O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda Gira,
FERNANDO PESSOA
a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
Publicado em novembro de 1932 na revista Presença, o poema surge no seu testemunho manuscrito, com a data de 1/4/1931 (Ferreira, 2018), pouco provável, mas que, curiosamente, coincide com o dia das mentiras. A fixação do texto publicado apresenta algumas diferenças face à anterior versão manuscrita, nomeadamente na primeira e na terceira estrofes.
O poema é composto por três quadras, com rima cruzada e versos em redondilha maior (sete sílabas métricas).
Começando pelo título, que interpretámos como um mapa mental da poética de Fernando Pessoa, a forma tripartida remete, numa das suas possíveis leituras, para o lado racional, tomada na aceção de atividade mental, mas também para o lado sensível (psico)1, da sua (auto) escrita poética (grafia). Na verdade, todo o poema vai refletir sobre a arte poética de Fernando Pessoa, e, em última instância, dos poetas em geral, quando desenvolve a ideia da racionalização das emoções e da transfiguração do real.
O poeta é um fingidor. O fingimento, em Fernando Pessoa, é uma forma de relação com a realidade, é uma forma de ver a realidade na poesia. O fingimento configura uma dramatização, a criação de uma persona do poeta, o fingidor.
Ora, a exploração deste fingimento parece dar igual primazia à linguagem como significante e como significado. Como diz Eduardo Lourenço, a sua poesia “vive, ao mesmo tempo, da agonia da imagem do Poeta como criador (…) e da [agonia] da Poesia como pura modulação do sentimento e da emoção espontâneos” (Lourenço, 1986:65).
Assim, à dor (real), a que deveras sente, motivação real e primeira que vai ser transfigurada no poema, acresce a dor (fingida), a racionalização da primeira, a “pura modelação” (Idem), que, por sua vez, irá desencadear o surgimento de uma terceira dor (sugerida pela leitura), fora do poema, em que a palavra é transformada em emoção pelo leitor e a que este acede de forma individual. Esta emoção a que o leitor adere só é possível pela existência prévia de uma outra dor (real), desta feita, a que faz parte da história de vida do leitor, que pode ser temporalmente próxima ou distante, mas essencial para uma identificação mental da emoção a que acede ao ler a dor fingida.
Há, portanto, na poesia de Pessoa, uma transferência do real através de um processo de racionalização em vários graus (real, fingimento, sugestão, real). O leitor, usando o mesmo significante, apropria-se não da dor real propriamente dita (do poeta), mas de uma sugestão desse real, acabando por inferir outra dor que, ao ser lida, é interpretada pelo leitor, recorrendo à memória. É nesta altura que, acreditamos, por empatia e associação, se dá uma transposição psicossomática. Desta forma, a dor lida passa a ser uma dor real (do leitor). Não se tratando de uma dor física, mas empática, pode, em caso excecionais de empatia, conduzir a uma manifestação somática, como seja através de manifestações de tristeza ou incómodo, no caso da dor, ou de alegria e satisfação, no caso de um sentimento positivo.
De facto, o leitor acede, depois do processo já descrito, a esses para-sentimentos, criando os dele, porque, desta vez, são todos seus, ainda que semelhantes aos que nortearam o processo de fingimento do poeta.
Este processo de transfiguração do real, de fingimento múltiplo, devia permitir ao poeta o autoconhecimento, o conhecimento da sua verdade. Na esteira de Lourenço, contudo, esse processo não torna o poeta mais ciente de si, porque a consciência dessa necessidade de fingimento impede o conhecimento da “Verdade – no plano das sensações, dos sentimentos, das emoções e das ideias”2 (idem). Daí o comboio de corda que tem por missão entreter a razão. É o coração, são as emoções que potenciam a racionalização. Sem a razão, e este processo de fingimento, seria impossível que o leitor, quem lê, conseguisse sentir.
Essa consciência de que se escreve para um leitor é determinante em todo o processo. A existência dessa alteridade é a potência para a racionalização do real. Ainda que a dor exista deveras, na arte poética só a existência de um leitor permite o processo de fingimento que leva, em última análise, à sugestão de uma dor que nem o leitor nem o poeta têm. Assim, a poesia não é um mero espaço confessional do eu, mas antes um processo de criação ou sugestão de emoções.
