Imagem: Karol Wojtyła numas férias de canoagem, fotografia de autor desconhecido (c. 1950-60), retirada do livro de Mieczysław Maliński, Najchętniej grał na bramce (Varsóvia: Wydawnictwo Sióstr Loretanek, 1985)
Ensaio de Andreas Gonçalves Lind, SJ
Nasci durante a década de oitenta do século passado. Quando vim ao mundo, Karol Wojtyla já era João Paulo II. E foi este Papa que acompanhou as primeiras duas décadas da minha vida. Através da graça do baptismo, fui acolhido na Igreja já nos últimos anos do seu longo pontificado. Para todos aqueles que pertencem à minha geração, é natural termo-nos habituado a identificar o Papa com a figura de João Paulo II. Por isso, quando ele finalmente deixou esta vida, em 2005, não foi fácil para muitos de nós acolher um Papa que não fosse aquele polaco peregrino. Ao atravessar a infância e a adolescência até à maturidade da idade adulta a ver João Paulo II evoluir da robustez da juventude até à fragilidade própria da doença e da idade avançada, assumindo sempre a cátedra petrina, fomos percebendo o peso que carrega quem exerce a função de Sumo Pontífice.
No passado dia 18 de Maio de 2020, celebrámos o centenário do seu nascimento. A efeméride, naturalmente, fez proliferar uma serie de artigos publicados em diversas línguas, seja nos meios de comunicação ligados à Igreja, seja nos jornais seculares mais universalistas. Sem dúvida que é enorme a herança deste longo papado, através do qual a Igreja entrou no terceiro milénio da nossa História. Durante os vinte sete anos do seu pontificado, João Paulo II deixou-nos uma vasta lista de catorze Encíclicas e quinze Exortações Apostólicas; isto descontando os inúmeros discursos, mensagens e cartas oficiais que compõem o seu rico magistério. Sem dúvida que podemos qualificar de “imenso” o tempo do Papa Wojtyla.
Agora, no centenário do seu nascimento, somos convidados a recordar diversos aspectos da sua figura enquanto Papa, enquanto protagonista da História, enquanto Santo e enquanto Homem.
Centrando-se mais na dimensão política, há quem nos recorde o papel que ele desempenhou na queda do muro de Berlim e na, consequente, progressiva democratização de toda a Europa. É verdade. E, a esse propósito, João Paulo II deveria congratular-se hoje pela condenação proclamada, no passado dia 19 de setembro, pelo Parlamento Europeu tanto do nazismo como do comunismo soviético, ou não fora Wojtyla um homem que sofreu, na própria pele, a ocupação alemã do seu país e o domínio da ditadura de cariz soviético que lhe sucedeu.
A sua defesa inabalável dos direitos humanos comportou ainda importantes consequências na esfera eclesial. Nesse sentido, ao assumir explicitamente a missão de concretizar o Concílio Vaticano II, do qual ele foi um protagonista ativo, João Paulo II soube promover uma saudável separação entre o Estado e a Igreja, um fecundo diálogo inter-religioso, e até a coragem humilde de quem sabe pedir perdão pela violência à qual alguns filhos da Igreja recorreram no passado, em claro contraste com a Cruz de Cristo.
Tudo isso confirma a observação que Luigi Epicoco fez aquando dos diálogos com o Papa Francisco em torno da figura de Wojtyla: quando contemplamos João Paulo II, vislumbramos inevitavelmente uma figura “poliédrica”[i]. Não é apenas o seu pontificado que é “poliédrico”: é a pessoa Karol Wojtyla que sempre o foi.
