Anatomia de um Amor Virtual: Olhar o Vácuo.

Tomás Pereira Botelho
Atenas, Verão de 2024

“É possível habituar todas as grandes massas ao kitsch. E depois é fácil afirmar que elas não entendem nem querem mais nada”

Heinrich Mann.

Os americanos pareciam já não estar unidos por crenças comuns mas por imagens comuns: o que nos liga passou a ser o que testemunhamos.

David Foster Wallace.

A cerca de 200 metros de mim mora uma pessoa grega com que costumava conviver. O que não será de surpreender, considerando que moro em Atenas. Ela trabalhava num café, este também situado a poucos metros da minha casa. Ela tinha por hábito sair com raparigas que conhece ou em contexto de trabalho, ou via apps de encontros. Alardear não consiste do seu vocabulário; resume-se a uma existência proporcional a rumos de outrora, em que o culto do narciso não era tão exponencial. Ocasionalmente conheçia uma dessas raparigas: eram pessoas interessantes, curiosas e cujas afirmações prosaicas revelam a profunda crise da inexistência de condições sociais e românticas estáveis e alicerçadas, com que as gerações contemporâneas se debatem. Não o explicitam; são insinuações, desabafos contidos, murmúrios agitados pelo consumo de desinibidores[1]. Queremos todos descobrir naquilo que nos tornámos após as sucessivas crises financeiras e amorosas; e tudo o que a nossa vida conheceu foram, invariavelmente, crises.

Noutro ponto da Europa, uma amiga próxima recorre às revoluções tecnológicas para me comunicar, via Instagram, que tem uma namorada. “Ela é libanesa, mais nova que nós, mas mais consciente. Viver no Líbano… Consegues imaginar?” A minha amiga mora em Lyon, onde conheceu a namorada – recorda-me de imediato de Virginie Despentes e das suas vivências em Lyon. A pergunta retórica da minha amiga portuguesa não me abre espaço para o pensamento seguinte, uma bolha de texto encravada na engrenagem da comunicação, um “a escrever” fantasmagórico. Apenas li sobre o tipo de conflitos e traumas um lugar como o Líbano possa inflingir, e há limites para o que a empatia antropológica nos permite conceber. Descobri, ao longo de mais mensagens, que se tinham conhecido através do Tinder, que tinham saído juntas algumas vezes, um percurso em nada peculiar considerando o ano em que vivemos, simultaneamente representativo da facilidade com que se estabelecem relações com pessoas fora do nosso espectro cultural, identitário, nacional, social, ou até mesmo do nosso panorama fantasioso. É, igualmente, representativo da vida pós 30 anos de portugueses que se encontram fora do país; comunicamos por breves trechos de como estás, como vai a vida, quando me vens visitar, e novidades. Fragmentos anacrónicos mas carregados de simbolismo interno, como se cartas de Rilke a um jovem poeta as pudéssemos comparar. As efusivas conversas sobre o estado social e o estado a que chegámos são guardadas para quando nos encontramos, um fogo que absorve, como lenha que o alimenta, as ocasionais notícias do Público, Jornal de Notícias ou SIC que partilhamos. Ao longe, não vemos apenas como os nossos modelos românticos se expandiram (ou contraíram, se foram pessoas que preferem manter-se na companhia da língua materna), mas também nos indignamos face a pobreza de espírito de um Portugal sôfrego por regressar às suas raízes salazaristas.

De Portugal, mais uma vez recebia mensagens no Instagram: outra amiga conta-me como conheceu o marido, um pintor japonês. Conhecera-o não numa aplicação de encontros, mas numa aplicação de aprendizagem de línguas, onde frequentemente costumava ir para conversar com humanos fluentes em japonês (fossem eles japoneses ou não, contudo, ditaria a estatística, que o mais provável era que acabasse por conversar com, efectivamente, um japonês). Desconheço mais detalhes da história, ou se os conheço, não vejo necessidade de os partilhar. O marido diz-me que ler Mishima em japonês é uma experiência estruturante, e que as traduções não nos transportam da mesma maneira. Tomo uma nota mental de que terei que, eventualmente, aprender japonês.

