Charlton Heston e a sua Trilogia Conservadora

A carreira cinematográfica de Charlton Heston aproxima-se de uma biografia ideológica, em que os filmes acompanham o percurso político do actor e em que a sua pessoa pública está numa relação interdependente com a constituição da sua personalidade privada e a formação do seu quadro ideológico pessoal. Podemos encontrar, nessa progressão, vários pontos de referência, particularmente quando Heston participa, por volta da década de 70, em Planet of the Apes (1968), Omega Man (1971), e Soylent Green (1973), uma trilogia não premeditada de dramas de ficção científica, dotados de uma temática conservadora, republicana, e individualista. No primeiro caso, por partilhar o cepticismo quanto à mudança social, mas ao mesmo tempo conceber o homem como imagem de um ethos superior; no segundo, porque o ideal de civilização que representa é distante do totalitarismo colectivista e próximo da razão individual, dirigindo o mesmo desprezo à corrupção da civilização e ao barbarismo; e no terceiro, porque é no indivíduo que se alicerçam os sistemas que organizam a sua vida social, ao contrário da madhouse colectivista que Heston descreve em Apes[1].

Comecemos por enumerar alguns dos pontos relevantes do enredo destas películas: se neste filme, Apes, o barbarismo é a imitação da civilização, por parte dos símios, em Omega esse barbarismo passa pela negação da civilização, rejeitada por seitas pós-apocalípticas, enquanto que em Soylent a negação do ethos estende-se até à última fronteira do indivíduo, terminando num canibalismo em prol da sustentabilidade do colectivo. Estas caricaturas de civilização parecem ter sempre um paralelo com a evolução ou regressão da dimensão religiosa, onde notamos a substituição da fé individual pelo dogma dominante, em Apes; pela seita, ou o dogma minoritário, em Omega; e pelo primado biológico do ser colectivo, em Soylent. Assim, o herói que Heston personifica representa continuamente um ethos onde a unidade basilar da civilização é o indivíduo, não o estado, nem a família, nem sequer o divino, sob as suas várias formas. Mas esta noção, apesar disso, parece alicerçar-se de modo cultural e até filologicamente no divino da tradição judaico-cristã, existindo assim uma relação entre o monoteísmo de The Ten Commandments e Ben-Hur e o absolutismo moral em que é fundamentado o conservadorismo de Heston, conforme veremos mais à frente.

Convém lembrar em primeiro lugar que Heston, nascido em 1940, é um rapaz de província, formado nas tradições americanas da auto-suficiência e de um humanismo de raiz protestante. De formação religiosa episcopal, ramo do protestantismo que reclama, como o catolicismo, uma legitimidade sucessória apostólica mas cuja adaptação à circunstância secular é muito rápida, Heston é criado assim no progressismo religioso, cuja ética é constituída primariamente na experiência individual, o que sempre o afastou de um colectivismo idealista. Se este progressismo, por seu lado, é tendencialmente céptico, o progressismo positivista, com à-vontade para tratar as massas como peças num gigantesco puzzle à disposição dos planeadores sociais, é tendencialmente optimista, confiando na capacidade do juízo para conceber sistemas perfeitos de melhoramento do mundo. Como com tantos outros seus contemporâneos, a biografia ideológica de Heston acompanha a história dos Estados Unidos. Se inicialmente se aproximava de causas republicanas progressistas, como os direitos civis e o liberalismo de costumes, avançou depois para um entrincheiramento na tradição, agarrando-se às armas e à religião[2] e reagindo assim às investidas do progressismo colectivista e igualitário na segunda metade do século. A persona política e civil de Heston funde-se, assim, com a pessoa cinematográfica, terminando na total entrega, como sucedeu com Reagan, à sua pessoa política, tornando-se presidente da National Rifle Association e um reconhecido conservador de destaque, à semelhança de outras lendas do grande ecrã como Clint Eastwood ou John Wayne.

