Acerca da Ironia e do Provincianismo

Ensaio sobre o lugar da ironia em culturas e sub-culturas urbanas contemporâneas.

Texto de António Marques Pereira. Publicado originalmente em https://osfazedoresdeletras.com/2018/10/28/acerca-da-ironia-e-do-provincianismo/.

A cultura contemporânea, desde a mais popular à mais erudita, demonstra um interesse particular por técnicas e recursos estilísticos que, de um modo geral, procuram contornar, subverter ou transcender o simples ato de mostrar ou exprimir algo. As experiências dadaístas e abstracionistas na pintura; a rebeldia musical que vai desde um Kurt Cobain a espezinhar a guitarra durante um solo até um Stockhausen a utilizar helicópteros como instrumentos adicionais num quarteto de cordas; o uso e abuso da quebra da fourth wall, bem como da auto-paródia, na literatura, no cinema e na televisão – em todas estas manifestações culturais encontra-se latente o desejo de ir contra o expectável segundo a tradição, de procurar novos meios de expressão ainda que tal incite o escárnio e a fúria das entidades mais conservadoras (ou precisamente por incitar tais reações). De um ponto de vista mais amplo, este desejo relaciona-se com uma disposição particular, por parte do indivíduo, para a luta pela emancipação face a condicionalismos pré-existentes e pela busca da auto-determinação – uma disposição que poderíamos caracterizar como essencialmente irónica.

Antes de se prosseguir na descrição da relação da ironia com o meio artístico/cultural, importa explicitar, dadas as ambiguidades expectáveis num conceito que tem por essência a duplicidade e a dissimulação, o que se entende aqui por ‘ironia’. Mais do que recurso retórico simples (dizer uma coisa quando se pretende dizer o seu contrário – o tipológico praise-by-blame/blame-by-praise) e diferente do sarcasmo (embora o sarcasmo seja uma das atividades preferidas do ironista), a ironia em causa possui um valor essencialmente ontológico. Neste ponto, Fernando Pessoa, como na maioria dos casos, contribui com um comentário incisivo que constitui um bom ponto de partida para a análise do assunto em questão. Num fragmento póstumo que tem por tema o “provincianismo português”, ele afirma que

É na incapacidade de ironia que reside o traço mais fundo do provincianismo mental. (…) Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment – o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele «desenvolvimento da largueza de consciência», em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não ser provinciano.[i]

Este excerto contém duas ideias que importa sublinhar. A primeira diz respeito à associação da ironia ao conceito de detachment; o ironista é capaz de se “afastar de si mesmo”, isto é, tomar consciência de si mesmo enquanto sujeito consciente numa relação com o mundo; trata-se de um fenómeno reflexivo, um ‘desdobramento’ ou, de acordo a descrição do crítico Paul de Man, “the recurrence of a self-escalating act of consciousness”[ii][2]: uma elevação da consciência a uma segunda ordem na qual possui maior liberdade face aos condicionalismos da sua existência concreta. A segunda é a oposição que Pessoa estabelece entre “ironia” e “provincianismo”. Apesar de não descrever diretamente o que entende por ‘provinciano’, podemos inferir, por contraposição, que esse termo designa a característica de um indivíduo incapaz dessa divisão mental – alguém cuja consciência permanece estritamente voltada para o exterior, incapaz de se debruçar sobre ela própria, o que resulta num auto-conhecimento deficitário.

É o propósito deste texto mostrar que esta antítese ironia-provincianismo pode constituir um instrumento valioso para a compreensão de fenómenos culturais contemporâneos como os acima referidos. Contudo, o fragmento de Pessoa, por si só, não fornece uma explicação suficientemente nítida destes conceitos. Mesmo que juntemos um certo pressentimento intuitivo, que nos leva a tomar um como um tipo de rebeldia esclarecida e o outro como uma forma de ignorância fleumática, a informação resultante é ainda assim pobre.

