Introdução
A globalização fomentou o contato intercultural num nível que antes não seria possível. Em cada encontro entre indivíduos, não apenas duas pessoas se encontram, mas duas culturas interagem. Pela cultura que cada pessoa carrega, é possível interpretar o mundo que a envolve, sendo, inclusive, positivo o encontro de pessoas de culturas diferentes, porém nestes encontros podem surgir problemas comunicacionais, mesmo que as duas pessoas falem a mesma língua.
Neste sentido, mais do que desenvolver sensibilidade intercultural, é necessário fomentar a inteligência intercultural em cada pessoa, especialmente, considerando que são os referenciais culturais próprios e representações sociais que nos auxiliam a interpretar os conteúdos de mensagens de outras pessoas.
Propõe-se assim tratar conceitos como cultura, representações sociais e estereótipos de modo a desenvolver uma reflexão sobre comunicação intercultural, na qual se aborda a improbabilidade da comunicação, fazendo referência a Luhmann, e, por fim, apresentar medidas que podem melhorar o contato intercultural, nomeadamente, a comunicação e a desconstrução de estereótipos.
Cultura, representações sociais e estereótipos
Todos os indivíduos nascem no seio de uma cultura, sendo socializados nela e reproduzindo essa mesma cultura. A cultura é o referencial a partir do qual os indivíduos percebem e se movimento no mundo repleto de significados partilhados.
O conceito de cultura é polissémico, na medida em que apresenta diferentes definições, o que também se reflete nas diferentes ciências sociais. A profusão é tão vasta que Kroeber e Kluckhon (1952), identificaram mais de 150 definições. Tylor (1920, p. 1), a define como “conjunto complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, lei, costumes e muitas outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade”[1]. Cultura é, na aceção de Tylor, o que nos torna humanos, distinguindo-nos dos seres que vivem subjugados aos elementos deterministas da Natureza. Ou seja, atitudes, comportamentos ou símbolos que são partilhados por um conjunto de pessoas, define, de uma maneira ampla, cultura.
Em função dos referenciais culturais, os indivíduos criam representações sociais. As representações sociais são entendidas como “sistemas de pensamento mais largos, ideológicos ou culturais” (Cabecinhas, 2004a, p. 3), caraterizando-se por serem “versões hiper-simplificadas da realidade” que não refletem verdadeiramente a realidade (Cabecinhas, 2004b, p. 3). Assim, as representações são um conhecimento prático que permite ao indivíduo simplificar a realidade social, considerando que são amplamente partilhadas por vários indivíduos e servindo de “guias para a comunicação” (Vala, 1993, apud Cabecinhas, 2004b, p. 3), na medida em que permitem ao indivíduo interpretar e orientar o comportamento individual em função do Outro.
As representações sociais tendem a criar e reproduzir estereótipos. À semelhança do que sucede com as representações sociais, os estereótipos também se apresentam enquanto simplificações da realidade e de pessoas de outros grupos sociais (Lippmann, 1998, p. 80). Deste modo, pessoas de determinados grupos são todas encaradas como homogéneas e portadoras individualmente das caraterísticas de todo um grupo e, havendo algum elemento que seja visto como não incorporando as caraterísticas e ele imputadas, é encarado como uma exceção.
Por exemplo, nalguns grupos da sociedade portuguesa existem estereótipos criados que envolvem pessoas da etnia cigana. Alguns destes estereótipos os categorizam como pessoas que não querem ou não gostam de trabalhar. As pessoas que afirmam estes estereótipos não possuem dados empíricos que corroborem aquela afirmação, contudo, a generalizam a toda uma etnia. Se se encontrarem com um elemento desta etnia e a observarem a trabalhar, isso não irá desconstruir o estereótipo que possuem, mas apenas o definirem como uma exceção ao que eles consideram ser a realidade.
Comunicação intercultural
Este campo de estudos tem sido estudado sob quatro prismas diferentes: comunicação intercultural, comunicação transcultural, comunicação internacional e comunicação comparada de massas (Gudykunst, 1987, p. 848 apud Rodrigo Alsina, 1999, pp. 25–26). A comunicação intercultural baseia-se na comunicação entre povos com sistemas culturais (ou subsistemas) diferentes; a comunicação transcultural procura comparar formas de comunicação interpessoal entre diferentes culturas; a comunicação internacional, remete para os estudos internacionais e aos meios de comunicação de massas e, por último a comunicação comparada de massas procura analisar o tratamento que um mesmo evento é retratado em diferentes meios de comunicação.
A comunicação intercultural assenta em duas formas comunicacionais: verbal e não verbal. Todavia é a vertente não verbal que assume uma preponderância maior (Schröder, 2008, p. 39) e que pode conduzir à maior probabilidade de desentendimentos comunicacionais (o mesmo sucedendo à comunica). Por exemplo, uma pessoa que tenha sido educada no contexto cultural japonês pode encarar como rude uma pessoa que gesticule bastante enquanto comunique, enquanto uma pessoa que tenha sido enculturada numa sociedade na qual a ausência de gesticulação possa ser considerada como alguém que comunique de forma pouco entusiástica e sem interesse.
