O cinema é conhecido como arte do movimento, arte da imagem e do real. Em Yi-Yi, a narrativa é ponderada e atenta a estes conceitos, criando um paralelismo entre arte e vida. Neste texto procura-se analisar o movimento cinematográfico em Yi-Yi e a que ferramentas o realizador recorre para ultrapassar a sua essência de apenas filme a realidade fílmica. Texto de Marta Silva de Almeida. Revisão de Sílvia Pereira Diogo. PALAVRAS-CHAVE: cinema, real, família, vida, visível.
“My uncle says we live three times as long since man invented movies.
How can that be?
It means movies give us twice what we get from daily life.[1]”
O cinema é uma arte que respira movimento, da imagem; uma arte que nos permite um entendimento – a possibilidade de nos revermos nas personagens, na narrativa, nos espaços. A possibilidade da vivência através do objeto artístico que é o cinema. É possível navegar por esta arte e encontrar nela pedaços de nós próprios que não conhecíamos ou revisitar situações que nunca pensámos viver. O cinema é a arte do real[2]: regista momentos que se transmitem através da visualidade e da espacialidade. O cinema é um objeto cultural e, para além da sua importância a esse nível, permite uma reflexão sobre o mundo em que vivemos, o tempo e o espaço, não esquecendo a nossa experiência pessoal enquanto observadores e recetores da cultura. O cinema materializa-se em filmes, embora nem todos os filmes sejam cinema. Em Yi-Yi encontramos um objeto que é tanto filme quanto cinema. Aliado a uma excelência técnica, Yi-Yi transporta-nos para um mundo de visível e invisível, criando em si intencionalidade em toda a narrativa e recursos cinematográficos. Como no diálogo de Pangzi, segundo o qual “vivemos três vezes desde que se inventou o cinema”, esta arte potencia a vida e está fortemente ligada ao real, por isso, vivemos por nós e pelo cinema.
YI-YI: O que se vê no ecrã
Yi-Yi: A One and a Two foi realizado por Edward Yang em 2001. Obra central da nova vaga taiwanesa, este filme, na sua mais abrangente especificação, conta-nos a história de uma família decorrida ao longo de um ano das suas vidas, começando com um casamento e terminando num funeral. Entre estes dois acontecimentos, a vida toma o seu rumo e a família depara-se com eventos quotidianos. O filme foca-se nas perspetivas de três personagens: o pai NJ, a filha adolescente Ting-Ting e o filho pequeno Yang-Yang. Todas estas personagens estão num momento crucial das suas vidas em que se deparam com questões relacionadas com emprego, amor ou crescimento. É um período especialmente delicado pois a avó das crianças está em coma. A monotonia da vida é equilibrada com questões mais complexas e emocionais.
O filme de Edward Yang situa-se em Taipei, e de certo modo até se pode dizer que a própria cidade é também uma personagem. Esta possibilidade de leitura surge devido ao ritmo mais lento da narrativa que é intensificado com longos planos que transmitem a ideia de stillness; esta solução artística é contraposta por planos da cidade em que a rapidez é sentida através dos carros, das pessoas a passar e do som exterior. A própria cidade manifesta-se e intensifica a questão da melancolia e da solidão, temas inerentes a Yi-Yi.
Embora este exemplar de cinema taiwanês, de forma direta, seja um drama familiar e doméstico, seria muito redutor classificá-lo dessa forma, uma vez que na sua génese é uma história acerca da vida: o dia-a-dia aborrecido, os eventos inesperados, os desejos, ações e vontades de personagens tão reais como o próprio espectador. A divisão temporal da narrativa em dois momentos tão marcantes – o casamento e o funeral – traz ao de cima uma ideia de divisão em episódios, demonstrando o quão monótonas são, na realidade, as vidas das personagens. Ao ter uma dimensão quase real da vida, e ao fazermos um paralelo com a vivência quotidiana do ser humano, quem sabe até mesmo com quem aqui escreve, é possível identificar esses dois momentos como pontos-chave de uma vida quase cíclica, em que eventos se repetem uma e outra vez. O momento que exemplifica este movimento cíclico de forma clara é, quando Min-Min, em frente à mãe acamada, chora e reflete no vazio da sua vida – a repetição das mesmas rotinas diárias não deixa espaço para mais nada.