Uma ajuda valiosa pode ser encontrada em Hegel. Na grande odisseia que é a sua Fenomenologia do Espírito, o filósofo alemão aborda este assunto na secção dedicada ao ‘Espírito alienado de si mesmo’, uma das etapas no processo dialético que conduz a consciência individual ao estado de Espírito Absoluto – momento em que se dá a reconciliação entre o indivíduo e o mundo, self e alien. Lá, o fenómeno da ironia é interpretado como algo benéfico ao desenvolvimento do intelecto humano, sendo considerado um catalisador da liberdade e da auto-determinação individuais. Vejamos como.

Segundo Hegel, o ser humano, numa primeira fase do seu desenvolvimento espiritual, não é consciente de si mesmo enquanto indivíduo autónomo, independente da sociedade na qual está inserido. Ele é completamente determinado pelo seu papel social, e a sua ação não é mais do que uma particularização da ação do coletivo. O indivíduo, nesta fase, é uma mera ‘sombra irreal’[iii], uma entidade numa relação não mediada (i.e. irrefletida) de obediência e reverência para com os costumes e a autoridade social (humana ou divina). Hegel associa este estádio ao mundo grego clássico, que caracteriza metonimicamente através do recurso às personagens Antígona e Creonte da Antígona de Sófocles. Acerca destas, afirma:

 

there is no caprice and equally no struggle, no indecision (…); on the contrary, the essence of ethical life for this consciousness is immediate, unwavering, without contradiction. Consequently, we are not faced with the sorry spectacle of a collision between passion and duty, nor with the comical spectacle of a collision between duty and duty (…). The ethical consciousness (…) knows what it has to do (…). This immediate firmness of decision is something implicit (…).[iv]

 

Posteriormente, com o advento da noção moderna de ‘pessoa’a ideia de um ‘eu’ abstrato e independente em cada indivíduo –, surgem as oposições entre cultura e natureza, indivíduo e Estado, e, consequentemente, a ideia de ‘alienação’. Neste contexto Hegel coloca em oposição dois tipos de consciência, aos quais confere os epítetos ‘nobre’ e ‘ignóbil’. A consciência nobre identifica-se ainda plenamente com o seu meio social, tomando a sua condição de subserviência em relação às instituições sociais como algo natural (i.e. um dado adquirido; a given); a consciência ignóbil (base self), pelo contrário, sente a relação com o seu meio como um peso opressor – a obrigação de viver em função de entidades com as quais não se identifica – e portanto vive num estado de revolta e alienação[v]. Mas este estado aparentemente ignóbil e indesejável representa uma evolução espiritual importante; como Lionel Trilling afirma em “The Honest Soul and the Disintegrated Consciousness”:

 

the base self, exactly because it is not under the control of the noble ethos, has won at least a degree of autonomy and has thereby fulfilled the nature of Spirit. In refusing its obedient service to the state power and to wealth it has lost its wholeness; its selfhood is ‘disintegrated’; the self is ‘alienated’ from itself. But because it has detached itself from imposed conditions, (…) it has made a step in progress.[vi]

 

O que importa, para Hegel, é que o indivíduo ultrapasse uma visão limitada, imediata, da realidade, fundada em conceitos categóricos e inflexíveis impostos por uma entidade externa (o meio social). Ao pretender emancipar o espírito dos grilhões da adesão irrefletida a normas e costumes sociais, Hegel prenuncia, de certa forma, a ‘gaia ciência’ nietzschiana fundada num conhecimento ‘para além do bem e do mal’:

 

neither the actuality of power and wealth, nor their specific Notions, ‘good’ and ‘bad’, or the consciousness of ‘good’ and ‘bad’ (the noble and the ignoble consciousness), possess truth; on the contrary, all these moments become inverted, one changing into the other, and each is the opposite of itself.[vii]

 

A consciência alienada, ou fragmentada, é exatamente aquela que é capaz de, por um lado, achar multiplicidade na unidade aparente, relativizando o que para a consciência nobre – ou ‘honesta’[viii] – é um facto absoluto, e, por outro lado, conciliar os opostos conceptuais que a outra não pode deixar de manter bem afastados. Ora, esta antítese entre as duas consciências traz-nos de volta a Pessoa: a consciência desintegrada ou alienada não é senão uma consciência irónica, e a consciência honesta, por sua vez, é o que o termo “provinciano” pretende caracterizar (“the epithet ‘honest’ is used in its old condescending sense, implying a limitation both of mind and of power”[ix]).