É um percurso emocional palindrómico. Saudades. Procura de ligação. Abrir a aplicação de encontros incessantemente, ou ter as notificações activadas e não nos conseguirmos desligar da necessidade de verificar, a cada segundo, se alguma mudança ocorrera. Uma outra amiga grega, esta numa espécie de relação de osmose com um rapaz algo totó[2], confidencia-me que tem medo que os momentos lhe escapem, que receia estar a perder algo significante; explico-lhe que envelhecer é compreender que não somos omnipresentes, medimos as consequências e optamos. De que vale ter tanta liberdade de escolha se não recorrermos ao acto de escolher? O seu telemóvel apita: mais uma notificação de alguém a fazer algo algures na cidade de Atenas. O seu semblante torna-se reservado; quem lhe dera ser feita de algo imaterial e suster a consciência espalhada por uma cidade.

No Inverno de 2022, após uma separação consideravelmente traumática, brutal e negligente, resolvi, pela primeira vez na minha – ainda – curta vida recorrer a uma aplicação de encontros. Recuso-me a divulgar os ecos privados que me iam na cabeça, mas uma aproximação matemática colocar-me-ia no espectro do desespero e depressão. Não me era particularmente alegre apresentar-me numa aplicação de encontros; sempre preferi conhecer pessoas que pudesse olhar nos olhos, embora, num passado adolescente, tenha sido grande utilizador da rede HI5, mas esse tópico será conversado mais tarde, talvez nunca.

Foi, pois, com um conjunto de auto-reprimendas e auto-piedade, que marquei encontro com uma rapariga proveniente de um país europeu que tinha recentemente sido invadido[3]. Passada uma inexorável fase exploratório do Tinder, onde me senti exposto como um frango de campo, muito orgânico, muito amigo do ambiente, no talho do meu velho bairro, acabei por, a partir de uma amostra de barro, me transformar na estatueta afável dos encontros cegos. Não era tanto a falta de confiança que se sobrepunha à lógica da procura: não obstante a depressão associada à ruptura de uma relação de três anos, ainda era capaz de me afirmar como um bom partido, um homem carinhoso e cuja imagem sempre se aprimorou como cuidada. Era a infalível e tenebrosa despersonificação que decorria do acto de me registar e transfigurar num perfil bi-dimensional captado unicamente por um meio abjecto, por sua vez transposto para objectos telefónicos com acesso à internet espalhados pela região de Lisboa. Cessara a humanidade, assim como a humildade. Cessara a “representação do eu na vida quotidiana” que Goffman encetara como ponto de partida do seu pensamento sociológico. Cessara, a privacidade auto-imposta.

Recordo-me de, enquanto preenchia o perfil virtual, de me indagar se isto seria uma solução para algo inconcebível mas que perdurava, ou um novo problema em si mesmo. Mais tarde vim a descobrir que, apesar de nunca ter sofrido do síndrome que Father John Misty, com poesia peremptória, categoriza como “Eventually the dying man takes his final breath / But first checks his news feed to see what he’s ‘bout to miss”, ou seja, aquela necessidade fisiológica de estar sempre acompanhado do dispositivo nas mãos[4]; o resultado de me ter inscrito numa aplicação de encontros foi, infelizmente, o surgimento dessa necessidade maníaca e neurótica de ter que verificar se tinha alguma mensagem no Tinder, dado que abomino activar notificações. Tal como um Woody Allen que precisa permanentemente de ter razão, ou corrigir membros de uma fila de cinema que debitam Marshall McLuhan, também eu me tornara num ser encurvado, cinzento e histérico que corria da casa-de-banho para verificar as mensagens antes de me ausentar por vinte minutos enquanto condicionava o cabelo e fazia a barba[5].