O mesmo propósito é descrito no poema Isto, onde o mesmo fingimento termina no célebre verso Sentir? Sinta quem lê. É curioso que este poema é publicado na Presença em 1933, como se de uma resposta se tratasse.
No que se refere, ainda, à questão da dor, não concordamos com as considerações apresentadas por Américo Lindeza Diogo e Rosa Sil Monteiro sobre a dor como uma “palavra tridimensional que remete para a etimologia, e funciona, à partida (e à chegada), como ‘click’ e macrotextualidade” (Ferreira, ibidem). Na verdade, a nosso ver, não está em causa a palavra dor per si, mas a designação de uma emoção. E, como emoção, poderia ter sido substituída pelo poeta por uma outra como tristeza, melancolia ou contentamento, por exemplo, sem que se perdesse o seu caráter axiomático.
Na última quadra, o eu, que até esse momento se tinha mostrado impassível e imune às emoções, parece desiludido e frustrado ao referir-se ao comboio de corda que gira para entreter a razão. Na verdade a utilização do verbo entreter, parece remeter para algo inconsequente, é como se tivesse consciência da sua incapacidade, de que também nos dá conta em Gato que brincas na rua, de retirar plenamente a ponte entre “as suas emoções e o verbo”, de que nos fala Eduardo Lourenço (Lourenço, 1986:65). Aqui, Pessoa intui uma outra realidade, a que ele chama de essa coisa é que é linda no poema Isto. Essa coisa é a arte. Essa coisa é o belo. É o exercício de ver o “caos sensível”, como diz José Gil, a que só os artistas podem aceder, e aí descobrir aquilo que se encontra entre o caos e a linguagem (Gil, 2020:15). É aqui que está a “Verdade”, de que fala Lourenço, e que está vedada aos “seres conscientes” (Lourenço, ibidem), pela impossibilidade de nos libertarmos do verbo. Pessoa ainda luta com a linguagem. O significante ainda depende de um significado para ser sugerido ao leitor e interpretado por este.
A geração da Presença, corporizada em José Régio, em que se valorizou a originalidade, a sinceridade e o “culto da personalidade” (Lourenço, 1958), patentes na “literatura viva”, aquela em que o “artista insuflou a sua própria vida”, como escreve Régio (Régio, 1927) viu-se a braços com um problema. Apesar de ter colocado Fernando Pessoa do lado dos autores da literatura viva, a verdade é que terá havido uma hesitação, pelo facto de Régio considerar a poesia de Pessoa como demasiado racional e pouco imbuída dessa “vida própria” do artista. Como diz Eduardo Lourenço, essa geração, ao fixar-se no problema da “sinceridade”, não percebeu que Pessoa trazia uma “poesia – outra”, inovadora, em que “sentimentos, emoções e emoção «comunicavam» quando o Poeta se sentia, não apenas um eu inspirado, mas um eu eleito” (Lourenço, 1985:65).
Ora, regressando um pouco mais à questão ao comboio de corda que gira a entreter a razão, Pessoa parece intuir que a sua poesia é um fragmento de uma realidade maior. Essa coisa, a que só os artistas acedem, em Pessoa resulta em poesia, em Bach transforma-se em música, em Paula Rego numa pintura. Definir a arte é falar de algo maior do que nós, maior do que os próprios artistas. Contudo, eles são os privilegiados que a ela acedem, que vislumbram a sua luz e se comprazem nela. Aos comuns mortais, apenas é permitido um pequeno vislumbre dessa luz através das obras dos artistas.
Tentando ir mais fundo na questão.
A ideia da concretização da criação artística, em geral, e a poesia, em particular, tem sido motivo de discussão ao longo da história. E os poetas não foram imunes a essa demanda para descobrir o que é a arte poética.
É o caso do poeta e critico inglês Samuel Taylor Coleridge (1777-1834). Figura do romantismo inglês, “a diversidade da escrita de Coleridge, que vai da poesia à ensaística, da crítica à marginália, rivaliza com a de Pessoa” (Castro, 2014:59). Coleridge parece ter uma obra extensa, onde figuram muitos fragmentos. Ainda assim, parece não escapar ao problema da revisão contínua da sua obra, o que também acontece com Pessoa, tendo deixado “versões diferentes dos seus poemas”, revisto trabalhos antigos e tendo composto versos adicionais para poemas já publicados. (ibidem). A esta questão voltaremos mais à frente.