“How can it be so little? I live in a blank! Every day … every day …
I’m like a fool! What am I doing every day?[3]”
Yi-Yi transporta-nos para essa dimensão do real; não existem artifícios para contar a história, ela apenas é. Contrastando a narrativa familiar com a enorme e turbulenta cidade de Taipei, esta tem tendência para tornar-se ainda mais banal e monótona. A mise-en-scène está construída para que as narrativas de cada personagem se transformem em quadros; pelo teor episódico que acima referi mas, também, devido ao enquadramento dos planos – planos abertos em que as figuras respiram perante o seu pano de fundo. Com esta subtileza cénica, não existe a ideia de sufoco, mesmo que a narrativa conte histórias mais complexas e difíceis. Um dos momentos em que isso é mais visível é quando o irmão de Min-Min se tenta suicidar no banho – esta situação é dolorosa e difícil, mas não existe a intenção de tornar o espectador desconfortável perante a mesma. Existe, sim, uma demonstração real e contemplativa no recurso a planos mais abertos e lentos. Mesmo em temas mais difíceis, Yang não utiliza nenhum recurso ao melodrama, sendo, na minha opinião, essa uma das razões pelas quais não fecha o enquadramento dos planos. Com isso, permite que o espectador se foque no que lhe fizer mais sentido, como poderia fazer perante uma qualquer pintura barroca ou até mesmo diante da representação de uma peça de teatro; Yi-Yi não força o espectador.
Outra das questões que saliento em Yi-Yi é a noção de tempo fílmico. Ao contrário de muitos filmes (e em especial filmes americanos), o tempo fílmico é mais calmo e ponderado, ainda que existam situações de maior tensão pelo meio. Associado a este tempo lento e à calma performativa, penso que surge quase que uma representação da cidade de Taipei como a confusão e a turbulência emocional em que as personagens se encontram: Min-Min lida com a monotonia da sua vida e aqui o tempo parece esvaziar-se em tarefas banais e sem qualquer conteúdo; NJ reencontra uma antiga paixão e repensa toda a sua vida – o tempo fílmico aqui demonstra-se como lento tanto nas ações, como nos pensamentos (a apatia de NJ materializa-se nisso) e nas decisões tomadas— e tendo passado tanto tempo após a última vez que viu Sherry, a situação parece manter-se estagnada; Ting-Ting lida com o coma da avó, sentindo-se culpada pelo mesmo: há uma dilatação do tempo. A vida, aqui, fica em suspenso para Ting-Ting: a avó não responde e a culpa vai assentando em cima de uma menina de catorze anos, que vive responsável pela vida tanto da avó, como da sua família após a ida da mãe para um retiro. Ainda na narrativa particular de Ting-Ting, ao contrário da espera pela resposta da avó, é imperativo sublinhar a rapidez com que se apaixona por Pangzi e se entrega ao amor. Para esse feito, o realizador usa planos constantes da cidade e coloca estas personagens no espaço de Taipei, onde a rapidez intensifica a fugacidade do amor. Quanto ao pequeno Yang-Yang, o tempo fílmico manifesta-se de formas diferentes daquelas atrás observadas. Note-se a calma com que o rapazinho fotografa o real: acaba por ser um dos momentos de dilatação do tempo fílmico, no qual o pequeno transporta a realidade das coisas —aliás, a sua verdade da realidade das coisas—, consoante o que até ali se passava, até ao funeral da avó.
Aliada a uma ideia de viagem, a forma como a narrativa está construída leva-nos a uma certa cadência e ritmo que cria uma noção de introspecção. Com esta estética da introspecção, o realizador, Edward Yang, usa a mimetização de ações quotidianas para descrever a vida das personagens de forma poética. Através desta forma de navegar a filmagem, Yang consegue criar um discurso que captura as dores, as felicidades, as coincidências e as oportunidades da própria vida. Devido a este viveiro de artifícios cinematográficos, Yi-Yi mimetiza o real, demonstrando como o cinema pode ser, em si, uma forma de vivência.
