Código 101 Mudança de Protocolos – Videojogos nas Humanidades [?]

Uma análise de algumas questões conceptuais e filosóficas em três videojogos em específico. Texto de João Gouveia (linkedin.com). Revisão de João N.S. Almeida. Imagem de capa: caixas dos videojogos Bioshock, Undertale e Nier: automata.

Os videojogos têm, nas artes e nas humanidades, um potencial quimérico. A barreira erguida entre as humanidades e os videojogos assenta em dois “incómodos”: na adolescência do medium (afinal de contas os videojogos têm apenas 60 anos de existência)[i] e na convicção basilar que “jogos são jogos”[ii] ou seja, um brinquedo de crianças, sem qualquer valor intrínseco para além do entretenimento, tecnológico e comercial. Além do mais, predomina uma retórica infeliz segundo a qual os videojogos simplesmente simulam as estruturas narrativas do cinema e da televisão, que por sua vez, reproduzem estruturas narrativas da literatura (a ser verdade, o jogador não seria um jogador, mas sim um espectador). 

No entanto, a banalização do “esboço conceptual” anterior coloca em evidência a inaptidão discursiva e sobretudo a ingenuidade conceptual sobre o fenómeno dos jogos de vídeo. Uma vez que um dos mais importantes factores do médium é a complexidade da agência do jogador nas narrativas, somos forçados a admitir que o potencial narrativo dos videojogos é, regra geral, subestimado (sobretudo pelos não jogadores) pois, na verdade, abriga um factor singular,
a interactividade do jogador. 

O artigo que se segue apresenta três situações, onde os game designers, os developers e os escritores de videojogos, entendendo os limites das estruturas narrativas clássicas, recolheram nos videojogos um potencial inexplorado, desenvolvendo-os como um medium in causa sui

Bioshock (2007) 

Bioshock articula uma das mais importantes e complexas histórias contadas num videojogo. Efectivamente o seu efeito no jogador é de tal modo mordaz que, sozinho, renovou a forma como se pensa, fala e se escreve sobre o medium

A narrativa do Bioshock, na primeira pessoa, inicia com a queda de um avião no meio do oceano Atlântico. O único sobrevivente, Jack (o jogador) encontra numa pequeníssima ilha um farol que o leva a uma cidade subaquática: Rapture, imaginada e concretizada por um objectivista visionário dado a monólogos chamado Andrew Ryan. Como nota introdutória Ryan explica pela rádio como Rapture foi concebida com o intuito de ser o paraíso na terra onde os artistas nunca seriam censurados e onde os cientistas jamais se teriam de preocupar com moralidades imbecis. No entanto, quando Jack chega a Rapture, a cidade é uma sombra de si própria. A ruína de Rapture é contextualizada por um habitante, Atlas, que através de um intercomunicador oferece a Jack ajuda para sair de Rapture com a condição de este o auxiliar a derrubar Andrew Ryan e salvar a sua família. Entre os diversos problemas em Rapture, Atlas aponta que a estratificação de classes provocada pelo objectivismo de Ryan gerou uma guerra civil liderada por um homem de negócios chamado Frank Fontaine (situação que tornou Ryan num ditador para proteger os seus ideais) e que os avanços sem supervisão governamental, sobretudo na indústria da engenharia genética, reduziram grande parte da população a meros viciados numa substância com efeitos secundários horrendos. 

O mundo de Bioshock foi concebido com base na estética art déco (Rapture), na música do pós Segunda Grande Guerra Mundial (Somewhere Beyond the Sea de Bobby Darin), na filosofia de Ayn Rand (Atlas Shrugged), no zelo ateísta, na ciência de modificação genética e em princípios de game design de outros jogos de vídeo (FPS – First-person shooter). Porém, o Bioshock é maior que a soma de todas as suas partes pois funciona como uma parábola do próprio medium.[iii] 

Recorrendo à literatura clássica para traçar uma linha semelhante ao destino trágico de Jack (o jogador), recordamos a Ilíada, nomeadamente “a escolha de Aquiles” (entre voltar para a guerra de Troia para morrer e regressar a Grécia para viver uma vida próspera) que ilustra a verdadeira tragédia do herói grego: o design do herói, as “linhas de código” que o próprio desconhece, as escolhas que não são suas: eventualmente Aquiles terá de lutar na Guerra de Troia, é o seu destino.[iv] O mesmo acontece não só em Troia, mas como também em Rapture, onde o jogador enfrenta simultaneamente todos os limites narrativos e artísticos do medium e a condição inalterável do próprio. Uma epopeia digital na qual os game developers enaltecem o valor cultural do medium, exibindo paradoxalmente, todos os seus limites. 

“We all make choices, but in the end our choices make us.” 

Andrew Ryan Undertale (2015) 

Toby Fox constrói o núcleo emocional do videojogo ao extrair sinceridade de pequenos gestos, tarefas modestas, símbolos, personagens distintas, com curiosidades e apontamentos de todos os tipos e em todos os lados. À medida que os jogos de vídeo se tornam cada vez maiores por estarem menos constrangidos por limitações tecnológicas, Undertaleencolhe-se para usufruir de um design pungente deliberadamente dirigido para o jogador reflectir sobre as suas acções.[vi]Uma das vantagens deste design sucinto é que, uma vez liberto da tirania das expectativas formais dos jogadores em relação a um jogo de vídeo, Toby Fox revela uma imaginativa paisagem emocional da consciência humana. 