Várias tentativas infrutíferas depois, e o dispêndio de uma quantia equivalente à compra de um novo livro, com o objectivo de puder gostar de perfis de raparigas todo o dia, quando quisesse, encetei conversa com, talvez, quatro ou cinco raparigas[6]. Destas quatro ou cinco consegui obter respostas não monossilábicas talvez de duas, e marquei um café com uma, a tal que supra-mencionei. O processo de selecção era, em certa medida, um duplo processo de selecção: podemos gostar do perfil da pessoa, mas essa pessoa tem de gostar de volta, tal como podem gostar do nosso perfil e nós teremos de gostar de volta – ou não. Só através desse embate de gostos simultâneos é que a oportunidade de conversa surge (algo que sempre me confundiu um pouco, admito; não será o conhecimento embalado pela conversa, e não a conversa um efeito secundário do conhecimento aleatório?). Postas as coisas de forma lógica: lá porque gosto de cinema isso significa que automaticamente só posso falar com a rapariga Alfa se ela gostar de cinema também? E se o seu universo cinematográfico consistir de Marvel ao passo que o meu consiste de Sorrentino? Ainda damos “match”, ou estamos destinados ao infortúnio?

A espantosa alegoria, e subsequente ironia, do filme Fingernails, consiste na eliminação desta litania enfadonha-romântica de termos de, por pura serendipidade, encontrar a agulha no palheiro das ofertas que o Tinder nos proporciona. Ainda que o argumento do filme reitere que o vazio da certeza da relação – processo obtido pela remoção de unhas e consequente testes realizados – pode surgir como uma armadilha de tédio, a alternativa, para um homem heterossexual de vinte e nove anos de infinita oferta mas parca correspondência, também não é necessariamente um processo de adulação e exaltação. Frequentemente caía sobre o sofá em vazios existenciais e piscinas de solidão. A metáfora das paredes a caírem sobre nós, a fecharam-se sobre nós, tornou-se, na medida do bizarro, a realidade nata e quotidiana, incrementando os paroxismos da depressão e da alienação prolongada fruto de uma ruptura relacional.

Não me recordo quando é que apaguei o Tinder. Conto somente com um encontro infrutífero. Para muitos azar; no meu entender o investimento mínimo fora um investimento a mais.

Dubravka Ugresic, menciona que “é graças à tecnologia digital, não a Marx, que o homem comum se aventurou no comunismo”; os Instagrams, os Facebooks, toda a panóplia de coisas que fazemos na Internet, consagraram uma libertação pessoal de magnitudes que, porventura, ainda não compreendemos (se bem que sinto que talvez o iremos começar a compreender quando estudarmos a tendência dos votos de eleições realizadas em 2024). Criamos o nosso conhecimento linear, os nossos factos dogmáticos – em detrimento das realidades complexas e cinzentas, o que acarreta perigos democráticos e intelectuais.

Nesse sentido, uma das obras seminais para compreender a Internet provém das mente de Daniel Miller (antropólogo britânico) e de Don Slater (sociólogo britânico), uma obra de pesquisa e análise cujos pilares assentam em três premissas / conclusões:

A – A internet pode ser estudada não como tecnologia em si mesma (o livro foi editado em 2000, um momento de grande crescimento financeiro e económico graças ao primeiro boom do dot com) mas também como um conjunto de práticas sociais e culturais, mapeando não apenas geografias virtuais, mas também geografias físicas;

B – Possibilidade de surgirem novos modelos de trabalho de campo etnográfico e novas formas de imersão nas estruturas sociais (porventura trabalhar num local estático durante anos a fio deixará de ser a norma);

C – A criação de etnografia / pesquisas colaborativas, que considerem as especificidades de conhecimento de múltiplas disciplinas / áreas de produção (algo que, actualmente, é inevitável)

Do livro nasce uma história de investigação exemplar, referente à forma como famílias em Trindade se mantêm com contacto com outros familiares na Grã-Bretanha e Estados Unidos da América, em particular mães e filhas. Consequentemente, geram-se novos modelos de comunicação, idiomas e vernáculos inovadores e ícones / simbolismos identitários. Graças ao advento da comunicação virtual, a mensagem é transmitida a partir de um texto elaborado em papel, para uma série de baques num teclado, para alfabetos que não conseguimos alcançar e entrelaçar nos dedos; estes somente existem como iconografias no éter, moldando, manobrando e mantendo as relações afectivas entre famílias distantes.

