A Zoomusicologia Existe!

Qual a Moral do Animal Humano Perante a Música dos Animais Não Humanos ou A Música das Esferas e a Expressão Musical dos Animais: A Zoomusicologia Existe! Texto de Vítor Rua (músico & etnomusicólogo).

O que sabemos nós sobre o que é Música? Alguma coisa. Mas será o suficiente para a definirmos com precisão? Alguns responderão que sim. Outros informarão que a única coisa que sabem é que não se sabe o que é isso a que damos o nome de “música”; que em muitos povos nem o termo – música – existe; outros povos subsistem sem que tenham sequer o conceito de música. Será a música algo de universal? Será que todo o ser humano é possuidor de uma musicalidade ?

A música é uma manifestação artística profundamente enraizada na experiência humana, mas a expressão musical não é uma exclusividade da nossa espécie. Animais não humanos também emitem sons complexos e rítmicos que podem ser interpretados como formas de comunicação e expressão. A zoomusicologia, um campo interdisciplinar que investiga a música produzida por animais não humanos, revela que a musicalidade transcende os limites das fronteiras humanas.

Durante muito tempo, e em todo o planeta, os seres humanos reconheciam, constatavam e atribuíam uma grande musicalidade a certos animais, as infindáveis e belas “melodias” de certos pássaros ou o “canto” das baleias eram exemplo disso.

Depois vieram a musicologia e a etnomusicologia e tudo terminou. Um pouco como Descartes e a mecanização do mundo natural. Num instante, essa “musicalidade” foi-se e ficámos reduzidos a uma frase “científica” qualquer do género: “A nós – seres humanos – aqueles “sons” soam-nos a música… Mas não é!” O ser humano, encabeçando o topo da hierarquia animal (esse acto determinado – claro! – pelo próprio ser humano) seria assim o único ser com o dom da música e o único possuidor ou guardião dessa tal “musicalidade“.

A ciência consegue ser muito conveniente por vezes… e que atrevimento supor-se que a Música – essa arte das Musas, esse dom de Deus, essa poesia matemática própria para seres com alma, pudesse pertencer também a outros que não nós! Que o diga Descartes.

Quer a razão seja Deus ou a ciência, o que é um facto é que os animais não-humanos “perderam” a sua musicalidade. Da mesma forma que a mulher passou a possuir alma após o Concílio de Trento, depois de Descartes os animais perdem toda a sua musicalidade. Quando muito, mimetizam-na. Dessa forma, a pretensa musicalidade dos animais ou existe apenas nas nossas mentes (que somos os “racionais”, “cultos”, possuidores de “emoções” e para alguns também com “aspas”) ou é pura e simplesmente um mimetismo, uma imitação pavloviana e sem qualquer consciência daquilo que é a nossa Música.

Mas afinal que raio de coisa é esta a que chamamos “música”? É que antes de podermos afirmar se outros animais possuem “musicalidade”, precisamos de entender, classificar e caracterizar o “nosso” conceito de música.

Para Jaques Atalli, “vida é ruído”. Logo, “vida é som”. Viver é assim um estado audível. Um acontecimento sonoro. Ora, irei demonstrar que a música é (entre outras coisas) o som. O som é a matéria prima da Música. Se – como iremos ver de seguida – todo e qualquer tipo de som pode ser música e se a vida (viver) é um estado sónico podia pressupor-se que toda e qualquer forma de vida seria potencialmente não só uma fonte sonora, como um forte candidato à capacidade de produzir/possuir uma “musicalidade”.

É lógico que nem todo o som é música, pois se assim fosse não precisaríamos de duas palavras mas apenas de uma: som. Carl Dalhaus (ou será Eggbrecht?) chama a este instante em que um som deixa de o ser som para passar a ser música, de “mathesis”. Música, seria assim, qualquer tipo de som imbuído de mathesis, pertencente a determinada cultura e, segundo a grande maioria dos musicólogos, exclusivo do ser humano. É como lidar com a situação de certos povos não possuírem o termo “música” no seu vocabulário ou nem sequer possuírem o conceito de música? De referir que um desses povos que não possui o conceito de música, também não possui o conceito de “porta traseira” e no entanto, as suas habitações têm uma porta à frente e outra atrás. Quer isto dizer apenas que não é pelo facto de um povo não possuir o termo ou o conceito de música que este não concebe aquilo que nós – que possuímos o termo e o conceito – entendemos como música. A ser verdade esta conclusão, nada nos impede de ir um pouco mais longe no nosso raciocínio e avançarmos com a hipótese de que outros animais não humanos, igualmente desprovidos do termo e do conceito de música, a possam realizar e usufruir.