Para Além Do Visível
Yang filma de forma coerente todo o seu filme e, para além dos seus planos serem abertos, longos e funcionarem quase como quadros, um dos artifícios que o cineasta melhor usa são os planos de tipo ‹‹fora de campo››. Estes permitem intensificar uma das mais fortes ideias do filme: a dicotomia entre o que se vê e o que não se vê. O recurso a esta solução de forma e estilo permite a Yang uma planificação exímia, pois é através dela que a duplicidade de que atrás se falou se intensifica. O que é mais, o uso do ‹‹fora de campo›› passa a ideia de apenas se verem as coisas pela metade, ao encontro de uma estética de graus distintos do visível – o que eu vejo é mesmo o que eu vejo ou existirá algo além daquilo que me é dado ver? Em sintonia com o que Andre Bazin refere em Qu’est-ce que le cinema?, o conceito de montagem interdita aspira à ideia de que através da mesma se consegue dar a ver ao espectador um esquema de relações dramáticas dentro da mise-en-scène, possibilitando vários níveis de perceção. Ou seja, como o mundo interior das personagens não é facilmente acedido (especialmente em momentos de maior desconforto, solidão – a vida em suspenso de que falámos), o recurso a este tipo de montagem – uso da profundidade de campo e do plano sequência, criando planos mais longos— ajuda a que o mundo mental das personagens se ajustem mais facilmente ao mundo mental do espectador, permitindo a este um acesso mais facilitado à assimilação do real representado cinematograficamente. Yang fragmenta de tal modo a planificação do filme que, por vezes, mesmo os seus planos amplos e lentos parecem esmagadores. Um dos exemplos que melhor traduzem esta ideia de visível/invisível surge quando o rapazinho Yang-Yang, na perspetiva de agradar a menina da sua afeição amorosa (e na tentativa de mimetizar as suas ações), se atira para a piscina.
O plano corta para outro episódio familiar e, até que Yang-Yang surja novamente, fica no ar a expectativa de que algo lhe poderá ter acontecido. Este recurso ao visível/ invisível também é traduzido não só em ações e reações das personagens mas, também, em momentos de cariz mais introspectivo e psicológico: é o caso de Ting-Ting quando vai com Pangzi para um quarto de hotel e este a deixa sozinha; o tempo dilata-se ali e também ficamos sozinhos com ela – o visível –; ao mesmo tempo, não conseguimos aceder ao que ela sente – o invisível.
Estes momentos levam as personagens (e, por consequência, o espectador) a ver as coisas pela metade e a navegar pelos diversos graus do que é visível, ou não. Como referi anteriormente, esta dicotomia é latente em toda a narrativa, até na questão de Yang-Yang como demonstra o excerto de diálogo seguinte:
“Daddy, I can’t see what you see and you can’t see what I see.
How can I know what you see?
Good question.
I never thought of that. That’s why we need a camera. Do you want to play with one?
Daddy, can we only know half the truth?
What? I don’t get it.
I can only see what’s in front, not what’s behind. So I can only know half the truth, right?[4]”
O espírito inquisidor da criança assolado por perguntas várias e questões difíceis em que a condição humana está no centro do pensamento pode ser considerado como inofensivo e uma inevitabilidade decorrente da curiosidade da infância, mas a verdade é que Yang-Yang parece ser a única personagem que deseja deixar de ver as coisas pela metade e ambiciona passar para um estado de total entendimento. Com a câmara fotográfica que o pai lhe dá para que se entretenha, surge nele, através daquele objecto, uma nova forma de entender a vida. As fotografias que o pequeno tira são de momentos, espaços ou coisas que usualmente ninguém vê ou a que ninguém dá especial atenção; Yang-Yang tenta ver o que não vê, mas, acima de tudo, mostrar aos outros aquilo que não conseguem ver. Ao tirar fotografias de nucas – aquilo que ninguém vê de si mesmo – está a entregar às pessoas a quem fotografa uma nova realidade que muitas vezes não é totalmente compreendida (como no caso do professor que faz pouco da sua arte, ao invés de procurar entender o modus operandi do rapaz; também aqui se pode fazer um paralelo com a sensibilidade que é exigida de quem almeja fazer arte e com o conceito de ver para além do visível).
Yi-Yi traz ao de cima questões relacionadas com a vida e, essencialmente, o que fazer com ela quando o homem é colocado numa situação em que a mesma fica em suspenso. A personagem que melhor lida com o episódio do coma da avó é Yang-Yang; talvez em parte por não entender a gravidade da situação em que a família se encontra mas, ao mesmo tempo, por ser ele quem tenta ultrapassar os limites do que vê, de modo a encontrar a verdade. As fotografias que tira não são menos do que tentativas de compreender o mundo em que vive, ligadas aliás ao diálogo travado com o pai, que deixámos acima – o rapaz surpreende por almejar entender as coisas que não se conhece e dar-lhes um significado.
Outro recurso cinematográfico a que Yang recorre para a tentativa da duplicidade e da dicotomia é o reflexo (diria que este recurso é também elucidativo da ideia de introspecção e espaço mental das personagens). Em muitas ocasiões, os reflexos são usados como a demonstração da prisão emotiva da realidade em que as personagens se encontram e do assunto atrás falado da fragmentação da vida e do real. Os reflexos também tornam possível que a cidade de Taipei se mantenha na narrativa — e contribuem para acentuar o caos interior, em todo o caso introspectivo, das personagens.