O ironista, fruto dessa “largueza da consciência” de que fala Pessoa, é capaz de se desprender do meio envolvente, observar-se a si mesmo numa posição de afastamento e independência, e através desse desdobramento perceber até que ponto aquilo que tomava como essencial na sua vida é na verdade vão ou ilusório, até que ponto tudo o que a sociedade o condicionou a entender como verdade absoluta é dúbio e relativo. Onde os outros veem preto ou branco, ele perceciona matizes infinitos de cinzento, e, portanto, a realidade que o homem comum, “honesto”, encara com seriedade apenas pode para o ironista ser uma fonte de escárnio e riso – um riso cínico, “tão retorcido como a vírgula entre ‘sim’ e ‘mas’”[x].

A relação do riso com a função desintegrante ou desconstrutiva da ironia – “riso (…) que faz tábua rasa das ilusões e das poses”[xi] – e a associação desta função, por sua vez, à ideia de progresso espiritual são noções que surgem já em Hegel, numa passagem conhecida da Fenomenologia em que a zombaria constitui, para a consciência alienada, um modo de Aufhebung – uma forma de ela superar o caos da sua própria alienação: “The consciousness that is aware of its disruption and openly declares it, derides existence and the universal confusion, and derides its own self as well; it is at the same time the fading, but still audible, sound of all this confusion.”[xii]. Algumas décadas mais tarde, esta noção surgiria na figura de Zaratustra, o herói nietzschiano que a certo momento exorta: “Declarei sagrado o riso: homens superiores, aprendei a rir!”[xiii]. No entanto, Peter Sloterdijk faz recuar esta linhagem de ironistas gaios até Diógenes e ao próprio Buda: “no riso de Diógenes e de Buda quem com ele morre de riso é o meu próprio eu que tudo tomava a sério.”[xiv]

É esse escárnio absoluto, resultante de um conhecimento mais refinado acerca da vanidade e do absurdo da vida social em todas as suas particularidades – esse sorriso retorcido e cínico, que consoante a pessoa pode elevar-se a gargalhada estridente – que caracteriza o ironista, e está presente, de modo mais ou menos manifesto, tanto num Kurt Cobain a sabotar o próprio solo como numa parábase auto-paródica de Deadpool ou de Rick and Morty. Todos estes casos parecem clamar nas entrelinhas: ‘Tudo é falso, pretensioso e phony, e nós não fugimos à regra – somos os primeiros a admiti-lo, a pôr o dedo na ferida e a rirmo-nos disso!’ Por contraste, o provinciano honesto e nobre leva a vida muito a sério – acima de tudo, leva-se a si próprio a sério. A “incapacidade de ironia” não lhe permite pôr em causa os seus propósitos e princípios, e toma como ofensa pessoal qualquer ato de troça de que sinta ser alvo.

Contudo, esta resistência trocista da consciência alienada possui o seu lado lúgubre. A alienação é também fonte de desespero – às gargalhadas diurnas, de natureza cínica ou búdica, segue-se o desassossego noturno, figurado numa das mais longas tradições da poesia ocidental: a expressão das angústias e desventuras do herói alienado que não consegue conciliar a sua sensibilidade com as regras e costumes do seu meio, e por isso vagueia à margem de tudo e de todos, sentindo-se simultaneamente superior e inferior à turbamulta, um pobre diabo “condenado ao riso eterno / Mas que jamais poderá sorrir”[xv]. Para estes poetas, não existe esperança naquilo que para Hegel representa um telos concebível e realizável: a reconciliação com o mundo. O processo hegeliano inclui uma terceira fase – depois da unidade irrefletida e da separação através da alienação, vem o momento de reunificação:

 

The hour that man leaves the path of mere natural being marks the difference between him, a self-conscious agent, and the natural world. The spiritual is distinguished from the natural (…) in that it does not continue a mere stream of tendency, but sunders hmself to self-realization. But this position of severed life has in its turn to be overcome, and the spirit must, by its own act, achieve concord once more. (…) the principle of restoration is found in thought, and in thought only: the hand that inflicts the wound is also the hand which heals it.[xvi]

 