Daniel Miller e Horst, por sua vez, editam, mais tardem, um livro sobre modelos de pesquisa etnográfica na Internet, agregando ensaios que não só apresentam inovadores utilizações, como também retratam alguns dos temas incontornáveis para se pensar e enquadrar a Internet em si. Porventura o mais frisante e hodierno texto é da autoria de Tom Boellstorff, registando um prolífico e fundamental argumento sobre a aparente dicotomia entre o que é virtual e o que é actual (real). O autor defende que conceptualizar o virtual e o actual como mundos onde as barreiras se esbatem e que se assimilam é perigoso, assim como estipular que estas esferas de operação se afastam cada vez mais uma da outra, dado que metáforas espaciais, inclusive, impedem de representar a totalidade de conexões materiais e semióticas entre ambos. Como tal, propõe estruturar o pensamento sobre o digital em modos de indexicalidade. Um símbolo de indexação comum é o de que fumo é a indexação de fogo, contudo fumo não representa fogo tão bem quanto a própria palavra “fogo” o representaria numa história, ou numa alusão a acontecimentos de um determinado dia. Desta forma, o fumo é conectado espacial, temporal e fisicamente a outro acontecimento, outro conceito / fenómeno, derivando o seu significado precisamente desta ligação, e não da sua presença linguística. Denotando que os contextos de indexação de interacção são, pois, dinâmicos, Boellstroff considera-os como modelos para repensar a etnografia digital, acrescentando que estes processos de nos movimentarmos entre espaço, tempo e realidades sociais já não se encontram alicerçados somente no offline, mas também no online.

Consequentemente, durante os meses de escrita da minha tese de mestrado em Antropologia Social e Cultural, bebi frequentemente das proposições de Boellstorff, considerando que o meu objecto de estudo eram videojogos e comunidades online de “multiplayer” RPG’s[7]. Descrevi mundos de indexações; em cenários de aparente osmose e co-dependência, foi curioso verificar até onde é que os teoremas antropológicos de Boellstorff aguentariam. Eventualmente apercebi-me que, de maneira a conseguir ilustrar e descrever correctamente a pletora simbólica, imaterial e identitária da conexão de um jogador e um videojogo contemporâneo, que indexações não bastam, mas é necessário, também, identificar os pontos de contacto. Pontes que unem duas esferas paralelas[8], como é que o virtual nos alberga, e como é que o actual nos confunde. Consequentemente assistimos à equiparação ou equivalência de narrativas e padrões de comportamento psico-cultural entre a rotina actual e as rotinas virtuais. Muitos jogadores sustentavam e investiam emoções, dinheiro e tempo em relações somente virtuais com outros jogadores. Clarifico: não era o jogador que se envolvia romanticamente com o outro jogador, eram os seus avatares, extensões virtuais, ampliadas, contextualizadas e pessoais, que abarcavam a totalidade do amor e da relação. “Dizer que as massas querem ser divertidas e por isso entender que o que as massas querem é lixo”, como escreveu João Barrento, significa também compreender que as massas desejam algo indiscritível, que existe para além dos padrões das suas realidades anafadas e enclausuradas. A alternativa virtual não invalida a actual: pelo contrário, há jogadores polígamos que namoram virtualmente e fisicamente. O amor é para as massas, e o virtual é o campo onde nos processamos e nos tornamos contemporâneos.

A questão perentória prende-se, desse modo, não com a dualidade entre actual e virtual, tal como Boeslstroff expõe, mas com a ignonomia de todo o processo de captivação, romantificação – em determinados casos de perversão – e sexualização das trivialidades do processo de engate, o nodal do conhecimento amoroso. Se, neste momento cósmico e temporal, a tecnologia de encontros não passa, em certa medida, de entretenimento e amparo aos nossos desejos de combate à solidão e voracidade sexual, para que finalidade teórica ou poética é que nos dirigimos? Ver memes? Ou vídeos do Tik Tok? Namorar com figuras nos nossos ecrãs? Incentivar antagonismos?