Ora, um dos poemas de Coleridge, que mais terá fascinado Pessoa, leitor do poeta desde a adolescência, foi “Kubla Khan”. A este propósito, Mariana Grey de Castro descreve minuciosamente as incidências que rodearam o contacto de Pessoa com o poema e, em especial, com o seu Prefácio, pelo que não será pertinente regressar a esse assunto. Contudo, há dois ou três aspetos a que vale a pena aludir.
Assim, é importante referir o curioso episódio em que Coleridge, adormeceu a ler um livro sobre o imperador chinês do século XIII. Enquanto dormia, o poeta compôs, de forma espontânea, em sonhos e de uma assentada, um poema de entre duzentos a trezentos versos. Ao acordar, Coleridge começou a escrever apressadamente o poema como se lembrava.
Nesse momento, o poeta foi interrompido por uma pessoa anónima, alguém que vinha de Porlock em negócios. A interrupção durou mais de uma hora e, quando tentou regressar à escrita do poema, foi incapaz de continuar, por ter esquecido o resto da sua visão.
Apesar de não ter conseguido terminar o poema, “esse quase-poema” foi considerado por Pessoa como um “dos poemas mais extraordinários da literatura inglesa” (Pessoa, 1934:1). Ainda assim, a interrupção, de que resultou a não conclusão do poema de Coleridge, não deixou de merecer a atenção do poeta português. Na verdade, é ele que no-lo diz, no seu O homem de Porlock quando afirma que “não se sabe – não o disse Coleridge – quem foi aquele ‘Homem de Porlock’, que tantos, como eu, terão amaldiçoado” (ibidem).
É bem conhecido o episódio em que o próprio Pessoa tem a sua epifania. Aliás, a ideia da criação espontânea, de um folgo, de um sem número de poemas, mais precisamente “trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase” (Pessoa, 1935), pode ter surgido com Coleridge.
Muito se tem falado sobre a veracidade dos dois episódios. Ivo Castro aponta para várias ocorrências que remetem para “uma abundância de emendas” (cf. Castro, 1986 citado por Castro, 2014:63). A própria cronologia, tanto do Prefácio de Coleridge, como da carta de Pessoa, onde fala do dia triunfal, foram escritos com um desfasamento considerável face ao acontecimento propriamente dito. No caso do poeta inglês, passaram 19 anos; no caso de Pessoa, 20, a contar do dito dia.
Contudo, há, nestes dois episódios, alguns pormenores importantes que vale a pena discutir.
A primeira questão prende-se com a interrupção da composição espontânea, que é representada pela figura do homem de Porlock. Também Pessoa teve as suas interrupções, dado ter interrompido O Guardador de Rebanhos para passar a compor o Chuva Oblíqua, ambos atribuídos a entidades diferentes. Seguiu-se-lhe o aparecimento de Ricardo Reis, a que se seguiu Álvaro de Campos e a sua Ode Triunfal.
Ora, com Castro, concordamos que esta pessoa de Porlock é o “símbolo da frustração da inspiração e do génio visionários” (Castro, 2014:64). Esta figura representa uma parte da dinâmica da criação poética de Coleridge. Aliás, pegando na interpretação feita por Pessoa no seu O Homem de Porlock, este é caraterizado como o interruptor imprevisto, para continuar mais à frente que “tudo quanto verdadeiramente somos, sofre (…) a interrupção fatal daquele visitante que também somos, daquela pessoa externa que cada um de nós tem em si” (Pessoa, 1934).
A outra questão, que resulta destas experiências, é a de que tudo ocorreu no sonho, no caso de Coleridge, e numa espécie de êxtase, no caso do poeta português.
Começando pela primeira questão, é importante introduzir aqui a noção de belo e de como o artista, vamos cingir-nos, por questões práticas, ao poeta, acede ao belo.