As inúmeras facetas do Papa peregrino têm que ver com a enorme sensibilidade que ele nutria em se maravilhar com o mistério da vida humana. Por isso, a sua fé, a sua vocação sacerdotal e a sua experiência religiosa sempre se entrelaçaram com a sã curiosidade intelectual de quem não pode deixar de se ocupar com o estudo sério da filosofia do seu tempo. A esse propósito, notamos como Wojtyla, próximo de outros protagonistas do Concílio, sentiu necessidade de se libertar, numa certa medida, da metafísica clássica e do neotomismo subjacente. A fenomenologia constituiu, nesse contexto, uma das vias que lhe permitiu descer às coisas mesmas, às experiências fundamentais de cada dia, tal como elas acontecem no interior de nós mesmos, na nossa relação com o mundo onde nos situamos. O interesse e o estudo por Max Scheler justificam-se assim. Com o intuito de se tornar docente na Katolicki Uniwersytet Lubekski, Wojtyla elaborou uma tese em torno da obra deste autor alemão. Intitulada Avaliação da possibilidade de edificar uma ética cristã na base do sistema de Max Scheler, este estudo introduziu Wojtyla não só na esfera da fenomenologia do seu tempo, mas também no âmbito do personalismo cristão que acabou por marcar o seu pontificado.[ii] Depois do seu doutoramento em filosofia, em 1953, ele continuou a refletir a ética cristã em função do desenvolvimento e da maturação da pessoa humana na sua relação com o mundo e com os outros. Fruto dessa atitude, de quem não pensa a moral cristã como um conjunto de normas impostas desde fora à pessoa humana e inteligíveis num mundo teorético onde apenas estão ideias abstratas, é a sua obra mais célebre, Amor e responsabilidade, que ele publicou em 1960.[iii]
Diante do mistério da pessoa humana, Wojtyla depara-se com a imensidão de experiências que nos são consentidas nesta vida: experiências não redutíveis ao universo das ciências, dos saberes e das filosofias. É por sentir este mistério na sua própria carne que a pena de Wojtyla acabou por escrever poesia. Como diz um dos seus principais biógrafos, George Weigel, na medida em que “o aparelho científico da filosofia poderia limitar, ou até impedir”, as possibilidades do existir humano, Wojtyla sentiu, desde cedo, a sua vocação de poeta.[iv] Prova disso, é o facto de ele ter escolhido, em 1938, ingressar no curso de filologia polaca na Uniwersytet Jagielloński, em Cracóvia. Foi ali que se confirmou a sua “predisposição para a literatura”.[v]
Apesar de ter optado por assinar a sua obra literária com pseudónimos, tais como Andrzej Jawień, Stanislas Andrzej Gruda e Piotr Jawień (provavelmente seguindo uma recomendação explícita do seu arcebispo de Cracóvia, Adam Sapieha),[vi] a sua vocação de poeta nunca se separou nem da sua fé nem do seu sacerdócio ministerial. Não foi por mero acaso que grande parte da sua obra literária floresceu durante os doze primeiros anos do seu sacerdócio.[vii] Enquanto o sacerdote se situa na mediação entre este mundo e a vida eterna – entre o Homem e Deus –, o poeta escruta o mistério da pessoa que somos, alargando o horizonte da nossa experiência imanente para além do mundo contingente e finito onde existimos. A vocação sacerdotal e a vocação de poeta não se separam, sobretudo quando a pessoa em questão é Karol Wojtyla.
Na sua poesia, transparece a sensibilidade de quem sabe contemplar a rotina e o corpo de um “camarada de trabalho” – isto é, de um modesto e anónimo operário com quem trabalhou numa mina de calcário, durante a ocupação nazi da sua Polónia natal.
Il n’était pas seul. Dans la chair de la foule,
Ses muscles grandirent, palpitants d’énergie
aussi longtemps qu’ils brandirent le marteau,
aussi longtemps qu’il eut les pieds sur terre.
Une pierre écrasa ses tempes
taillant à travers la chambre du cœur.[viii]
Com rigor de fenomenólogo, o poeta Wojtyla descreve o fruto do trabalho de um operário no seu corpo. Os músculos que crescem com o suor do cansaço fazem-nos sentir, não apenas a injustiça social infligida a quem passa tanto tempo a talhar pedra, mas a energia de um corpo e de um coração que anseiam e lutam por mais vida.
É no coração de carne que se opera a transformação interior da Samaritana diante das palavras de Jesus. A breve coletânea de poemas Chant de la splendeur de l’eau, de 1950, retrata a experiência dessa mulher, em Sichem, junto ao poço de Jacob.
Vois les écailles argentées de l’eau
où la profondeur tressaille
comme la prunelle de l’œil quand l’image y surgit.
Quand le reflet des feuilles larges sur l’eau
touche ton visage
elle lave le cerne autour de tes yeux.
La source est loin encore.
Ces yeux las et cernés sont le signe
que les sombres eaux de la nuit
s’écoulent par les mots dans ta prière
(Arides nos âmes, combien arides).
La lumière du puits palpite de larmes,
un souffle de rêves – songent les passants –
les aura fait sourdre.
Le puits scintille de feuilles
qui passent dans tes yeux.
La verdure réfléchie voile ton visage
dans la profondeur qui luit.
Loin encore, la source![ix]
Mesmo se a fonte parece permanecer ainda distante do agora que vivemos, a água escura do poço ilumina-nos o rosto. São as lágrimas que dele brotam que nos revelam como a sede pode tornar-se num lugar de encontro.