O sucesso de Undertale serve como garantia, para o aparecimento (num futuro próximo) de um domínio experimental no medium, onde vários designers exploram as limitações formais das narrativas e da interectividade dos videojogos de modo a expressar emoções complexas como a melancolia, alienação e solidão. Neste sentido, este jogo assume primordial relevância nos tempos que correm, uma vez que, actualmente,nem podemos confiar no ar que
respiramos, Undertale serve como um precioso porto de abrigo (digital) para desenvolver empatia. 

NieR: Automata (2017) 

Enquanto realizava a pesquisa para escrever a análise sobre o Bioshock, anotei uma frase do criador, Ken Levine que descrevia os videojogos como “(…) more like theme park rides than movies.”[vii] A ser de verdade NieR: Automata é por ser turno, um parque de diversões sobre… complexos conceitos filosóficos. 

À medida que o jogador elimina robô atrás de robô, entre gritos e tentativas de fuga de máquinas que não sentem dor, o nosso input é posto em causa assim como a lealdade para com a humanidade. A situação agrava-se com a descoberta que, tantos os humanos como os extraterrestres, estão extintos há milênios. 

O facto dos humanos e os extraterrestres estarem ambos mortos, não é somente uma reviravolta na história, mas um manifesto sobre a filosofia existencial adoptada por NieR: Automata. Na ausência dos seus criadores, a trama principal da narrativa caí por terra, fazendo emergir o verdadeiro conflito: tanto os androids como os robôs estão condenados a ser livres. 

A primeira fala de 2B prefigura esta disposição filosófica e convida (para além de Sartre) Friedrich Nietzsche para o palco: “Everything that lives is designed to end. We are perpetually trapped in a never-ending spiral of life and death. Is this a curse? Or some kind of punishment? I often think about the God who blessed us with this cryptic puzzle and wonder if we’ll ever have the chance to kill him.”. A morte de “Deus” em NieR: Automata representa a destruição do caminho predeterminado das personagens e paradoxalmente do próprio jogo.[viii] A partir daqui o “sentido” deve ser avaliado e contruído pelo jogador em função da condenação das personagens principais.[ix] 

De acordo com Nietzsche a melhor resposta para um universo sem sentido e um deus morto é criar sentido por nos próprios (autotranscendência), uma opção encenada em NieR pelos robôs: Jean Paul, Pascal, Simone e Kierkegaard.[x]Perante o audacioso futuro adoptado pelas máquinas para a sua raça (uns com mais sucesso que outros), permanece a ideia de que nós, deste lado do ecrã (e de carne e osso) poderíamos fazer o mesmo, sobretudo, agora, confinados, com poucas perspectivas para o futuro, sem a segurança da existência do caminho que os nossos pais percorrem para chegar onde chegaram e com sucessivas crises
existenciais. NieR interrompe simultaneamente o design das personagens e do jogador (pela interactividade inerente do medium), tornando a sufocante e insignificante liberdade de ser (2B) …significativa. 

“A future is not given to you. It is something you must take for yourself.” Pod 042 

Notas

[i] JUUL, Jesper, 2003, Half-Real Video Games between Real Rules and Fictional Worlds, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, p. 5. 

[ii] EBERT, Roger, 2010, Video Games Can Never Be Art, Roger Ebert’s
Journal, https://www.rogerebert.com/rogers-journal/video-games-can-never-be-art, consultado a 27 de Janeiro de 2021. 

[iii] SUDERMAN, Peter, 2016, Bioshock proved that video games could be art,
Vox, https://www.vox.com/culture/2016/10/3/13112826/bioshock-video-games-art-choice, consultado a 27 de Janeiro de 2021. 

[iv] TRAVIS, Roger, 2008, The (non) choice of Achilles, or Not killing Andrew Ryan, Living Epic: Video Games in Ancient World, http://livingepic.blogspot.com/2008/06/non-choice-of-achilles-or-not- killing.html, consultado a 27 de Janeiro de 2021. 

[v] HISCOTT, Rebecca, 2016, “Undertale” Creator Toby Fox on the Indie Computer Game that’s Become an Industry Darling, Medium, https://medium.com/kickstarter/undertale-creator-toby- fox-on-the-indie-computer-game-that-s-become-an-industry-darling-fa4df6cee2db, consultado a 27 de Janeiro de 2021. 

[vi] LIDO, Peter, 2016, Undertale: One Year Later, Kill
Screen, https://killscreen.com/previously/articles/undertale-one-year-later/, consultado a 27 de Janeiro de 2021. 

[vii] SUDERMAN, Peter, 2016, Bioshock proved that video games could be art,
Vox, https://www.vox.com/culture/2016/10/3/13112826/bioshock-video-games-art-choice, consultado a 27 de Janeiro de 2021. 

[viii] BAUER, Jared, 2018, Most Philosophical Game Ever? – The Philosophy of NieR: Automata, YouTube, https://www.youtube.com/watch?v=UiOTSKBy6ME, consultado a 27 de Janeiro de 2021. 

[ix] KASTEL, 2017, Yakoo Tarou’s Eternal Recurrence: Transhumanism in NieR: Automata, Tanoshimi, https://tanoshimi.xyz/2017/03/21/violet-evergarden-spoilers/, consultado a 27 de Janeiro de 2021. 

[x] BAUER, Jared, 2018, Most Philosophical Game Ever? – The Philosophy of NieR: Automata, YouTube, https://www.youtube.com/watch?v=UiOTSKBy6ME, consultado a 27 de Janeiro de 2021.