As características que os outros veem em nós e que não reconhecemos: máscara social ou falta de autopercepção?

A complexidade das interações humanas desafia frequentemente a nossa capacidade de compreender quem somos. Quando nos deparamos com a percepção que outros têm de nós, especialmente no caso de características que não reconhecemos como nossas, surgem questões sobre a autenticidade desta imagem. Serão essas características um reflexo de uma dimensão nossa que ainda não percebemos, ou representam apenas um papel que desempenhamos, moldado pelo contexto e pelas expectativas sociais, vulgo, uma máscara social?

Neste ensaio pretende-se explorar esta questão através de conceitos fundamentais da Psicologia Social, como o autoconceito, identidade, autopercepção e autoestima, abordando, ainda, a teoria da auto-discrepância, que ilumina as tensões entre o eu real, o eu ideal e o eu que acreditamos que os outros esperam de nós.

Segundo Smith, Mackie e Claypool (2015), o autoconceito é “todo o conhecimento de um indivíduo sobre as suas qualidades pessoais” (p. 96), sendo este construído a partir das nossas experiências, percepções, crenças e sentimentos sobre quem somos, e mediado pelas nossas interações sociais. A identidade, por sua vez, “refere-se à forma como nos sentimos em relação aos grupos que partilhamos com os outros” (Smith et al., 2015, p. 192, citando M. Rosenberg, 1979; Tajfel, 1972), sendo o resultado da integração do autoconceito com as dimensões sociais e culturais que nos envolvem. Enquanto o autoconceito é introspectivo, a identidade é negociada num contexto interacional, funcionando como uma ponte entre o indivíduo e a sociedade.

A autopercepção, contudo, nem sempre está alinhada com o que os outros veem em nós. Filtramos informações que não confirmam as nossas crenças sobre quem somos, gerando uma cegueira parcial para traços que os outros reconhecem, fenómeno este que está inerentemente ligado à autoestima, pois admitirmos características que não reconhecemos em nós pode ameaçar o nosso valor próprio. É aqui que Smith et al. (2015) sugere que

O autoconhecimento exato das nossas capacidades e preferências é importante para nos orientar ao longo da vida de forma a satisfazer as nossas necessidades e capacidades. Mas a exatidão não é a única consideração a ter em conta na avaliação do eu: a autoestima é também grandemente influenciada por pressões motivacionais para pensarmos bem de nós próprios. Estas motivações colorem muitos dos nossos pensamentos e sentimentos sobre o eu através de preconceitos de auto-aprimoramento. (p. 139)

A teoria da auto-discrepância, proposta por Higgins (1987), ajuda a compreender estas dinâmicas. Segundo esta teoria, as discrepâncias entre o eu real (quem acreditamos ser), o eu ideal (quem desejamos ser) e o eu normativo (quem achamos que os outros esperam que sejamos) geram emoções negativas, como culpa ou frustração. Estas emoções podem levar a ajustamentos manifestados em máscaras sociais, ou seja, comportamentos que atendem às expectativas externas, mas que nem sempre refletem o nosso eu autêntico. Essa camuflagem social, quase como um jogo de ‘faz-de-conta’, pode levar-nos a ter comportamentos que distorcem a percepção da realidade, tanto para nós próprios como para os outros (Brighenti & Castelli, 2016). Esta distorção pode explicar a discrepância entre como nos vemos e como os outros nos veem, obscurecendo características genuínas e criando uma ilusão de quem somos.

E é aqui que a idealização do autoconceito surge como um mecanismo de proteção. Criamos um ponto de referência aspiracional que pode motivar o nosso crescimento pessoal, mas também acentuar discrepâncias entre o eu real e o eu ideal, expondo as nossas falhas ou inconsistências. Assim, questionamos se as características atribuídas pelos outros são traços reais que não aceitamos ou adaptações sociais. Alguns estudos em Psicologia Social sugerem que as máscaras sociais podem ser tão integradas na identidade que se confundem com o eu autêntico. Por outro lado, características genuínas podem parecer alheias devido a processos de negação ou falta de autorreflexão.

Quando Bem (1972) diz que “as atitudes finais dos sujeitos reais na experiência são assim vistas como um conjunto de auto-atribuições feitas pelo indivíduo com base no seu próprio comportamento à luz dos constrangimentos contextuais em que esse comportamento parece estar a ocorrer” (p. 8), o autor sugere que a forma como nos comportamos em determinados contextos pode, de facto, influenciar a forma como nos vemos, levando-nos a adotar características ou atitudes que talvez não correspondam ao nosso eu autêntico.

Neste contexto, a autoexploração é essencial para atenuar estas ambiguidades. A reflexão pessoal e o feedback sincero daqueles em quem confiamos e que temos como nos sendo mais próximos, podem ajudar-nos a distinguir as nossas máscaras dos nossos traços autênticos. Além disso, reconhecer que o autoconceito é dinâmico e influenciado por fatores internos e externos é um passo importante a dar para aliviar a pressão de aderirmos a uma identidade fixa.

Em suma, as características que os outros veem em nós, mas que nós não reconhecemos, representam um desafio fascinante para a compreensão de quem somos. Sejam fruto de máscaras sociais ou de falta de autopercepção, estas características convidam-nos a refletir sobre a complexidade do autoconceito, da identidade e da autoestima.

Nesse âmbito, a teoria da auto-discrepância e o conceito de idealização do autoconceito oferecem perspectivas relevantes ao tema, revelando como as nossas aspirações e as expectativas sociais moldam a forma como nos vemos e somos vistos. Este processo encoraja-nos a abraçar a evolução constante da nossa identidade, equilibrando quem somos, quem desejamos ser e o que os outros percebem em nós. Como dizia Aristóteles segundo o conhecimento popular, ‘conhecer-se a si próprio é o princípio de toda a sabedoria’.

Referências Bibliográficas

Bem, D. J. (1972). Self-Perception Theory. Advances in Experimental Social Psychology, 1–62. https://doi.org/10.1016/s0065-2601(08)60024-6

Brighenti, A. M., & Castelli, A. (2016). Social camouflage: functions, logic, paradoxes. Distinktion: Journal of Social Theory, 17(2), 228-249. https://doi.org/10.1080/1600910X.2016.1217552

Higgins, E. T. (1987). Self-discrepancy: A theory relating self and affect. Psychological Review, 94(3), 319–340. https://doi.org/10.1037/0033-295X.94.3.319

Smith, E. R., Mackie, D. M., & Claypool, H. M. (2015). Social psychology (4.ª ed.). Psychology Press.

Texto de Beatriz Martins Aguiar