No cinema, Heston começa a sua carreira em papéis menores, cortejando o estatuto de galã, e chega, em 1956, ao papel decisivo de Moisés, que definiu duas características da sua persona cinematográfica: a masculinidade, ligada ao individualismo sem apologias, e a sua encarnação de um arquétipo moral, ligada ao humanismo cristão. Se até então Heston não tinha uma relevante consciência política, a partir daí começa a exprimir essa ética também na vida pública, passando, inicialmente, pelos valores humanistas dessa tradição em específico, aliando-se assim ao progressismo político, na defesa da integração racial, e na caridade, que herda da tradição religiosa. Heston acompanha assim o decurso da política americana nesse século, atingindo um ponto de viragem quando a sua participação no sindicalismo, tendente ao consenso, é confrontada com o progressismo mais radical. A partir daí, Heston re-alicerça-se na tradição individualista do imago dei, a do homem individual não nascido de si mesmo mas sim criado à imagem do divino, aproximando-se muito mais dessa ética teocêntrica do que do progressismo humanista secular, e afastando-se de um colectivismo igualitarista extremo que aliás na altura ainda estava muito na moda. Refugia-se, como tantos outros desiludidos, no conservadorismo político mais próprimo da tradição constitucional americana, naquela fórmula que encara as teses já testadas pelo tempo como aquelas mais viáveis, mas mantém a tradição progressista do protestantismo episcopal americano, e é neste ponto que o encontramos quando a sua carreira chega, de modo talvez não intencional, à trilogia referida.

No primeiro filme desta trilogia, Apes, Heston arrisca o seu primeiro papel de herói moderno, por contraste aos épicos, onde a adaptação para filme transforma o retrato da decadência da civilização do romance original[3] numa tragédia vivida na primeira pessoa com um twist ending inquescível. A premissa estabelece que três astronautas chegam a um mundo desconhecido onde a espécie dominante é o macaco e a dominada o homem. Quando entra no mundo símio, Heston está numa condição reduzida, sem poder falar e sem roupa, reduzido à submissão, como em The Ten Commandments. A sua ascensão à condição igualitária com os símios, primeiro, e à superioridade moral e circunstancial, depois, é a ascensão de uma ética humana sobre uma selvajaria que é também de inspiração humana, já que os símios ficcionais são, na verdade, modelados à imagem do homem. Em Omega, a situação do sobrevivente agraciado é talvez um pouco mais literal, já que Heston se julga o último homem livre num mundo pós-apocalíptico, escapando a uma infecção que causa delírios na população. Perante essa queda da civilização, Heston aguenta a fortaleza do seu apartamento, decorando-a com pinturas do renascimento que simbolizam a graça humana, e vagueia pela cidade, falando consigo próprio e com mortos, como se fosse ainda um ser social. A narrativa contém um comentário aos colectivismos new age dos anos sessenta, em que os sobreviventes do apocalipse, delirantes, vivem uma religiosidade distorcida, representando uma forma de barbarismo não civilizada, ao contrário de Apes. Por último, em Soylent, Heston está numa situação diferente, encontrando-se inserido numa sociedade decaída, trabalhando como um detective da polícia semi-céptico. No final, sacrifica a sua posição para expor uma perversão, ao descobrir um segredo de estado que constitui o ponto de viragem civlizacional em que o colectivo se torna um organismo auto-suficiente e ultrapassa a última fronteira do indivíduo, terminando no canibalismo, já que o único alimento disponível é uma forma processada de restos mortais humanos.

Esta trilogia representa, para Heston e para a cultura americana em geral, uma transição dos épicos das décadas de 50 e 60, que bebem das grandes tradições milenares dos contos clássicos — da Bíblia, do antigo Egipto, da antiguidade em geral — para a ficção científica distópica e tão audaz quanto assustada da década de 70, onde Heston mantém e desenvolve a sua persona cinematográfica. Aqui, como antes, Heston é um galã que começa como anti-herói e se transforma em representante de um ethos superior, acabando num sacrifício trágico. Se nos épicos anteriores, e até nos westerns em geral, o protagonista encontrava o seu dilema moral perante categorias clássicas como a virtude, o heroísmo e a predestinação, nesta paisagem mais moderna o seu papel é de exilado, perante sociedades em dissolução, às vezes quase inexistentes ou mesmo inexistentes.