Este recurso do reflexo não é apenas estilístico. Também surge na narrativa quando NJ está com Sherry e Ting-Ting ao mesmo tempo num encontro com Pangzi: quase que aquilo que foi o passado do pai se reflete no que a filha parece estar a viver. De volta a Yang-Yang, esta é a personagem com a qual posso fazer o paralelismo de um espectador a descobrir o cinema. Um dos momentos mais marcantes desta ideia tem que ver com o instante em que o rapaz se apaixona: Yang-Yang é constantemente gozado por umas colegas de escola, das quais tenta fugir e, mais tarde, vingar-se – uma delas é especialmente desagradável, ao ponto de fazer queixa dele aos professores. Um dia, numa sala de cinema, a menina entra e é em frente ao ecrã que Yang-Yang se apaixona pela primeira vez. Ela tornara-se no objecto da sua afeição. Este instante marca a poesia do cinema.
A sensibilidade de Yang-Yang relativamente à arte e à expressão artística, tanto na evidência de se apaixonar numa sala de cinema como no facto de ser a personagem que trabalha arte de modo a entender o real, pode ser vista quase como uma mise-en-abyme; ou seja, a introdução da arte da imagem num filme que, em si, é arte da imagem e que dá a entender a importância da mesma – a introdução de uma segunda narrativa dentro da principal. Tudo isto se materializa, por fim, no diálogo final de Yang-Yang no funeral da avó:
“But, Grandma, I know so little. Do you know what I want to do when I grow up? I want to tell people things they don’t know. Show them stuff they haven’t seen. It’ll be so much fun[5].”
A ideia de que o rapazinho iria mostrar às pessoas o que elas não sabem, liga-se à arte e à actividade que Yang-Yang principiou no filme: a arte de fotografar aquilo que as pessoas não conhecem. O facto de ser a personagem mais nova a ter a sensibilidade de alcançar a arte e, por isso, o entendimento é, também, em si, a poesia do cinema, outra de entre várias coisas importantes que são, na minha opinião, inerentes a este filme.
Esta ideia de mise-en-abyme pode ser remetida para Bazin e a sua definição de cinema, segundo o qual: “o cinema alcançará a sua plenitude ao ser a arte do real”. Existe aqui a possibilidade de materialização de uma realidade que o cinema inicia e termina. Yi-Yi exibe mestria neste campo e transpõe-no de forma exímia – é possível afirmar que alcançou a plenitude ao ser a arte do real, mesmo que Yang não o tenha idealizado de forma tão direta.
BIBLIOGRAFIA
Bazin, André. Qu’est-ce que le cinema?– consultado em: https://archive.org/details/Bazin_Andre_What_Is_Cinema_Volume_1/page/n169/mode/2up
PAPERS
http://www.bocc.ubi.pt/pag/pereira-ana-a-insustentavel-leveza-do-ser.pdf
https://www.academia.edu/61927016/Revisitando_Edward_Yang
WEBGRAFIA
https://vaguevisages.com/2020/05/07/yi-yi-essay-movie-film/ – consulta a 30 Dezembro 2021
https://www.sensesofcinema.com/2001/feature-articles/yi-yi/– consulta a 30 Dezembro 2021
https://notesonfilm1.com/2019/06/19/hal-young-yi-yi-and-the-power-of-long-fixed-shots/– consulta a 30 Dezembro 2021
https://limiterevista.com/2020/12/29/yi-yi-edward-yang-2000/ – consulta a 30 Dezembro 2021
https://www.thecrimson.com/article/2020/12/8/yi-yi-retrospective/ – consulta a 30 Dezembro 2021
https://supchina.com/2020/08/14/a-20th-anniversary-celebration-of-yi-yi/– consulta a 30 Dezembro 2021
https://www.apaladewalsh.com/2014/02/yi-yi-2000-de-edward-yang/- consulta a 30 Dezembro 2021
https://www.sensesofcinema.com/2001/feature-articles/yi-yi/– consulta a 30 Dezembro 2021
https://frame.land/the-philosophy-of-yi-yi/– consulta a 30 Dezembro 2021
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Diálogo entre Pangzi e Ting-Ting em Yi-Yi, 2000 | Edward Yang ↑
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Tese de Andre Bazin, crítico de cinema francês, em Qu’est-ce que le cinema? ↑
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Diálogo de Min-Min em Yi-Yi, 2000 | Edward Yang ↑
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Diálogo de Yang-Yang e NJ em Yi-Yi, 2000 | Edward Yang ↑
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Diálogo de Yang-Yang no funeral da avó em Yi-Yi, 2000 | Edward Yang ↑