Assim, numa definição Kantiana, “o belo é o que é representado sem conceitos como objeto de comprazimento universal” (Crítica da Faculdade do Juízo, 1790 I.6 citado por Ceia, 2009:3). Hegel vai mais longe e afirma que o belo é “em si mesmo infinito e livre” (cf. Ceia, ibidem).
Destas definições, o belo é uma realidade de impossível concetualização, mas de comprazimento universal, em si mesmo infinito e livre. “Hegel defende o belo artístico como o único com interesse estético”, sendo o belo artístico um produto do espírito (idem).
Assim, o poeta acede ao belo através da sua sensibilidade e inteligência. Pessoa fala de um “Outro Mundo de nós mesmos” (Pessoa, 1934). Contudo, acreditamos que esse aceder ao belo não ocorre dentro do poeta, mas fora, pela sua capacidade de intuir esse belo a partir da realidade comum, reagindo a estímulos exteriores. São os sentimentos provocados por estes estímulos que vão ser objeto de fingimento. Ao fim ao cabo, os estímulos estão disponíveis para todos, mas só os artistas acedem ao belo através deles. E isso pode acontecer em qualquer lugar e em qualquer altura. Só é preciso um gatilho que prenda a sensibilidade e a inteligência do poeta.
Porém, assim como este aceder ao belo não tem hora e lugar, ou exatamente por isso, também não é um acesso contínuo. Daí as interrupções. Na verdade, se o poeta tivesse um acesso contínuo ao belo, dificilmente conseguiria escrever um poema. A ligação ao belo implica um estado de separação da realidade para poder intuir a poesia. Por outro lado, são as interrupções que delimitam a totalidade do poema.
A este propósito, vale a pena recuperarmos a última frase de O Homem de Porlock:
E assim, do que poderia ter sido, fica só o que é; – do poema, ou dos opera omnia, só o principio e o fim de qualquer coisa perdida – disjecta membra que, como disse Carlyle, é o que fica de qualquer poeta, ou de qualquer homem.
A ideia de fragmentação presente neste excerto, um conceito aceite a partir do momento em que os fragmentos começaram a ganhar o seu espaço próprio, ainda que representem “nada menos do que o esboço de uma teoria do fragmento” (Pizarro, 2013:99-111 citado por Castro, 2014:66), nada mais é do um elemento que concorre para essa teoria.
Na verdade, a ideia de que a fragmentação é uma motivação artística revela-se, nesta altura, na própria noção de heteronímia, nas Mademoiselles de Picasso ou na própria obra de Pessoa. “É altamente provável que da mítica arca do poeta às caixa da Biblioteca Nacional se tenha perdido a ordem precária que aproximava fisicamente algumas folhas” (Pizarro, 2007:9). É Pizarro que nos alerta para a necessidade de não tentar desfragmentar esses fragmentos que compõem a obra do poeta. Na verdade, se tentarmos colar os pedaços da jarra que é a obra poética de Pessoa, corremos o risco de deturpar a própria essência da obra. Pessoa quis ser um conjunto de fragmentos. “Pessoa existe? Nos seus papéis, nos seus fragmentos” (Pizarro, ibidem).
Esta questão leva-nos a uma constatação. Se atendermos que o aceder ao belo não é uma ligação contínua, como podemos interpretar como fragmento o poema, mais ou menos elaborado, que daí resultou? Os fragmentos encerram em si mesmo a sua totalidade. Senão, vejamos.
Quando Pessoa se refere aos seus heterónimos, ele parece querer identificar-se como um deles. Aliás, o projeto da criação dos heterónimos é tão vincado que ele parece, a dado momento, dar-lhes primazia em relação a ele próprio.
Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.
(Pessoa, 2012:142)
Mas porque será tão importante esta necessidade de fazer sobressair os heterónimos?
Tal necessidade prende-se, segundo nos parece, com um conceito que explora em Aspetos, que é o conceito de pessoas-livros. A ideia de que o corpus dos poemas dos seus heterónimos é mais do que um conjunto de fragmentos é o facto de que cada conjunto, englobado dentro da mesma pessoa-livro, representar uma totalidade, ainda que momentânea.
Cada personalidade dessas – reparai – é perfeitamente una consigo própria, e, onde há uma obra disposta cronologicamente, como em Caeiro e Álvaro de Campos, a evolução da pessoa moral e intelectual do autor é perfeitamente definida.