Infelizmente, assume-se amiúde que seja desses recursos tecnológicos que retiremos a nossa paisagem conceptual e respectiva interpretação. É lá onde somos instruídos dos “icks” femininos, do ódio “incel”, da pasmaceira da toxicidade masculina e como ela prolífera como pestilento lençol sobre quase todos; dos lugares maravilhosos de cada país que desconhecemos, dos casais multiculturais que lutam contra a endomitrose, que se divertem com as diferenças linguísticas de cada um, que apresentam – (ou representam?) – os seus utensílios favoritos, sejam de culinária ou brinquedos sexuais, e toda a panóplia de opiniões, interjeições e postulações sobre como manter uma relação, saúde mental e a soma das narrativas em voga. O novo mundo é composto por teorias sobre tudo e um conjunto de tudólogos que se definem como criadores de conteúdo[9].

Somos livres para nos apresentarmos como queremos nas redes sociais e em particular nas aplicações de encontros: ignóbeis, mentirosos, vis, adulterados por camadas de filtros, verdadeiros, retocados, modificados, apreensivos, dedicados à causa do romance, dedicados à causa do sexo, seres multi-celulares e multi-disciplinares. Conquistámos o reconhecimento concedido apenas aos grandes humanos imortalizados em estátuas e nomes de ruas: todos merecemos admiração e likes. Somos narcisos que bebem água como um husky sedento. Recriamo-nos como sílfides, figuras indistintas que pairam sobre a nossa imaginação.

O que se traduz, invariavelmente, numa reconfiguração animalesca de conceitos amorosos, sexuais e tudo o que tem a ver com a busca de parceiros. O humano comum e banal também merece ser amado, nem que seja por às duas e meia da manhã numa booty call, a mensagem sugestiva de “como é que estás?, que invariavelmente terminará numa sessão de sexo desconsolada.

Paulatinamente dirigimo-nos para a re-interpretação do romance e do processo de conhecimento amoroso. Não que já não tenhamos atravessado muitas destas re-interpretações: várias que registaram avanços culturais e sociais significativos. Mas tal como a extinção em massa, por vezes o que se apaga é a vida hodierna e edénica.

Há coisas que são sempre diferentes por fora, mas sempre semelhantes por dentro. João Barrento refere que os seus cadernos de escrita e anotações assim se constituem. As aplicações de encontros integram esta regra paradoxal: uma vez integrado numa, pouco as difere.

Foi numa festa queer repleta de crianças de dezoito e dezanove anos que, a mesma amiga grega com quem ocasionalmente convivo, me desafiou a me inscrever na aplicação de encontros Hinge, uma variante, uma linha temporal paralela. Acedi à ideia, não tanto por esta me agradar, mas por me encontrar perigosamente próximo do meu aniversário, e como tal, sofrer de um aguda e incontrolável pânico identitário. Pessoalmente odeio fazer anos; de que é que vale celebrar a progressão quando esta é uma ilusão? O nadir da progressão não é individual, mas colectivo. Similarmente, o propósito da inscrição numa nova aplicação de encontros não é singular, mas caracterizado pela pertença a uma díade.

Hinge, um formato análogo ao Tinder, pouca evidencia em termos de distinção, exceptuando a capacidade em introduzir segmentos textuais que nos conferem versatilidade para além da fotografia e do nome. Não somos exclusivamente uma imagem, pois há a possibilidade de engendrar, a partir de uma escolha predefinida de ideias / questões, respostas – verdadeiros anzóis com minhocas, sejamos verídicos – que nos permitem colher a simpatia textual de outros utilizadores. Podemos responder a estas perguntas ou factos pessoais: “adoro… pizza / quero ir… a Itália / o que mais gosto de fazer…viajar!”[10], uma panóplia de teoremas supostamente engendrados para nos conseguirmos expor a um nível socialmente aceitável. O diálogo é colocado em evidência, mas este permanece curto. Algures, num programa de televisão, o escritor Jonathan Franzen insurgiu-se contra o Twitter: “como é que é suposto escrever algo com significado em 140 caracteres?”. Não creio que ele aceitaria o Hinge, na medida da impossibilidade de desenvolvimento; diálogo abafado por códigos de uma aplicação. Não obstante a imaginação de muitos utilizadores de espaços curtos de diálogo, não compreendo em que medida é suposto um ser humano apresentar-se na base de 170 ou 200 caracteres. Equiparar um engate ao tamanho de um anúncio; vendo relação de longa duração, comprem hoje e recebam dois aspiradores!