Sempre fiel à experiência humana, como quem se deixa maravilhar pelos acontecimentos banais deste mundo e pelos anseios das pessoas que nele habitam, Wojtyla permite que os textos bíblicos se tornem vida para quem ousa recitar os seus poemas. Desse modo, podemos percepcionar a sua vocação de poeta como sendo sacramental, na medida em que a sua poesia descreve eventos naturais e humanos como símbolo e como sendo performativos de uma experiência interior. Trata-se de experienciar a vida que, por graça, não se reduz a este mundo. Exemplo disso é a compilação de poemas que ele compôs em 1966, meditando o evento da Cruz. O conjunto de poemas reunidos em Vigile Pascale apresenta-nos uma árvore que, como o “camarada de trabalho”, floresce com as suas feridas. Nas chagas dos cortes que lhe infligem, qual poda, cultiva-se o caminho que a conduz para além de si mesma, pois a ferida é necessária para que a vida seja implantada. Na árvore de Wojtyla, a ferida apenas é sinal de primavera. E assim personificada, tal árvore fala-nos diretamente, dizendo: “não temas morrer comigo.”[x]
Além disso, Wojtyla, o dramaturgo também constitui um dos frutos da sua vocação de poeta. De facto, as peças que ele escreveu, assim como o gênero de teatro que praticou na juventude, baseavam-se na ideia de que a palavra precede o gesto.[xi] Esta “devoção pela palavra” revela a atitude de quem escuta o que acontece ao seu redor, como que acolhendo o dom de existir.
A sua veia poética permite-lhe maravilhar-se com as múltiplas possibilidades da experiência humana neste mundo, sem cair na crença naïve de que tudo vai bem nesta vida. O enredo da peça La Boutique de l’Orfèvre[xii], entrelaçando a história de três casamentos não perfeitos, mostra-nos como o amor integra e supera o simples sentimento, podendo chegar ao dom de si.
A mesma veia poética transparece em Frère de Notre Dieu[xiii], uma peça que constitui um tributo ao irmão Alberto, personagem histórica que participou na insurreição polaca contra o domínio Russo em 1863. Elaborada nos finais da década de quarenta, na altura em que Wojtyla desempenhava as funções de pároco em Cracóvia, esta peça testemunha a sua resistência clandestina face ao despotismo do comunismo soviético que subjugava a sua nação. A arte de Wojtyla não é, pois, indiferente à política que nos congrega numa determinada sociedade. Surge, nesta peça, um personagem sem nome que entretém uma discussão com Adam, espelho do frei Alberto. Esse “desconhecido” assume as posições do comunismo mais ortodoxo daquela época – o próprio Wojtyla veio confirmar que tal personagem representaria uma espécie de “cripto-Lenine”[xiv]. Visto que a evolução histórica e coletiva da sociedade conduz inevitavelmente à igualdade comunista, apenas nos é pedido, segundo tal personagem, que nos integremos nas instituições e estruturas desse progresso, acelerando-o. Assim, a caridade exercida fora dessas estruturas é, tão somente, uma perda de tempo. É por isso que esse “desconhecido” critica Adam, por ele se deixar mover pela compaixão de coração que o conduz a cultivar uma relação concreta com um mendigo que dele parece precisar no instante presente.[xv] A peça faz-nos perceber, não só com a inteligência mas com o sentir próprio dos artistas, como a solidariedade sem caridade se torna vazia, pois, sem amor incarnado, sem a relação concreta com o indivíduo na sua carne singular, apenas servimos ideias abstratas, quais ideologias, que acabamos por impor aos outros, muitas vezes não sem violência.
A caridade não aparece na obra literária de Wojtyla, nem na sua vida enquanto padre, bispo e Papa, como uma simples norma moral a cumprir no dia-a-dia. Mais do que um preceito moral, a caridade brota da compaixão que não nos permite viver e relacionarmo-nos uns com os outros como múmias petrificadas. Se a compaixão faz de nós pessoas, daquelas de carne e osso com um coração que sente e se emociona no contacto com o próximo e na contemplação do mundo, também o artista só o é na medida em que se torna sensível aos afetos que o habitam e que se comunicam no mistério do que somos. Necessitamos de afeto, não só para praticar caridade, mas sobretudo para acolher e exprimir toda a beleza que nos é dada experienciar neste mundo. A este propósito, numa carta de 1999 dirigida aos artistas, João Paulo II declara:
Queridos artistas, como bem sabeis, são muitos os estímulos, interiores e exteriores, que podem inspirar o vosso talento. Toda a autêntica inspiração, porém, encerra em si qualquer frémito daquele « sopro » com que o Espírito Criador permeava, já desde o início, a obra da criação. Presidindo às misteriosas leis que governam o universo, o sopro divino do Espírito Criador vem ao encontro do génio do homem e estimula a sua capacidade criativa. Abençoa-o com uma espécie de iluminação interior, que junta a indicação do bem à do belo, e acorda nele as energias da mente e do coração, tornando-o apto para conceber a ideia e dar-lhe forma na obra de arte. Fala-se então justamente, embora de forma analógica, de « momentos de graça », porque o ser humano tem a possibilidade de fazer uma certa experiência do Absoluto que o transcende.