(Pessoa, 2012:217)
Na verdade, neste excerto, a ideia da disposição cronológica da obra remete para uma visão em que, sendo a obra uma totalidade, o acrescento de um poema novo é como se acrescentasse uma unidade de tempo – uma hora, um dia ou um ano – à vida do próprio heterónimo.
Segundo Richard Zenith, em 1920, ou eventualmente 1919, a ideia da heteronímia ainda não estaria perfeitamente cimentada em Pessoa. Contudo, o poeta “já tinha conceptualizado integralmente a ideia de pseudo-autores que eram mas não eram ele” (Zenith, 2022:687-688).
Outro exemplo de que Pessoa ansiava imiscuir-se entre os heterónimos era, por um lado, o facto de considerar que ele próprio é discípulo de Caeiro. Desta forma, o poeta do Guardador de Rebanhos seria o mestre de todos os outros e estaria num plano superior aos outros, ocupando Pessoa o mesmo lugar que os restantes heterónimos.
Por outro lado, o poeta assume em Erostratus/Heróstrato a vontade de ser um entre muitos:
Ninguém deveria deixar vinte livros diferentes, a menos que seja capaz de escrever como vinte homens diferentes. […] Se conseguir escrever como vinte homens diferentes, é vinte homens diferentes.
(Ibidem)
Ou seja, a ideia de fragmento, seja referindo-nos a um poema, seja à obra de um heterónimo, encerra em si mesma a ideia de totalidade.
Neste sentido, como podemos interpretar a aceção de Coleridge, e, depois, de Pessoa, de que da interrupção da pessoa de Porlock tinha dado origem a um fragmento?
Esta questão prende-se com a forma como o poeta acede ao belo. Aceder ao mundo onde reside o belo implica entrar num estado de pouca consciência. O poeta acede a esse mundo reagindo a estímulos. Isso pode acontecer em qualquer altura ou em qualquer lugar, desde que surja um gatilho que conduza a sensibilidade para aquele estado intermédio de consciência. O acesso não é contínuo. Daí as interrupções. Mas são elas que delimitam o poema.
Esta não previsibilidade implica que o poeta esteja sempre atento. Talvez, por esse motivo, não sejam de estranhar os cadernos de que se fazia acompanhar Pessoa. Também não será por acaso que, no espólio de Pessoa, se encontram diversos tipos de papéis, enfim, de suportes para os seus poemas. Ora, esta ligação com o belo também é conhecida por inspiração ou criatividade artística, que quase nunca se sabe de onde vem. “Cézanne falava no caos irisado que o pintor apanhava no ar, na palma da mão” (Gil, 2020:15).
Assim, não concordamos com a ideia de que as interrupções do homem de Porlock correspondam a uma expressão fragmentada da alma do poeta, como diz Castro. Na verdade, preferimos a conceção de Sousa Santos que inscreve a fragmentariedade e a interrupção poéticas numa longa tradição anglo-saxónica. E dá o exemplo de vários autores que “dramatizam frequentemente este gesto de interrupção nos seus poemas, ora de forma explícita, ora de forma implícita”, usando a interrupção como “uma muralha e um portal ao mesmo tempo” (Santos, 1983:17 citado por Castro, 2014:66-67).
Ora, a ideia de que o poeta não consegue exprimir a totalidade existe, sim, mas porque ele é incapaz de exprimir todo o belo. O belo é infinito, como já foi dito. E aqui está o busílis da questão. Pessoa sente que é limitado. Por esse motivo, o comboio de corda gira a entreter a razão. E esta é a palavra que marca a sua desilusão.
Voltando à questão da consciência, Eduardo Lourenço diz-nos que Autopsicografia é a constatação de que é “impossível (o) sonho de uma poesia sem fingimento” (Lourenço, 1986:65). Contudo, quando afirma que isto representa a impossibilidade do “contacto entre o homem e a sua verdade”, muito semelhante ao contacto que “une o animal à natureza” (idem), será que se referia ao instinto?, o foco parece estar ligeiramente deslocado do essencial. Na verdade, a possibilidade do homem contactar com a Verdade está vedada aos seres conscientes. Porém, num estado de semi- consciência, ou até de inconsciência, é possível.