O modo através do qual o indivíduo consegue atingir este último estádio de reconciliação, claro está, é o grande mistério – mistério que se mantém, arriscamo-nos a afirmar, mesmo para quem dedicou toda a vida a estudar o sistema hegeliano (de referir que o termo ‘mistério’ não deve perder aqui a sua conotação religiosa, dada a ligação explícita que Hegel faz entre o seu sistema e a trindade cristã: (1) unidade irrefletida, ou ‘edénica’, com o Pai; (2) separação e atualização no mundo através do Filho; (3) reunificação através do Espírito). Para mais, a história dos últimos séculos não nos deixa grande margem para otimismos idealistas; se fosse possível falar-se de algum tipo de avanço dialético no zeitgeist contemporâneo, esse avanço não passaria, decerto, pela antecipação de uma resolução sintética, mas antes pelo agravamento da antítese self-alien que está na base do fenómeno de alienação. De facto, a alienação parece não produzir outro efeito que não a geração de mais e mais alienação.

No centro deste problema está a natureza essencialmente negativa da ironia. O fenómeno de desdobramento irónico é capaz de desvelar ilusões, destruir preconceitos, realçar ambiguidades, etc., mas não nos aponta um caminho válido; ela expõe todas as inautenticidades em nosso redor, mas não nos dá qualquer ideia acerca do que poderia ser considerado autêntico. Ela funciona como um partido de oposição que, em vez de tomar posições próprias, se posiciona sempre do lado contrário ao do partido no poder. David Foster Wallace leva esta analogia um passo mais longe no ensaio “E Unibus Pluram: Television and U.S. Fiction”, comparando a ironia a um exército rebelde em guerra com o regime corrupto num país do terceiro mundo:

 

Rebels are great at exposing and overthrowing corrupt hypocritical regimes, but seem noticeably less great at the mundane, non-negative tasks of then establishing a superior governing alternative. Victorious rebels, in fact, seem best at using their tough cynical skills to avoid being rebelled against themselves – in other words they just become better tyrants.[xvii]

 

Como consequência desta essência negativa e tirânica, a ironia, nos indivíduos com maior predisposição para o seu cultivo, tende a sofrer uma de duas mutações. Na primeira variação, a ironia acaba por se tornar inócua, devido à sua absorção pelo meio social que constituíra originalmente o alvo dos seus ataques. Isto acontece quando a ironia se transforma num fenómeno de massas e as instituições, num golpe de auto-defesa, a adotam para si mesmas. Deste modo, ela perde o caráter rebelde que a tornava numa potência de emancipação espiritual individual, e torna-se um mero adereço de moda, um acessório do gosto da época. Quando a cultura popular de uma sociedade incentiva ativamente a prática de ironia e a zombaria da tacanhez simplória de quem não tem a capacidade intelectual para constatar o absurdo e renegar o valor de todos os valores, o indivíduo torna-se cínico por pressão social: não é diferente do bully que goza com os mais pequenos para que os maiores não gozem com ele. O indivíduo irónico, neste contexto, não é mais que uma consciência honesta dos tempos pós-modernos – um provinciano da metrópole, por assim dizer. E esta usurpação institucional, claro está, não é desprovida de interesses particulares. A grande preocupação de Wallace no seu ensaio é mostrar de que modo as instituições (nomeadamente aquelas relacionadas com a televisão, que era nos EUA dos anos 90 a janela para o mundo social por excelência) subjugam o indivíduo precisamente ao convencê-lo da sua independência, através de lisonja direcionada ao seu instinto irónico. Wallace dá como exemplo um anúncio auto-paródico da Pepsi, acerca do qual comenta:

 

In contrast to a blatant Buy This Thing, this Pepsi commercial pitches parody. The ad’s utterly up-front about what TV ads are popularly despised for doing: using primal, flim-flam appeals to sell sugary crud to people whose identity is nothing but mass consumption. This ad manages simultaneously to make fun of itself, Pepsi, advertising, advertisers, and the great U.S. watching/consuming crowd. In fact the ad’s uxorious in its flattery of only one person: the lone viewer (…). The commercial invites complicity between its own witty irony and veteran-viewer Joe’s cynical, nobody’s-fool appreciation of that irony. It invites Joe into an in-joke the Audience is the butt of. It congratulates Joe (…) on transcending the very crowd that defines fim, here. This ad boosted Pepsi’s market share thorugh three sales quarters.[xviii]