Tento aqui explorar a intrigante relação entre a música humana e a expressão sonora de animais não humanos. Através da perspectiva da zoomusicologia, examinamos como diferentes espécies criam sons distintos que podem ser considerados como formas de expressão musical, mesmo que não compartilhem a mesma compreensão do conceito ou termo “música”. Além disso, investigamos a ideia de que a música não é exclusiva dos seres vivos, estendendo-se até ao próprio cosmos, refletindo a crença numa “Música das Esferas” que ressoa em toda a existência.

A música é uma manifestação artística profundamente enraizada na experiência humana, mas a expressão musical não é uma exclusividade da nossa espécie. Animais não humanos também emitem sons complexos e rítmicos que podem ser interpretados como formas de comunicação e expressão. A zoomusicologia, um campo interdisciplinar que investiga a música produzida por animais não humanos, revela que a musicalidade transcende os limites das fronteiras humanas.

Baleias, aves, insectos e uma variedade de outras criaturas demonstram padrões sonoros distintos nos seus comportamentos naturais. As baleias, por exemplo, comunicam-se por meio de cantos complexos que variam entre indivíduos e populações. Esses padrões podem ser considerados uma forma de expressão musical, uma vez que incorporam elementos como a melodia, o ritmo e a repetição.

Da mesma forma, aves como o rouxinol do Japão apresentam canções elaboradas que evoluíram para atrair parceiros e marcar territórios. O canto dos insectos, como o dos grilos, também segue padrões que se assemelham a composições musicais, com estruturas repetitivas que lembram ritmos e harmonias.

A diversidade de expressões musicais entre animais não humanos é comparável à variedade cultural observada nas sociedades humanas. Tribos amazónicas, por exemplo, possuem formas de expressão sonora que diferem das convenções ocidentais de música. Embora possam não empregar o termo “música” ou ter a mesma compreensão abstracta do conceito, as suas expressões sonoras têm função cultural e social, assim como as vocalizações dos animais.

Além da expressão musical terrestre, a crença na “Música das Esferas” é um conceito que remonta à antiguidade. Os antigos gregos propuseram que os movimentos celestes produziam sons harmoniosos e divinos, formando uma sinfonia cósmica. A ideia de que o universo em si é permeado por uma espécie de música intriga tanto cientistas quanto filósofos, ecoando a noção de que a música é uma parte inerente da existência.

Recentemente com o advento da tecnologia (computadores) certas ciências como a bio-acústica, a bio-música, a nano-tecnologia ou a zoomusicologia, têm tido uma evolução dromológica e realizado grandes e revolucionárias descobertas no que diz respeito à musicalidade animal. Uma renomada especialista bio-acústica, diz-nos categoricamente, após estudos ao longo de décadas de gravações e espectogramas do canto das baleias, que estas produzem aquilo que nós humanos entendemos como música: melodias (e não “chamamentos”) que chegam a durar mais de trinta minutos; e durante esse período de tempo outras baleias escutam essa música sem interferirem; que tal como nos povos de tradição oral, essas “canções” ou “melodias” vão com o tempo sofrendo pequenas alterações. No ano seguinte, a mesma baleia, ou as baleias que assistiram ao concerto do ano anterior, repete a mesma canção com subtis diferenças e alterações. Para a cientista não há qualquer dúvida de que estes animais estão a produzir e a usufruir daquilo que nós intitulamos de música. Mesmo que – e tal como acontece noutros povos – estas não possuam o “conceito” de música.