A esse propósito, Fernando Pessoa mostra toda a sua frustração quando nos fala de A ceifiera.
Ela canta, pobre ceifeira,/Julgando-se feliz talvez. O sujeito poético dá-nos uma perspetiva de possível felicidade. A ceifeira está no seu afazer, não tem outro tipo de ambições, aquilo que conhece lhe basta. Por isso, canta.
Este sentimento de alegria, demonstrado pela ceifeira, provoca sentimentos contraditórios no eu lírico – ouvi-la alegra e entristece. E esse sentimento duplo advém, sobretudo, do que se passa alguns versos mais abaixo – Ah, canta, canta sem razão!/O que em mim sente está pensando -, e, é então, que ele formula um desejo – Derrama no meu coração/A tua incerta voz ondeando. Surge, então, novamente, o comboio de corda, onde nascem as emoções, os sentimentos, que, neste caso, tem dupla função: ao dizer que está pensando, remete-nos para a racionalização dos sentimentos, mas também para uma tomada de consciência, que ele preferiria não ter.
Acaba por confessar que A ciência/Pesa tanto e a vida é tão breve!. Pessoa reconhece que ser um ser consciente implica, como dizia Lourenço, o contacto com a verdade, que, afinal, é o reconhecimento da sua incapacidade. Só um estado de inconsciência, ainda que não total, pode conduzir à plenitude, à felicidade.
Vale a pena, ainda, debruçarmo-nos um pouco sobre algumas passagens do Livro Do Desassossego, onde o autor nos fala do sonho. Para o efeito, usarei a edição de 2021 de Jerónimo Pizarro.
Comecemos pelo fragmento 141, que diz o seguinte.
Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção, que a minha sensibilidade repugna: ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
(Pessoa, 2021:193)
No que resta do fragmento, o autor diz-nos que não escolhe nenhum, porque detesta ambos, mas que, quando tiver de sonhar ou agir, irá misturar as duas coisas.
Ora, o autor parece assumir uma dicotomia entre sonho e ação. O sonho, que não é do agrado da inteligência, onde a inteligência não tem valia, mas, talvez, a quem agrade mais à sua sensibilidade, e a ação, que preferiria a inteligência como companheira, mas tem, antes, a sensibilidade.
Assim, o estado de quase inconsciência aparece associado à sensibilidade. É a sensibilidade que permite descortinar dentro do espaço da não consciência plena. Aí, o poeta destrinça o poema. Mas é a inteligência que permite que o poema seja escrito.
É curioso que este trecho seja encabeçado por uma nota em português.
«(Prefácio?)». Esta é a nota deixada pelo editor. Pizarro aponta, como data possível para o fragmento, o ano de 1917. Será que Pessoa teria imaginado começar por aqui?
Passemos, agora, ao fragmento 169. O texto aparece com a data de 1929 e, segundo nota do editor, é encabeçado pelo texto “TRECHO | DO «LIVRO DO DESASSOSSEGO», COMPOSTO POR | BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS DA CIDADE DE LISBOA» (Pessoa, 2021:231).
O autor começa por falar-nos de uma deambulação pela baixa da cidade, numa era anterior, sentindo-se da mesma época que Cesário Verde. Depois de várias considerações, que o levam para o lado da Alfândega, a descrição centra-se nas sensações que lhe chegam.
Mas há mais alguma coisa … Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes meus próprios sonhos se me erguem em cousas, Não para me substituirem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o electrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador noturno, de não sei que cousa, que se destaca, toada arabe, como um repuxo subito, da monotonia do entardecer!
(idem, 231-232)
Neste último parágrafo do fragmento 169, que se passa ao entardecer, o autor pressente que algo está para além dele. O ambiente parece propício para um estado de semi-consciência. É, então, que ele tem a noção clara de que os sonhos lhe trazem coisas, que, não pretendendo substituir a realidade, tem relutância em aceitar, por existirem fora dele, como o elétrico ou a voz do apregoador.
A relação que Pessoa estabelece com o sonho no Livro Do Desassossego, primeiro através do heterónimo Vicente Guedes e, depois, do semi-heterónimo Bernardo Soares, é verdadeiramente estimulante. Ainda assim, como esse não é, por si só, o objeto deste ensaio, deter-nos-emos, apenas, num último fragmento, o 193.