Isto é a primeira instância; mais tarde poderemos resumir o diálogo por via do sistema de mensagens internas da aplicação. Contudo, se num primeiro momento de contacto o que temos a apresentar são duas verdades e uma mentira[11], porventura a sistematização do enigma e mistério prevaleça, ao passo que definha a complexidade e o fluxo de idiossincrasias que nos evidenciam. A dignidade da primazia, o tom escarlate dos famélicos por amor devoto, ou amor corrupto. A formatação paulatina e gradual da nossa personalidade virtual tem, inquestionávelmente, o condão de nos re-configurar enquanto detentores de complexidades, mas que andam a sofismar os raciocínios de segundos e terceiros. Não pretendo argumentar que a produção de mistério e / ou frases piadéticas não sejam fundamentos cruciais para a projecção de compreensão e identidade, apenas que deve persistir um fundo de apreensão ao nos apoderarmos da página de mais outro ser humano com quem vamos estabelecer contacto por via de um número limitado e reduzido de palavras. O ciclo comportamental das aplicações de encontros amorosos não prima pela complexidade, mas sim pela desenvoltura.

O que é fanérico, porventura transversal, aos organismo das aplicações de encontro, é a oferta variada e a subjacente questão temporal. É rápido conectarmo-nos com alguém através de meia dúzia de frases ou gestos de polegares. É fácil. Tergiversar todo o senão e ambiguidade do contacto directo, actual. A sublimidade do virtual é o evitar o imediato; temos tempo para considerar, tempo para explorar e decidir, enquanto, paradoxalmente, decidimos rapidamente, em segundos, se queremos estabelecer contacto ou não com A, B, Z, G ou o J com os músculos preponderantes.

Apesar de estar consciente de tudo o que discorri, acabei por instalar o Hinge. Coloquei o meu telemóvel em experientes mãos gregas e delas nasceram um perfil com frases que, embora não me definissem, eram consideradas pela cultura de engate como bons anzóis.

Primeiro a despersonalização, depois a desmaterialização.

Ao passo que o Tinder me deixou perturbado pela travessia de humano num contexto físico e temporal a mais uma linha numa grelha excel a ser preterida ou selecionada, no Hinge percepcionei a transfiguração do meu ser. Um estado liminal, incaracterístico, construído exclusivamente para os fins almejados. Durante duas semanas deixei o processo desenvolver-se em piloto automático, recorrendo ao fenómeno dos gracejos boçais e padronizados. Como uma boa calculadora, debitava fórmulas em nada prosaicas ou embelezadas, apenas princípios fundamentais generalistas.

Vi tudo: homens jovens que ficam precocemente carecas mas têm cara de criança e que compensam indo ao ginásio demasiadas vezes e tentado deixar crescer a barba, mas por serem jovens acabam com um relvado de pêlos púbicos, de corpo, certamente exaurido de tanto esforço, que não se assemelha tanto a uma armadura automatizada, mas antes ao resultado de uma invasão de quistos megalómanos; mulheres de formosura padronizada, cortes de cabelo sofríveis e a invariável fotografia de biquini. Todos gostam de pizza. De Netflix. De viajar – mas para onde é que tanto viajam, e com que dinheiro?