É essa sensibilidade de artista que nos dá o “entusiasmo, para enfrentar e vencer os desafios cruciais que se prefiguram no horizonte,” acrescenta ainda o Papa, citando, neste contexto, O Idiota de Dostoievski, pois é “a beleza [que] salvará o mundo”.[xvii] Segundo o Papa Wojtyla, a “arte autêntica” oferece “um caminho de acesso à realidade profunda do homem e do mundo”[xviii]. Foi sempre assim que ele viveu a sua vocação poética: não para se vangloriar do seu próprio talento, fechando-se no solipsismo de um ego vaidoso de si, mas para criar com e para o Outro e os outros. E nisso, ele também nos ensinou a ser Igreja.
Em Meditação sobre a morte de 1975,[xix] Wojtyla exprime a esperança alcançada por quem se abandona à fragilidade da terra e do corpo, como quem se entrega e se esquece de si mesmo em prol de um Bem maior.
Toujours à temps, l’Espérance s’élève
en tout lieu soumis à la mort.
L’espérance est le contrepoids de la mort,
en elle le monde mortel révèle à nouveau sa vie.
Dans les rues, les passants en blousons,
les cheveux leur tombant sur la nuque,
coupent au couteau de leur pas
l’espace du grand mystère,
qui s’étend en chacun entre sa mort et l’espérance :
espace élancé vers le haut
comme la pierre de la tache solaire
roulée du seuil du tombeau.[xx]
A beleza que se manifesta no gesto de quem se oferece por algo que o transcende, tal como transparecia naquele rosto de João Paulo II aquando da sua incapacidade de pronunciar qualquer palavra que fosse, alimenta a nossa esperança no para além do fim. Capaz de transformar o mundo e de nos converter, o ser-para-e-com os outros dá-nos força para caminhar rumo ao que esperamos ser ressurreição.
[i] Cf. Luigi Maria Epicoco e Papa Francisco, San Giovanni Paolo Magno (Milano: Edizioni San Paolo, 2020), p. 5.
[ii] Cf. George Weigel, Jean Paul II. Témoin de l’espérance, trad. Philippe Bonnet, Sabine Boulongne, Valérie Rosier et Floriane Vidal (Paris: J.-C. Lattès, 2000), pp. 164-168.
[iii] Cf. Karol Wojtyla, Amor e responsabilidade: estudo ético, trad. João Jarski e Lino Carrera (São Paulo: Edições Loyola, 1982).
[iv] Cf. Weigel, Jean Paul II, p. 152.
[v] Cf. Antonio Spadaro, La poesia di Karol Wojtyla, in La Civiltà Cattolica, q. 3733, vol. I (2006), p. 25. Neste artigo do jesuíta Antonio Spadaro encontra-se um rico comentário dos vários períodos da poesia wojtyliana (cf. ibid. pp. 24-37).
[vi] Cf. Jean Offredo, « Avant-propos », in Poèmes. Théâtre : La Boutique de l’Orfèvre ; Frère de Notre Dieu. Écrits sur le théâtre, Karol Wojtyla (auteur), trad. Pierre Emmanuel et Constantin Jelenski(Paris: Cana-Les Éditions du Cerf, 1998), p. 8.
[vii] Cf. Weigel, Jean Paul II, p. 146.
[viii] Karol Wojtyla, Poèmes. Théâtre : La Boutique de l’Orfèvre ; Frère de Notre Dieu. Écrits sur le théâtre, trad. Pierre Emmanuel et Constantin Jelenski(Paris: Cana-Les Éditions du Cerf, 1998), p. 74.
[ix] Ibid., p. 35.
[x] Ibid., p. 143 [nossa tradução].
[xi] Cf. Spadaro, La poesia di Karol Wojtyla, p. 24.
[xii] Cf. Wojtyla, Poèmes. Théâtre : La Boutique de l’Orfèvre ; Frère de Notre Dieu. Écrits sur le théâtre, pp. 185-259.
[xiii] Cf. Ibid., pp. 261-373.
[xiv] Cf. Weigel, Jean Paul II, p. 148.
[xv] Cf. Wojtyla, Poèmes. Théâtre : La Boutique de l’Orfèvre ; Frère de Notre Dieu. Écrits sur le théâtre, pp. 293-297.
[xvi] Ibid., §15.
[xvii] João Paulo II, Carta do Papa aos artistas, Vaticano, 4 de abril de 1999, §16.
[xviii] Ibid., §6.
[xix] Cf. Wojtyla, Poèmes. Théâtre : La Boutique de l’Orfèvre ; Frère de Notre Dieu. Écrits sur le théâtre, pp. 169-181.
[xx] Ibid., p.179.