De referir que até recentemente se classificavam os seres humanos de animais de “racionais” e de “irracionais” todos os outros animais. Ora, hoje sabemos perfeitamente da falácia desta afirmação. Os outros animais têm sentimentos, emoções, sentem (os animais são sencientes) e são capazes dos mais complexos raciocínios. Mas isso não impediu que durante séculos os tratássemos por bestas (muitas das vezes com sentido pejorativo) ou os tratássemos como máquinas (como relógios, por exemplo). Quando na realidade é o ser humano o único animal (ou dos únicos, uma vez que parece que certos símios também o fazem) que mata por prazer ou sem ser por uma questão de sobrevivência. E que passamos grande parte da nossa vida com pensamentos negativos em relação ao próximo, enquanto os outros animais quando não estão a caçar para sobreviver se recriam com brincadeiras, jogos e carícias. Puro deleite. Pureza. Os povos que praticam hoje um tipo de vida que intitulamos de “primitiva”, vêem nos animais não-humanos seres possuidores de uma grande moral. E possuidores de uma grande musicalidade. Além disso não só acreditam que os animais comunicam, como entendem perfeitamente a sua linguagem. Para estes povos isso é claro como a água. Nós – habitantes urbanos – não queremos acreditar que eles tenham linguagem, simplesmente porque não os entendemos e porque nos foi incutido desde tenra idade a nossa indiscutível “superioridade”; que a linguagem seria precisamente uma prova da nossa superioridade intelectual.

Como foi possível passarmos (como existe ainda em algumas tribos totémicas) de um respeito e harmonia para com os outros animais, para uma total barbárie/holocausto que provocamos a milhões de espécies animais? E chamamos a isto “evolução”? Dizemo-nos civilizados em contraponto com os ditos povos “bárbaros” ou “primitivos”? É – toda esta tortura, crueldade e matança – sinónimo de “evolução civilizacional”? De que forma passamos como no século XV de existirem processos em tribunal entre humanos e animais(onde estes últimos tinham até direito a um advogado de defesa), para a era actual onde parece não existir qualquer direito aos animais e que a maior parte das vezes e em certos países estes não têm mais direito do que uma mesa ou outro qualquer objecto? Mas que espécie de moral é esta a nossa? Como nos tornamos nós nestes seres horrendos? Que civilização “evoluída” é esta que pratica o mal nos animais, enquanto os “primitivos” os respeitam?

O afastamento do ser humano da Natureza foi tão gigantesco que hoje crianças (e até adultos) pensam que, por exemplo, um atum é um animal pequeno castanho, sem corpo, membros ou cabeça e que vive em latas pequenas de conserva. O filósofo Peter Singer diz que se actualmente o ser humano tivesse diariamente de matar para adquirir o seu alimento, quase a totalidade da humanidade se tornaria vegetariana. Uma coisa é vermos num talho os animais desmembrados e cortados em fatias; outra bem diferente é termos de ser nós com as nossas próprias mãos a matá-los, cortá-los e desmembrá-los.

Esta atitude perante os animais só parece possível por ignorância, incompreensão, receio (infundado), e pelo tal afastamento da Natureza e dos animais. Então em que devemos nós acreditar? Nós que agora – em civilizações “evoluídas” – trucidam, torturam e assassinam diariamente milhões de animais e que afirmam que estes são irracionais e que, portanto, estão na Terra para nos servirem e nós nos servirmos deles como bem nos apetecer, ou devemos antes acreditar nos tais povos ditos primitivos que respeitam, admiram e veneram os outros animais, e acham-nos até capazes de uma grande moral e musicalidade? Eu opto pela segunda proposição. Neste aspecto prefiro ser chamado de “primitivo” a “civilizacionalmente evoluído”.

Mas não é necessário viver na Natureza, numa qualquer região profunda da Amazónia, para percebermos que os animais comunicam, sentem, têm emoções ou sonham como nós. Quem tem animais domésticos pode facilmente observar isso. Eles pedem-nos comida, demonstram a sua dor quando algo está mal, brincam connosco, sabemos quando estão tristes ou alegres, enfim, comunicam! Nós – humanos –, para comunicarmos, usamos a linguagem verbal e gestual (além da escrita, claro). O mesmo se passa com os outros animais: comunicam verbal e gestualmente. Só não têm a escrita. Vemos então que os animais comunicam entre si tal como nós humanos. Então porque não podem possuir também a tal “musicalidade” atribuída exclusivamente aos humanos? Na teoria evolucionista existe a visão de que o ser humano está geneticamente programado para a tal musicalidade desde o início da humanidade e que o propósito dessa musicalidade seria – pelo menos inicialmente – a reprodução.