Julguei estar a ser tendencioso. Como bom antropólogo optei por entrevistar um largo espectro de amigos e conhecidos para desvendar os parâmetros da oferta. Uma conhecida sueca informou-me que a diferença entre os perfis masculinos suecos e gregos residia singularmente na cor de cabelo predominante: as fotografias de músculos sobre-desenvolvidos assombrava-a em ambos os recantos europeus. Um amigo português revela-me que opta essencialmente por mulheres com fotografias onde seja visível um bronzeado: “significa que são activas”. Uma amiga norueguesa confirma que as mulheres com quem contacta no Tinder se dividem em duas tendências: com piercings, tatuagens e cabelos coloridos, ou demasiado bem vestidas. Outra conhecida grega afirma estar saturada de receber mensagens de homens em tronco nu: “só dizem verborreias”.

Acabei por conversar com uma mulher turca que estou estudava em Princeton sobre marxismo. Combinei um encontro com uma mulher grega que criava banda desenhada. Esse foi o princípio do fim. Passado duas semanas do encontro resolvi voltar à segurança da não-presença. Apercebi-me que a replicação, e não a adoração, é o objectivo primordial do amor virtual.

Pouco depois de remover o Hinge do telemóvel, tive o prazer de ter sido o companheiro de uma mulher grega. Nos princípios da relação contei-lhe a história sobre o encontro com a pessoa que fazia banda desenhada, e como, face um pedido sexual que envolvia items que eu não possuía, ela afirmara, séria e obtusa, que “um homem tem sempre de estar preparado para tudo o que uma mulher possa desejar”. A companheira grega riu, onírica.

Dias mais tarde, pediu-me algo em casa – tofu? vinho? um tipo particular de massa? não me recordo – e ao afirmar que não possuía tal coisa em casa, ela repetiu as palavras, com a incomparável bonomia que a sua bondade fazia proliferar. Não me recordo do que respondi; certamente ter-lhe-ei dado um beijo, ou nos sublimes lábios, ou na testa pálida.

Cortara as asas das aplicações, impedindo-as de participarem em voos de atracção; agora dançavam em torno dos meus tornozelos, como insectos a mendigar, cada uma desejando a ribalta sob a forma de uma história de vida. Tal como nos Paradoxos de Zenão, a cultura de engate virtual é fabricada de uma realidade única e imutável: nem todo o desejo é correspondido, e mesmo quando é, nunca saberemos se será verídico até a clássica antiguidade do olhar for interpretada.

É com alguma frequência e nostalgia que converso com a minha amiga de Lyon, a qual me recorda sempre de Virginie Despentes. Creio que também ela é fã da Virginie, embora nunca tenhamos abordado a autora directamente; mas estudámos juntos e ambos possuímos a mesma edição de capa dura de “The Death And Life Of Great American Cities”, da antropóloga Jane Jacobs. Ambos lemos o Le Monde e outros jornais similares, pelo que deduzo que, algures na sua vida, também ela se tenha deparado com Virginie Despentes.

A autora francesa, na sua magnífica obra “King Kong Theory”, reflecte sobre a violação de que foi vítima. As palavras surgem naturalmente, um desencadear de fúria da minha parte por ser homem, e, consequentemente, ser o agente primordial deste tipo de violência sexual. Recordo-me de algumas pessoas com que namorei que foram, igualmente, vítimas ou de violação, ou de violência sexual. Faço um rápido inventário mental de quantas pessoas com quem me dou que sei que sofreram nas mãos de homens heterossexuais sem consciência de limites ou respeito. Concluo, com tristeza, que representam cerca de 80% das pessoas que conheço.

Depreendo, a partir desta linha de pensamento, que a tecnologia de encontros tem amplificado este mal, ou pelo menos a sua probabilidade, não tanto por incorrer em alteração de processos – já escrevia Annie Ernaux que a sua mãe não a deixava sair com rapazes com medo que a filha fosse engravidar – mas pela pluralidade de oferta e facilidade de conexão. É tão fácil saírmos com alguém com quem acabámos de trocar um gosto.

