorre a seguir a esta primeira percepção: relaciona o objeto com a imaginação e com o sensível; diz respeito à forma como se dá sentido a um objeto, ao que se sente perante este e não à necessidade de significação. O juízo estético é determinado por um carácter desinteressado, ou seja, o sujeito não tenta compreender o objeto a priori mas a posteriori, isto é, depois de sentir o objeto como belo. O juízo do belo provém do desinteresse e apenas haverá possibilidade para prazer ou desprazer decorrentes desse juízo desinteressado. O belo diz respeito à forma como o sujeito apreende o objeto, mas não está no sujeito, não está ligado aos sentidos do sujeito, mas sim à forma como este o percepciona em termos de gosto — é um juízo estético.

No entanto, a reflexão acerca da estética em Kant não termina no belo; existe uma outra dimensão: o sublime. O sublime é o que surge quando nos deparamos com um objeto que ultrapassa a nossa capacidade de entendimento e que não conseguimos compreender ou dar-lhe um conceito; o sublime é algo que violenta – não pode ser medido. Enquanto que o belo se delimita a si mesmo, o sublime transcende esses limites, sendo representado na sua totalidade. O sublime é, de resto, uma experiência estética que provoca medo, desconforto e pode até ser denominada de prazer negativo. Além do mais, o sublime cria relações entre a lógica e a imaginação. Ambos, belo e sublime, provêm de um juízo reflexivo; ambos são desinteressados e ambos partem de prazer, no entanto separam-se pela forma como se relacionam com o objeto contemplado. O sublime é usualmente descrito como algo violento ou inadequado, o que infere dificuldade na percepção do objeto por parte do sujeito; também ativa a imaginação do sujeito e a sua própria subjetividade, as quais detêm a necessidade da imaginação para o possível entendimento. Sendo que o sublime causa terror e, também, admiração, o prazer não é apreendido a partir da observação, mas só após a imaginação. O sublime tem, por isso, a essência no próprio indivíduo, ou seja, é a partir da interioridade, da sensibilidade e do seu intelecto, que cada ser tem a experiência de sublime, como algo que dificilmente acontece a dois indivíduos.

Se fizermos um paralelo entre belo e sublime, poderemos questionar se estes, na realidade, também significam natureza e arte, respectivamente. Ou seja, a natureza permite uma experiência estética agradável e que nos deleita, enquanto que a arte nos transtorna, abana e faz questionar coisas que anteriormente não havíamos, sequer, pensado. O sublime parece quase conseguir entregar ao observador a possibilidade de liberdade, sendo que o sublime se encontra no observador. Ou seja, a própria experiência estética leva a cabo a possibilidade de liberdade.

O SUBLIME EM TARKOVSKY

Andrei Tarkovsky é conhecido devido à sua mestria na criação cinematográfica. Tendo no portfólio sete obras-primas da história do cinema, criou filmes de imagens únicas, planos contemplativos e com uma enorme beleza. O espectador é facilmente transportado para um universo espiritual, transcendental e esteticamente belo. O seu cinema é frequentemente intitulado de arthouse devido às suas experiências formais e temáticas.

Usualmente criador de complexas narrativas que contam eventos da vida de forma estilizada e deformada consoante a sua própria observação enquanto realizador, aliás sem enredos de fácil entendimento, o que importa, na verdade, para Tarkovsky, são as personagens retratadas e o que estas representam. Embora exista a necessidade de entender quais as ligações, ou as relações das mesmas com o espaço, o que o filme nos conta são pedaços de ações que mostram a imperfeição do dia-a-dia do ser humano e da sua trivialidade, sempre de forma imensamente poética e bela. Existe uma espiritualidade inerente a todos os seus filmes que surge quase como um fio condutor daquilo que observamos; constantes obras-primas que transcendem o que é entendido como uma narrativa clássica de cinema. Tarkovsky cria narrativas não lineares, muitas vezes perdidas entre a memória, o sonho e a realidade, usando diferenças formais para as intensificar. Com esta justaposição de tempos narrativos, e com a introdução de planos longos do espaço da natureza, o realizador criou a sua própria linguagem cinematográfica, apoiada numa poética imensa dos pequenos momentos da vida.

Figura 1: Zerkalo, 1979
Figura 2: Zerkalo, 1979

Muitos dos temas que aborda nos seus filmes são intrinsecamente filosóficos, como o sentido da vida, a natureza, o amor, a perda, o materialismo ou o existencialismo. No seu último filme, Offret, o pessimismo, melancolia e niilismo são visíveis em todas as personagens, mas especialmente em Alexander. O cinema deste realizador é dado à interioridade, ao pensamento e à melancolia, suscitando sentimentos de questionamento no espectador. A sua tendência para criar cenas com recorrência a motivos sobrenaturais, espirituais ou transcendentais é o que me leva a afirmar que o seu cinema pode representar a ideia de sublime de que Kant falava.

Numa primeira observação, qualquer um dos seus filmes é belo. A forma como os aspetos formais e temáticos se interligam com a narrativa cinematográfica — mais a fotografia utilizada e os movimentos de câmara — é criadora desta atmosfera de beleza presente no filme. Contudo, é no visionamento de certos momentos específicos do filme que o sublime se faz sentir.