Tal como certos animais usam sons, gestos, movimentos, cores, para atraírem sexualmente parceiros, nós humanos também estaríamos programados para essa função através da música. A diferença está em que, quando esse factor é nos animais, nós dizemos serem “chamamentos”; quando se trata do ser humano, chamamos à mesmíssima coisa “música”. Mesmo na actualidade vemos vestígios dessa função primordial reprodutiva nas estrelas pop, rock, do jazz, da clássica e especialmente na chamada música “gastronómica” onde a dita estrela atrai fãs que se deleitam com a sua música mas também com a própria pessoa em si. Uma atracção sexual. Do Elvis Presley à Madonna, do Miles Davis ao Julio Iglesias, todos estes artistas reúnem à sua volta e em várias partes do mundo um número elevado de pessoas apreciadoras da sua música simultaneamente também atraídas sexualmente pelos artistas em questão. Um pavão – por exemplo – tem mais hipóteses de arranjar facilmente uma parceira quanto maior e luxuriante for a plumagem da sua cauda e os sons que este emite. Qual é então a diferença entre o pavão e o Julio Iglesias? A diferença está unicamente no mercado cultural que o ser humano criou à volta do conceito de “arte”. Metam um pavão no Royal Albert Hall a mostrar a sua penugem opípara e teremos standing ovations. Isto já para não falar da reacção dos pavões fêmeas que estejam – porventura – a assistir via net a este evento.

O caso ciber-mediático da gata pianista Nora é paradigmático. Uma gata de uma professora de piano. Esta – a professora – nunca ensinou a gata a tocar piano. A gata deve ter começado a tocar por imitação, tal como sucede nas crianças. E os adultos também: aprende-se muito imitando. Quanto mais tocava – a gata – mais ia desenvolvendo técnicas próprias, idiossincrasias: a repetição obsessiva de uma nota; o encostar a orelha ao teclado do piano; o uso de meios tons. Nora criou um “estilo”. Uma forma peculiar e original do uso deste instrumento, guardando-lhe um lugar no grupo reduzido de pianistas que conseguem ser reconhecidos pela sua linguagem. Não se trata de andar a correr pelas teclas do piano atrás de um qualquer peixe preso a um fio ou que alguém desliza de um lado para o outro nas teclas de um piano. Não! Trata-se de um ser que, para tocar aquele instrumento, tem de se colocar numa posição que não lhe é natural – apoiada somente em duas patas – e vemos claramente que ela sabe o que está a fazer. E que tira prazer no que faz. Quanto à qualidade com que classifiquei a originalidade da técnica e linguagem musical de Nora, basta compararmos as suas intervenções com as da sua dona – a professora de piano –, que se limita a fazer um meddley com melodias conhecidas, ou trechos de peças clássicas. Em contraponto com a previsibilidade desta, a originalidade e o mood avantgard com que Nora desenvolve o seu mundo musical é assinalável. É como estarmos a ouvir Monk e de vez em quando entrar um pianista de hotel.

Outro exemplo é o do Tucker, um cão pianista e uivador. Também uma estrela do YouTube, este cão – tal como Nora – sustém-se apenas com duas patas, usando as restantes para pressionar as teclas do piano. Por vezes, fica períodos só no piano, mas outras vezes começa a uivar em simultâneo com o piano. A sua técnica pianista é invulgar: clusters e notas alternadas entre a pata esquerda e a direita; e uma tessitura reduzida (inferior a uma oitava) circunscrita à distancia entre as suas duas patas. O seu uivar é muito bluesy, legato, com breves interjeições staccato, fazendo lembrar o bluesman Wolling Wollf. A combinação das duas coisas – piano e uivo – é extremamente original e contemporânea. Pela minha parte, pagaria um bilhete para ver um tal concerto na Gulbenkian.

Existem cada vez mais exemplos de animais não-humanos a tocarem instrumentos musicais, além dos mencionados, como uma gatinha que toca metalofone e outros: uma caturra que marca o ritmo da música com as patas (quando o ritmo da música acelera e ela não consegue acompanhar, começa então a marcar o ritmo, desmultiplicando-o, revelando uma capacidade invulgar rítmica). Mas estes exemplos da Nora e do Tucker são excepcionais e merecem a nossa atenção.

Mas, então, o que estão a fazer a gata Nora e o cão Tucker? Eu não tenho qualquer dúvida: estão a fazer música. Sons organizados com mathesis. Não estão a pedir comida, não pedem para ir à rua, não querem festinhas. Eles deslocam-se até um instrumento musical e começam a tocar durante várias horas, vários meses, anos. Praticam, evoluem e experimentam tal como os seus congéneres humanos. Então porquê esta recente aversão ou mesmo negação da ideia de outros animais possuirem uma musicalidade e serem capazes de produzir e usufruir da música?