Mais tarde, na sua obra, Virgienie Despentes afirma que há poucos homens que escrevam, com seriedade e honestidade, sobre os efeitos da masculinidade tóxica; indago-me sobre se, inconscientemente, fora a influência vitalícia desta veia nefasta que me conduzira às aplicações de encontros.

O que advém observar sobre estes comportamentos resume-se, mais uma vez, pelos escritos de Dubravka Ugresic: o pluralismo de identidades do homem comum, do humano regular e quotidiano conseguiu um espaço onde exporta as suas verborreias e pensamentos abjectos. Como todos os utensílios, depende da pessoa e da sua essência o conteúdo gerado: afinal a Internet é tão ferramenta como a primordial roda. A diferença está na transmissão (exacto, transmissão para o mundo, para o planeta) daquilo que somos, ou pretendemos ser, ou aspiramos a ser, ou que não queremos ser. Na idade do romance digital, a nossa pele é desvalorizada, em prol da projecção. Somos cenários idílicos, produzidos para agradar os likes e os swipes do Instagram e do Tinder. O objectivo último não é desfrutar, é contabilizar sucessos, acumular corpos e sensações.

Esperemos que, ao menos, os ossos se salvem, porque a pele, esse exterior, é apenas um enfeite. Espero ter-vos agradado. Senão mudo o meu discurso.

  1. – Álcool, erva, MDMA, entre outros.
  2. – Recorro a esta expressão não de forma derrisória, mas no sentido mais amplo de ligeiramente apalhaçado e profundamente devoto, retendo a inocência juvenil relativamente ao amor.
  3. – Para bom entendedor, meia palavra basta.
  4. – Há muito que qualifico de pico evolucionário inenarrável a extensão do nosso ser interligado ao telefone quando nos encontramos na sanita. Se, anteriormente, a revista e o jornal possuíam um lugar dedicado junto à tigela de porcelana para proporcionarem entretenimento a quem sofresse de problemas crónicos de intestino, é fascinante observar como tudo foi substituído pelo “doom scrolling” que nos transforma as pernas e rabo em nacos dormentes e caímos com as calças enrolados pelos joelhos quando nos tentamos levantar. Felizmente nunca me aconteceu, mas conheço histórias e dramas familiares.
  5. – Permanece como regra basilar nunca ter o telemóvel na casa-de-banho.
  6. – Porventura seja útil esclarecer desde já que sou heterossexual, e como tal, o presente ensaio é escrito pela perspectiva antropológica de um homem hetero.
  7. – Role-playing games. Jogos em que assumimos uma personagem, criada ou não por nós, e jogamos através dela, sendo que simultaneamente somos a personagem.
  8. – Não deixa de ser curioso como até nas ciências sociais a necessidade de pensamento de múltiplas dimensões e não apenas bi ou tri-dimensional é basilar para a elasticidade teórica.
  9. – Aqui gostaria de colocar uma questão científica: o que é que define conteúdo? Pode ser uma série como The Sopranos ou um filme como La Grande Belleza estar equiparados a nível de conteúdo a um vídeo de alguém a atirar ovos do segundo andar para cima de amigos? Não desejo postular a questão como arte fina vs. arte comum, mas sim como a procura de uma definição basilar e compreensiva de conteúdo. Conteúdo não requer intuito? Conteúdo não veicula uma mensagem? Embora David Foster Wallace tenha preconizado a morte cerebral por mensagens e conteúdos dementes, será que ele alguma vez considerou o que actualmente enfrentamos?
  10. – Porventura demasiado habituais, considerando que talvez 80% das mulheres no Hinge na região de Atenas – nacionais e internacionais – só se sabem descrever à base destas três características especificas. Ah, adiciono ainda o amor pela massa, ou pasta, ou noddles – como as americanas dizem. Inegavelmente um dos maiores efeitos secundários pandémicos foi a homogeneização conceptual pelo gosto de atributos e produtos culturais italianos. Assim como pelo desejo de viajar; os confinamentos foram peremptórios ao nos moldar o paladar e o desejo.
  11. – Mais uma das propostas de contacto e apresentação apresentadas ao utilizador do Hinge.