Hoje, em meus devaneios sem proposito nem dignidade que constituem grande parte da substancia espiritual da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da Rua dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, dos empregados todos, do moço, do garoto e do gato. Senti em sonho a minha libertação, como se mares do Sul me houvessem offerecido ilhas maravilhosas por descobrir. Seria então o repouso, a arte conseguida, o cumprimento intellectual do meu ser.
(idem, 251)
Sem entrar em grandes interpretações, o sonho parece surgir como um lugar de libertação. O sonho proporcionava-lhe um lugar de repouso, a arte conseguida, o cumprimento intelectual do seu ser.
O sonho, ou um lugar de inconsciência, permitem-lhe vislumbrar o belo, a arte conseguida e a sua realização intelectual. A arte só é conseguida a partir da inconsciência. Só aí reside o belo infinito. É o lugar onde vão todos os artistas.
Em jeito de conclusão, o poema Autopsicografia surge como um mapa da atividade mental de Fernando Pessoa. O facto de ter sido publicado em 1932, revela um poema complexo, em que a arte poética apurada do autor transparece.
A começar, a ideia de que a poesia é fingimento. Este fingimento implica a existência de um leitor a quem se dirige o poema, aquele que lê e que sente.
Pessoa assume, contudo, uma frustração. O comboio de corda tem de entreter a razão. São as emoções que são a matéria que vai ser fingida no poema, que vai ser racionalizada, contudo, o poeta sente que não consegue atingir a plenitude. Há uma coisa por debaixo do terraço. E essa coisa é que é linda.
Aos poucos vai-se apercebendo que a consciência é impeditiva. Só não percebeu que o que está em causa é o belo, aquele mundo sensível, onde ele muitas vezes esteve, e que ele foi quase percepcionando quando se referiu ao sonho.
Coleridge tinha razão em sonhar. Dizem que o sonho comanda a vida. Será que é mais verdade do que imaginávamos?
Notas:
1 A parte racional permite ao poeta racionalizar os sentimentos, ou seja, permite-lhe o fingimento; o lado sensível permite-lhe a percepção do belo. Na racionalização utiliza a inteligência; na percepção a sensibilidade.
2 Na verdade, como veremos mais à frente, a consciência não se refere, apenas, à necessidade de fingimento. O estado de consciência, ou melhor, de não consciência, é determinante para aceder ao belo.
Referências bibliográficas
Livros
GIL, José (2020) O tempo indomado, Lisboa, Relógio D’Água.
PESSOA, Fernando (2021) O Livro Do Desassossego, edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Tinta da China.
ZENITH, Richard (2022) Pessoa – Uma biografia, Lisboa, Quetzal. Revistas
CASTRO, Mariana Grey de (2014) “Pessoa, Coleridge, homens de Porlock e dias triunfais”. Revista Estranhar Pessoa, n.º 1, 58-70.
FERREIRA, Teresa Jorge (2018) “Autopsicografias”. Revista Estranhar Pessoa, nº 5, 78-93.
LOURENÇO, Eduardo (1986), “Fernando, rei da nossa Baviera”. Revista de estudos portugueses e africanos, n.º 8, 63-73.
(1958) “Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo Português?”, (publicado no volume Tempo e Poesia)
PIZARRO, Jerónimo (2007) “Pessoa existe?”. Revista Veredas, n.º 8, 244-259. RÉGIO, José (1927) “Literatura Viva”. Revista Presença, n.º 1.
Webgrafia ttp://www.pessoadigital.pt/de/pub/Pessoa_Autopsicografia
(Os poemas Isto e A ceifeira também foram pesquisados em www.pessoadigital.pt)
https://revistas.iel.unicamp.br/index.php/epa/article/view/5611
http://www.pessoadigital.pt/pt/pub/Pessoa_O_homem_de_Porlock
https://static1.squarespace.com/static/51d2b64ae4b0a433e9c0c726/t/ 5450e38fe4b0830eb42d5a64/1414587279882/Pessoa%2C+Coleridge.pdf
https://www.casafernandopessoa.pt/pt/fernando-pessoa/textos/heteronimia BELO | cceia (unl.pt)