 

No caso da segunda mutação, a ironia evolui de modo selvagem, destruindo tudo no seu caminho, até mergulhar o sujeito num niilismo letárgico e misantrópico em que toda a ação e interação social cessa porque nenhum aspeto da realidade é tido por seguro, verdadeiro ou autêntico. O Homem do Subterrâneo de Dostoievski, com o seu cinismo absoluto, é a figura máxima deste estado de alienação extrema, que se manifesta também no spleen de Baudelaire, no cansaço de Álvaro de Campos ou no “Cântico Negro” de José Régio. Levada às últimas consequências, esta ironia, quando já nem toda a realidade é suficiente para saciar o seu apetite infinito, começa a morder a própria cauda, mergulhando o sujeito numa espiral infinita de negações e auto-desmentidos. Este é o momento em que a consciência irónica sofre um novo desdobramento e, a partir desta nova posição, descobre no ato irónico as mesmas pretensões sub-reptícias, os mesmos condicionamentos sociais irrefletidos, que originalmente tinha por missão destacar e erradicar. Este processo não tem fim, podendo degenerar numa regressão ad infinitum que, a certo ponto, torna-se indistinguível de um estado de loucura.[xix]

Estes são os perigos que ameaçam uma cultura na qual predomina cada vez mais a auto-consciência, a obsessão com a auto-determinação e o horror à naiveté. A ironia, percebemos agora, não é o instrumento de libertação e transcendência espiritual que ao início aparentava ser. Procuramos adotar a máxima socrática segundo a qual ‘uma vida não examinada não vale a pena de ser vivida’, e esforçamo-nos por evitar cair na ignorância e no opróbrio da tacanhez provinciana, mas verificamos, enfim, que a escada para a auto-determinação é como a de um quadro de Escher, e que o destino de quem empreende a subida se reduz a duas possibilidades: ou parar pelo caminho e deixar-se iludir de novo, ou caminhar em círculos até cair de exaustão.

Perante este cenário desanimador, talvez o melhor a fazer seja procurar a virtude no último lugar em que esperaríamos encontrá-la. Num mundo às avessas em que a irreverência e a subversão, quando não atingem níveis patológicos e autofágicos, se tornam inertes em função de passarem de exceção contestatária a norma cultural, a única rebeldia saudável poderá eventualmente consistir na abdicação do próprio impulso rebelde. Esta parece ser a ideia de Wallace, que termina o seu ensaio com uma apologia da simplicidade não irónica, profetizando uma nova geração de ‘rebeldes anti-rebeldes’:

 

The next real literary “rebels” in this country might well emerge as some weird bunch of “anti-rebels” (…) who have the childish gall actually to endorse single-entendre values. Who treat old untrendy human troubles and emotions (…) with reverence and conviction. Who eschew self-consciousness and fatigue. These anti-rebels would be dated, of course, before they even started. Too sincere. Clearly repressed. Backward, quaint, naive, anachronistic. Maybe that’ll be the point (…). Real rebels, as far as I can see, risk things (…). The new rebels might be the ones willing to risk the yawn, the rolled eyes, the cool smile, the nudged ribs, the parody of gifted ironists, the “How banal”. Accusations of sentimentality, melodrama. Credulity. Willingness to be suckered by a world of lurkers and starers who fear gaze and ridicule above imprisonment without law.[xx]

 

O que Wallace faz aqui é, no fundo, o elogio de um ‘provincianismo esclarecido’um modo de expressão honesto, não num sentido primário ou pré-irónico, mas sim num sentido ‘meta-irónico’, isto é, já consciente do vazio a que se reduz uma postura puramente crítica e negativa. Esta consciência tornará preferível um compromisso entre o elemento positivo e o negativo, mesmo que isso implique a permanência voluntária num estado de erro, cedendo de boa vontade a princípios ou costumes que se sabe à partida serem desprovidos de valor em absoluto. Esta ideia tornar-se-á mais clara se mencionarmos alguns exemplos de casos na cultura recente que conseguem alcançar essa justa medida entre o elemento irónico-negativo e o afirmativo-positivo.