A etnomusicologia é uma ciência recente, tem tido grande evolução nos últimos anos em expansão interdisciplinar com outras ciências. Tem, por isso, lutado por uma visão musical global, contra um etnocentrismo; contra qualquer tipo de racismo; pela igualdade sexual e outras conquistas humanitárias. Recentemente, certa etnomusicologia pós-moderna sentiu a necessidade de fazer correcções a certos dogmas e ideias pré-concebidas sobre música. Logo um dos principais conceitos que levantou dúvidas ao nível da sua definição foi o próprio conceito de música. “O que é isso a que chamamos de música?”. Os especialistas preferiram optar pelo termo “músicas” em substituição de “música” e foram os primeiros a alertar-nos para que em certos povos não existe o termo “música” e, mais ainda, alguns nem o conceito possuem. E dentro deste raciocínio, se mesmo entre os humanos certos etnomusicólogos refutam a ideia de que a música seja universal, muito facilmente chegam à conclusão de que os outros animais não possuem “música” e que os sons musicais produzidos por eles são vistos ou entendidos como propriedades musicais pelos seres humanos, pois os animais produzem tais sons sem qualquer consciência musical.

Curiosamente é da etnomusicologia que nasce uma outra ciência, a zoomusicologia, que visa estudar e analisar a música dos animais não-humanos. É o compositor François Bernard Mache que cunha este termo e que defende que outros animais, além dos humanos, possuem também musicalidade e, por consequência, realizam “música”, ainda que – tal como certas tribos humanas – não possuam o termo ou o conceito de “música”.

Esta é a visão que eu partilho do assunto na actualidade. E partilho esta convicção juntamente com outros reconhecidos musicólogos e cientistas da bio-acústica.

Acreditar que a música é uma acção exclusiva do ser humano é não ter a noção de que existe essa convicção desde os antigos gregos, e é desmentir dados factuais existentes na actualidade (através de experiências empíricas ou até de inúmeros vídeos presentes actualmente no Youtube), bem como ignorar que – para mim – a primeira música que existiu não foi improvisada, composta ou interpretada, mas sim escutada, e o acto de escutar é uma característica do animal humano e de animais não-humanos. Aliás, muito recentemente, chegaram até nós provas científicas comprovativas de que até as plantas “escutam” mesmo – aparentemente – não possuindo aparelho auditivo (pelo menos da forma como nós esperamos ser ou constituir um sistema auditivo). Mais a mais, recentes experiências realizadas em plantas com simulação sonora de lagartas a percorrerem as suas folhas levaram à conclusão de que os invertebrados suscitavam das plantas a libertação de uma enzima tóxica no sentido de repeli-los, tal como sucede com o fenómeno verdadeiro quando as lagartas se alimentam daquelas folhas. Após a reprodução desse som tão característico, os cientistas repetiram outros (vento ou chuva) e as plantas não soltaram nenhuma outra enzima em resposta, provando assim reconhecerem e diferenciarem o som das lagartas de qualquer outro tipo de som que se apresentasse como ameaçador.

A ciência tem feitos descobertas que demonstram claramente que a prática musical não é exclusiva do animal humano. Aliás, a considerarmos a noção da “música das esferas” dos antigos gregos, não só animais ou plantas podem escutar ou produzir música, como o próprio universo pode realizar aquilo a que nós humanos reconhecemos como conceito de música. Através da tecnologia e dos avanços realizados na bio-acústica, estamos cada vez mais apetrechados para compreender melhor o universo sónico produzido pelos outros animais e daí retirarmos as nossas conclusões sobre a capacidade destes possuirem ou não uma musicalidade e serem capazes de produzirem e usufruirem de música.

A zoomusicologia revela que a música transcende as barreiras da espécie humana, abrangendo uma variedade de expressões sonoras nos reinos animal e cósmico. Através da análise das vocalizações e dos padrões sonoros de animais não humanos, podemos enriquecer a nossa compreensão da diversidade musical e da interconexão entre todas as formas de vida e o cosmos. Reconhecer que a música é uma linguagem universal é um convite a explorar as múltiplas maneiras pelas quais a música permeia o nosso mundo.

Termino apelando a que não realizemos interpretações antropocentristas do tema que nos ocupa e que possamos manter um espírito aberto e receptivo às descobertas revolucionárias e empiricamente provadas que têm surgido, bem como ainda recomendamos que todos nos possamos desprender de uma superioridade “moral” que pode revelar, na realidade, e em certa medida, uma indesejada inferioridade moralizante à nossa volta.