Como já referi anteriormente, o cinema de Tarkovsky é marcado por uma forte presença poética devido às temáticas filosóficas que aborda, mas, a meu ver, os seus filmes funcionam quase como filosofia, na medida em que colocam as personagens em momentos de indagação e questionamento acerca da sua vida e do mundo. Usarei dois filmes para exemplificar a ideia de sublime no cinema de Andrei Tarkovsky e de como a sua imagética remete frequentemente para esta sensação.

O primeiro filme que, a meu ver, traz o conceito de sublime à tona é Nostalgia, filme de 1983, em que o elemento visual e estético é tão forte que somos facilmente admirados e transportados para este universo fílmico transcendental.

Nostalghia: a imigração de Tarkovsky - C7nema.net
Figura 3: Nostalgia, 1983

A forma delicada e, ao mesmo tempo, ousada com que trabalha os planos do filme e os elementos utilizados para a cinematografia criam uma forte sensação: aqui, reitero, o sublime. A sensação que planos como o acima mencionado me causa é a do sublime: a uma primeira instância, não é o belo da imagem que fica, mas sim a imagem: a quase não visibilidade do espaço, o vazio, a crueza. Existe uma espécie de ambiência que esbarra no sentimento de medo e de terror mas, ao mesmo tempo, e após uma observação mais atenta, surgem, como que sublimando o quadro, tanto beleza quanto prazer. Este sentimento é recorrente em outros momentos específicos do filme, em que, a imagem que surge acaba por ser tão inesperada que, uma vez mais, sinto a forte admiração do que vejo sem conseguir entender a priori. Na figura 4, um dos outros elementos que me leva a esta experiência sensorial é a luz e a sua reflexão na água. A monumentalidade do espaço das ruínas e do local é tão forte que me conduz a um outro patamar sensorial.

Nostalghia
Figura 4: Nostalghia, 1983

Os elementos estilísticos utilizados como a água e o fogo são outros dos instigadores da experiência do sublime: estes geralmente surgem perante a natureza e, uma vez mais, remetem a este tipo de sentimento. Claro que os elementos fortes e os planos em que surgem são importantes para esta possibilidade. Se os planos forem duradouros, ajuda, a meu ver, a uma contemplação que, quase que funciona como a imaginação de que Kant falava no discurso acerca do sublime e em como a imaginação surge para nos fazer apreender o que vimos e o que sentimos a partir do que é observado.

Em Offret, por exemplo, surge um dos momentos mais emblemáticos do cinema de Tarkovsky, com a casa a arder. Para além da mestria de realização, o poder das imagens é inegável. A criação da atmosfera do medo num local tão belo e pacato gera um sentimento de agressão perante o que estamos a ver. Aqui, uma vez mais, experiencio o sublime e, até, após várias observações, sinto-me quase ofegante. O poder das imagens é tremendo, assim como as sentimos.

Uma imagem com exterior, relva, barco

Descrição gerada automaticamente
Figura 5: Nostalgia, 1983

A obra artística tem sempre a possibilidade de criação de sentimento de sublime mas, a meu ver, o exemplo perfeito deste sentimento que Kant tão bem descreve materializa-se no cinema de Andrei Tarkovsky.

BIBLIOGRAFIA

Deleuze, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Tradução de Germiniano Franco. Lisboa/Portugal. Edições 70. 1963.

Kant, Immanuel, Crítica da Faculdade do Juízo /Kritik der Urteilskraft/, trad. de António Marques. Lisboa: ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2017.

Kant, Immanuel, Crítica da Razão Pura /Kritik der Reinen Vernunft/, trad. de Manuel Pinto Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2013.

Papers

Assis, Hugo Miguel Valadas. O Sublime de Kant: Um Estarrecimento perante o Inefável. 2017. http://hdl.handle.net/10451/40524

Burns, Christy L. “Tarkovsky’s Nostalghia: Refusing Modernity, Re-Envisioning Beauty.” Cinema Journal, vol. 50, no. 2, [University of Texas Press, Society for Cinema & Media Studies], 2011, pp. 104–22, http://www.jstor.org/stable/41240696.

Hummes, J. M., Dal Bello, M. P., & Dal Bello, U. B. (2020). REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE BELO E SUBLIME ESTENDENDO-SE A ARTE CONTEMPORÂNEA. Revista Da FUNDARTE, 41(41). https://doi.org/10.19179/2319-0868.771

Leal, J. C. D. (2015). A estética kantiana: o belo, o sublime e a arte. Intuitio8(2), 146-158. https://doi.org/10.15448/1983-4012.2015.2.18840

Filmografia

Tarkovsky, Andrei. (1975) Zerkalo

Tarkovsky, Andrei. (1983) Nostalghia

Tarkovsky, Andrei. (1986) Offret

ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1: Zerkalo, 1979 8

Figura 2: Zerkalo, 1979 8

Figura 3: Nostalgia, 1983 9

Figura 4: Nostalghia, 1983 10

Figura 5: Nostalgia, 1983 11

  1. KANT, Immanuel, Crítica da Faculdade do Juízo /Kritik der Urteilskraft/, trad. de António Marques. Lisboa: ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2017.

  2. KANT, Immanuel, Crítica da Faculdade do Juízo /Kritik der Urteilskraft/, trad. de António Marques. Lisboa: ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2017.