A Puberdade, a Idade Adulta e a Invenção da “Adolescência“

Na sequência de uma daquelas polémicas de redes sociais que duram algures entre meio dia e vinte e quatro horas, e poucas vezes talvez mais, vemos aqui deixar uma abordagem muito breve que esclarece a incapacidade algo fanática da modernidade em ver fenómenos milenares das culturas tradicionais como baseados numa lógica legítima. O fenómeno a que nos referimos neste caso em específico é o da primeira menstruação e como a mesma assinala a passagem ou o início da passagem para a idade adulta. É conhecido, no corpo da literatura universal anterior à semana passada e no linguajar popular que quando ela acontece “deixou de ser menina e já se é mulher“. Aliás é costumeiro apresentar tal leitura à própria criança que passa pelo caso — e a mesma, certamente algo preocupada com o momento traumático que atravessa, não deixa de ficar com algum orgulho em atingir tal estatuto (para quem não se lembra, e são muitos que já não se lembram, as crianças tipicamente têm inveja da liberdade e da autoridade dos adultos e desejam atingir esse estatuto tão cedo quanto possível).

No lado masculino passa-se o mesmo fenómeno, embora seja mais difícil determinar o momento em que a puberdade se inicia, ou, pelo menos, uma instância de transição tão dramática como a primeira menstruação: talvez a primeira polução, voluntária ou involuntária. Certo é que o princípio é o mesmo: tradicionalmente considera-se que o estatuto informal de “criança“ cessou ou começou a cessar aquando do início do funcionamento do aparelho sexual e reprodutor. Numa análise mais psicológica, pode também dizer-se que é “o fim da inocência“, fácil de perceber, para quem se lembre — e são muitos já não se lembram — o que significa passar cerca de uma década e pouco sem qualquer funcionalidade plena da aparelhagem sexual e, algures entre os 10 e os 14 anos, esse processo se iniciar e ativar toda uma série de órgãos, de disposições fisiológicas novas, de circulações hormonais e de alterações físicas evidentes, cuja notoriedade vai passar a sentir vinte e quatro horas por dia de todos os dias da vida adulta que aí se iniciou.

Quer se queira quer não, tradicionalmente, na sociedade pré industrial, pré burguesa e pré capitalista, a puberdade marcava o início da maturidade sexual, e a presença da maturidade sexual coincidia grosso modo com a maturidade cívica: ou seja, aos 13 anos já se poderia estar pronto para casar e, muitas vezes, assim se fazia. Não quer dizer que da união imediatamente resultasse prole, mas sim que as condições mínimas para tal ser obtido estavam já estabelecidas. Isto faz parte de uma sociedade maioritariamente rural, menos automatizada, menos próspera e menos livre que as nossas hoje, em que a existência de prole era fundamental para a sobrevivência e para a continuidade da unidade familiar. Filhos eram uma mais valia para a casa, mais braços para trabalhar — e daí a despreferência de muitas culturas pelas raparigas — e não um estorvo no nosso conforto burguês, como infelizmente hoje tantas vezes parece ser.

São as condições de enorme prosperidade material, e também de conhecimento, trazidas pelo desenvolvimento pós industrial que levou àquilo que commumente se costuma considerar a contemporânea sociedade burguesa capitalista, usufruindo de confortos proporcionados por automatismos mecânicos, económicos, sociais, e toda uma reorganização da vida cívica que permite o primado do culto da liberdade e da felicidade da pessoa individual e não tanto da coesão e sustentabilidade da unidade básica da família tradicional que, como sabemos, está em declínio; são estas condições, dizia-se, que levaram a uma invenção de um período da idade humana — e que certamente já poucos reconhecem como invenção moderna — a que entendemos chamar de “adolescência“.

Para entender a constituição de tal período temporal é importante perceber a série de novos critérios que foram acrescentados à ideia simples de maturidade biológica ou início da mesma, marcada pela puberdade: temos, além dessa, a maturidade psicológica — conceito totalmente alienígena para os pré industriais — a maturidade sexual — em termos de autonomia para a prática e a responsabilidade da mesma, e nos quadros legais do ocidente retemos ainda curiosamente uma vez que é muito baixa, dado que a idade legal do consentimento, para surpresa de muitos, situa entre os 14 e os 16 anos — e, por fim, a maturidade cívica, aquela que se atinge aos 18 anos e que fornece ao indivíduo todas ou quase todas as ferramentas e os direitos da idade adulta plena.