House, M. D. pode atrair o espectador, a princípio, pelo humor niilista, pela ironia extrema de um médico que não atribui qualquer valor à vida humana, pelas alfinetadas sarcásticas incansavelmente desferidas pelo protagonista em todas as personagens à sua volta que têm a ousadia de pretender defender algum valor ou princípio, mesmo se esse princípio for simplesmente realizar o seu trabalho; no entanto, a razão pela qual não nos fartamos ao fim de dois ou três episódios consiste no facto de a série transcender esse estádio negativo, explorando, por um lado, as razões trágicas que motivam a atitude negativa por parte do protagonista homónimo, e mostrando, por outro, que há nele um fundo positivo de empatia, que se manifesta quando, devido a quaisquer circunstâncias, um colega atinge um estado sério de desespero – nesses momentos, House abandona a postura de detachment sarcástico e é, por vezes, o único verdadeiramente capaz de dar o apoio necessário à personagem em causa. De modo semelhante, os recentes filmes do Deadpool funcionam tão bem porque, para lá dos estilhaços de fragmentação sarcástica, parabásica e auto-paródica disparados em todas as direções, existe na personagem de Wade Wilson um núcleo positivo que impede a sua dissolução num negativismo absoluto e faz com que os espectadores se consigam identificar com ele e se importem com o que lhe acontece ao longo da história: a relação amorosa, sincera e irrefletida, com Vanessa.

Poderemos, portanto, falar de amor e empatia enquanto elementos de mediação entre ironia e provincianismo? Será aí que vamos encontrar a cura para a proliferação autofágica da ironia, o fármaco capaz de relaxar o lábio retorcido e o sobrolho perpetuamente franzido do cínico? Eis o pastelão profundamente anacrónico e terrivelmente sentimentalista que gostaria de deixar aqui suspenso em jeito de conclusão.

Texto de António Marques Pereira

Notas:

[i] Pessoa, Fernando, Textos de Crítica e de Intervenção, Lisboa, Ática, 1980, p. 159.

[ii] Man, Paul, “The Retoric of Temporality”, Blindness and Insight: Essays in the Rethoric of Contemporary Criticism, Minneapolis, University of Minnesota Press, 2010, 2ª ed., p. 218.

[iii] Hegel, G. W. F., Hegel’s Phenomenology of Spirit, trad. A. V. Miller., London, Oxford University Press, 1977, p. 279.

[iv] Ibid., pp. 279-280.

[v] Ibid., p. 305.

[vi] Trilling, Lionel, Sincerity and Authenticity, Cambridge, Harvard University Press, 1972, p. 38.

[vii] Hegel, G. W. F., op. cit., p. 316.

[viii] Ibid., 317.

[ix] Trilling, Lionel, op. cit., p. 38.

[x] Sloterdijk, Peter, Crítica da Razão Cínica, trad. M. Resende, Lisboa, Relógio d’Água, 2011, p. 194.

[xi] Sloterdijk, op. cit., p. 194.

[xii] Hegel, G. W. F., op. cit., p. 319.

[xiii] Nietzsche, Friedrich, O Nascimento da Tragédia / Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral, trad. H. H. Quadrado e T. R. Cadete, Lisboa, Relógio d’Água, 1997, p. 20.

[xiv] Sloterdijk, op. cit., p. 194.

[xv] Baudelaire, Charles, “L’Héautontimorouménos”, œuvres complètes vol.I, ed. Claude Pichois, Paris, Gallimard, 1975, p. 78, tradução minha.

[xvi] Hegel, G. W. F., Hegel’s Logic, trad. J. N. Findlay, Londres, Oxford University Press, 1975, p. 43.

[xvii] Wallace, David Foster, “E Unibus Pluram: Television and U.S. Fiction”, Review of Contemporaty Fiction 13:2 (Illinois, 1993), p. 183.

[xviii] Ibid., 179.

[xix] Cf. De Man, op. cit., pp. 214-216.

[xx] Wallace, op. cit., pp. 192-193.