Curiosamente em todas as sociedades retratadas na trilogia essa queda e dissolução parece resultar de uma explosão ou implosão do colectivismo: a mais forte temática nos três filmes parece ser precisamente a crise que ocorre quando o colectivo deixa de ser um conjunto de indivíduos e se torna uma entidade justificável por si só, assegurando a sua subsistência pela anulação da unidade mínima, o indivíduo, iniciando assim um ponto de não retorno que leva a formas de autofagia — a escravatura do seu semelhante, em Apes, o sacrifício e o barbarismo sanguinário, em Omega, e o canibalismo literal em prol do colectivo, em Soylent. Quando é atingido esse extremo de abstracção da humanidade, ultrapassando a noção de humano como indivíduo concreto, a reprodução sucessiva do invivíduo no colectivo torna-se uma forma perversa, uma aberração do imago dei, extinguindo a imagem original do indivíduo e diluindo-a na animalidade e na materialidade. Se o indivíduo, enquanto unidade, é ainda assim uma representação contrária a essas forças, no colectivo essa unidade dilui-se e as forças ocupam o evento; por outro lado, o próprio colectivismo é representação de um individualismo exacerbado e inflaccionado, dado que a sua constituição depende sempre de líderes. Assim, o ethos tradicional, clássico, que o conservadorismo hormonal de Heston possivelmente representará, e que existe num arco entre o indivíduo e o coletivo, não subsiste nem no colectivismo extremo nem no individualismo solipsista.

Toda e qualquer visão pós-iluminista enunciada pelas distopias de inspiração na ficção científica nestes três filmes difere alicerça-se em fantasias demasiado febris de planeamento social colectivo e é radicalmente diferente das tradições morais comuns anteriores. Na cultura judaico-cristã em que o conservadorismo de Heston se baseia, o homem é feito à imagem do divino, mas enquanto indivíduo per se, não enquanto colectivo ou espécie, uma definição mais apropriada à biologia do que a essa concepção. No cânone religioso ocidental, a palavra divina é dirigida a um indivíduo, e não directamente a um povo, um coletivo, onde um indivíduo como Moisés funciona enquanto intérprete: o indivíduo aí é veículo para o social, mas não deixa de ser primeiramente indivíduo, já que o divino requer um intérprete e não chama todo o povo para receber os seus mandamentos mas apenas uma pessoa. Nessa leitura do imago dei, assim, a imagem não se identifica directamente com a espécie humana, como conjunto de invidíduos, nem sequer com o indivíduo enquanto ser singular, mas com o indivíduo enquanto imagem do divino, papel que cabe, por sorte, azar ou coincidência, a um sujeito em particular . Essa concepção é diferente das duas anteriores pois é indubitavelmente platónica, de raiz na mundivisão clássica e não na modernidade do indivíduo romântico e das massas — dualidade que possivelmente resulta de um erro fundamental que constitui essa separação, e que, como todas as mundivisões, subsiste sedutoramente precisamente através desse erro irresolúvel.

A moral que Heston encarna pode ser vista assim como uma expressão apolínea, procurando a fixação assumida e não a diluição pós-moderna, e o seu conservadorismo pode ser visto como um progressismo céptico, consciente de que o arco entre o indivíduo e o colectivo não pode ser completamente ultrapassado e que, por muito imperfeita que seja a navegação da razoabilidade entre essas duas dimensões incontornáveis do homem contemporâneo, não é possível soçobar em absoluto para um lado ou para o outro, seja para o lado do individualismo ou para o lado do colectivismo, ambos falhanços emocionais. Por isso as personagens de Heston acabam sempre derrotadas, vergadas ao próprio falhanço da sua ética imperfeita, precisamente a ética conservadora que é dotada dessa espécie de timidez fundamental: entender que não há melhor do que o possível e que só resta ao indivíduo, na sua pobreza a todos os níveis, fazer o que é correcto. Tal enunciado mantém-se tão estável na persona cinematográfica de Heston como na sua vida privada e na vida pública do conservadorismo americano em geral, com todas as suas expressões, algumas luminosas e outras mais nocivas. O homem conservador, assim, parece não diferir muito do homem romântico, embora ambos admitam a derrota em momentos diferentes e perante, possivelmente, audiências diferentes.

  1. “It’s a madhouse! A madhouse!”, grita o protagonista, enjaulado, quando é regado com uma mangueira de pressão, num dos apontamentos viscerais e de um ligeiro kitsch do filme.

  2. Cito parcialmente a expressão que o Barack Obama uitilizou, em 2008, quando era ainda candidato à presidência, para se referir à população do midwest americano: “They get bitter, they cling to guns or religion or antipathy to people who aren’t like them or anti-immigrant sentiment or anti-trade sentiment as a way to explain their frustrations.” https://www.theguardian.com/world/2008/apr/14/barackobama.uselections2008

  3. Boulle, Pierre, La plánete des Singes, Julliard, 1963.