Todos esses critérios são subjetivos, arbitrários, ao contrário da objetividade dos sinais da maturidade biológica como o da menstruação. São critérios que, de certa forma, são luxo permitido pela prosperidade das sociedades pós industriais ou, como se costuma dizer hoje em dia, são privilégios. Na sociedade rural ninguém tinha propriamente tempo, conforto, vagar e lazer para pensar em adolescências. A infância, essa, necessariamente teria de existir em parte, pois de facto não é exigível a uma criança, por limitações físicas e mentais, além do óbvio sub desenvolvimento da capacidade reprodutora, todo o estatuto que se dá a um adulto. Mas não assim para o adolescente: o mesmo já tem ou já começa a ter — e pouco tempo leva até se verem os resultados disso — capacidade física, mental e, centralmente, sexual e reprodutor, plenamente ativa. É-se visto, nessas sociedades, como um jovem adulto, mas de facto já um adulto de pleno direito e responsabilidade.

Os outros critérios — da maturidade psicológica, da autonomia sexual e da maioridade cívica — são, voltamos a notar, inteiramente arbitrários, definidos por apreciação humana resultante de condicionantes sociais e culturais. É dado ao jovem adulto de, por exemplo, 14 anos, nas nossas sociedades contemporâneas, um tempo extra para se desenvolver, tempo esse que os estados ocupam com a escolaridade obrigatória e que a indústria da cultura ocupa com exploração económica das dúvidas existenciais que costuma surgir nesse período turbulento. O jovem adulto — que, por critérios simplisticamente fisiológicos, poderia ser já plenamente adulto de inteiro direito — tem o luxo de perder tempo a pensar na melhor maneira de como será adulto, ou então tem o luxo de simplesmente perder tempo num limbo, aliás muitas vezes rebelde e desordeiro, entre a infância e a idade adulta. A adolescência é um privilégio das nossas sociedades prósperas, não é de todo uma construção universal ou sequer baseada em grande medida em critérios objetivos, e existe tanto para dizer bem dela como para dizer mal.

Esse luxo pode, no entanto, estar contemporaneamente a ser sujeito a uma extensão que, essa sim, já se encontra em território bastante contranatura. Trata-se do fenómeno de acrescida infantilização da sociedade, em que, de algum modo, se está a achar tolerável que pessoas, rapazes e raparigas, de dezoito ou 21 anos sejam ainda considerados meninos e meninas, quando o último critério e o mais relevante que a sociedade dá, o da maioridade cívica, está já incontornavelmente atingido. O luxo da adolescência é, assim, esticado até aos, digamos, vinte e oito anos, e é possível hoje encontrar comportamentos em jovens adultos dessa estirpe geracional que noutros tempos não esperaríamos: homens a jogarem jogos de computador todos os dias, mulheres com enormes dúvidas quanto a autonomia e responsabilidade sexual, a saída de casa paterna e construção de família própria muito mais tardia ou inexistente, etc.

A adolescência é, assim, como tantas outras construções humanas, uma abstração cultural que individualiza um período de transição e o transforma numa espécie de fase da vida. É o tipo de coisa que, num arranjo tradicional de identidades sexuais, a mãe permitiria, por carinho e amor, mas o pai não, por achar inútil e perda de tempo. A sua existência enquanto acrescento positivo durante o período até os vinte anos é debatível; mas a sua extensão para além desse parece, à primeira vista, absolutamente maníaca. Talvez exista algo de viciante na abstração de um período de transição, um não lugar, que, consolidado como coisa de direito próprio, parece que permanece mas nunca permanece e, logo, nunca satisfaz. Por isso é possível, de certo modo, manter uma adolescência ad eternum, mas o constante ciclo e contra ciclo de paranoia aí envolto não será, seguramente, benéfico para a pessoa humana.