Luhmann (1999, pp. 42–43), identifica três improbabilidades da comunicação: isolamento da consciência individual, difusão e a seleção do sentido pelo recetor da mensagem. Assim, significados de uma mensagem podem diferenciar-se em função do número de pessoas que a recebem, que varia em função do contexto social e experiência da pessoa, ao que se pode acrescentar a seletividade que cada pessoa interpreta essa mesma mensagem, dificultando a compreensão completa de uma mensagem. Assim, quando duas pessoas comunicam, é realizado um trabalho individual de tradução pelo recetor de uma mensagem, que é realizada com recurso à experiência individual e referenciais culturais, com um significado atribuído pelo emissor da mensagem que pode não ser inteiramente compreendido.
As representações sociais e estereótipos podem, igualmente, influenciar na forma como se desenvolve a comunicação intercultural, especialmente considerando as generalizações acerca de um outro grupo, levantando barreiras comunicações. Assim, o desenvolvimento de sensibilidade intercultural através da alteridade e inteligência cultural permitem que algumas das barreiras sejam diminuídas.
O conceito de alteridade opõe-se ao conceito de etnocentrismo. O etnocentrismo carateriza-se pela avaliação e hierarquização de outras culturas e grupos pelos princípios e valores da minha própria cultura (Eriksen, 2010, p. 10; Neto, 2004, p. 112), enquanto a alteridade remete para a capacidade de poder observar o mundo através das lentes do Outro, o que pressupõe igualdade e relatividade de valores.
A inteligência cultural carateriza-se como uma habilidade individual que se repercute na forma como o indivíduo atua num meio cultural diferente (Ang et al., 2007, p. 337). Devido à globalização e, no caso dos países Ocidentais economicamente mais desenvolvidos, com o acolhimento de migrantes e refugiados, a aquisição e sensibilização para estas caraterísticas tornam-se cada vez mais prementes, sob pena de as sociedades se fecharem, por incompreensão do Outro ou de uma simplificação do Outro com base em estereótipos e preconceitos.
A aquisição de competências intercultural, especialmente no domínio da comunicação, passa, primeiro, pela realização de um autodiagnóstico que permita conhecer o nível de influência cultural nos comportamentos e atitudes (Ramos, 2011, p. 196). Este primeiro diagnóstico permite iniciar a desconstrução de estereótipos e representações sociais acerca do Outro, ao mesmo tempo que alerta o grau de etnocentrismo, permitindo desenvolver a sensibilidade intercultural. Por outro lado, só é possível compreender o que se conhece, e nesse sentido, a participação em ações pedagógicas e de contato com pessoas de culturas diferentes.
Sabendo que no processo comunicativo a probabilidade de se produzirem mal-entendidos, com base nos repertórios culturais individuais, das representações sociais e estereótipos que se criam pela pertença a um grupo social, mas também da experiência individual, torna-se necessário enfrentar os desafios comunicacionais de forma consciente e proativa.
Considerações finais
À medida que o mundo se torna mais interconectado e a realidade multicultural tem se apresentado como uma realidade, a comunicação intercultural torna-se essencial para um convívio, não apenas harmonioso, no qual se diminui a discriminação, mas também produtivo, considerando que os locais de trabalho agregam pessoas de contextos culturais diferentes.
Assim, a cultura, os estereótipos e as representações sociais assumem um papel significativo no modo como os indivíduos comunicam e interpretam as mensagens que recebem, podendo surgir situações de mal-entendidos ou barreiras.
Promover a inteligência cultural e fomentar a sensibilidade intercultural, através da promoção da alteridade, são formas de fomentar o respeito, compreensão, como também a empatia entre grupos culturais diferentes, considerando que o recurso a simplificações baseadas em conhecimentos incompletos acerca do Outro são minimizados. Por outro lado, o desenvolvimento de habilidades interculturais permitem que a sociedade se torne mais inclusiva e colaborativa, reduzindo barreiras culturais e fomentando a integração social harmoniosa.
Referências bibliográficas
Ang, S., Van Dyne, L., Koh, C., Ng, K. Y., Templer, K. J., Tay, C., & Chandrasekar, N. A. (2007). Cultural intelligence: Its measurement and effects on cultural judgment and decision making, cultural adaptation and task performance. Management and Organization Review, 3(3), 335–371. https://doi.org/10.1111/j.1740-8784.2007.00082.x
Cabecinhas, R. (2004a). Representações sociais, relações intergrupais e cognição social. Paidéia, 14(28), 125–137. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-863X2004000200003&lng=pt&tlng=pt
Cabecinhas, R. (2004b). Processos cognitivos, cultura e estereótipos sociais. Actas do II Congresso Ibérico de Ciências da Comunicação. https://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/1650
Eriksen, T. H. (Ed.). (2010). Ethnicity and nationalism: Anthropological perspectives (3a ed). PlutoPress.
Kroeber, A. L., & Kluckhohn, C. (1952). Culture: A critical review of concepts and definitions. The Museum.
Lippmann, W. (1998). Public opinion. Transaction Publishers.
Luhmann, N. (1999). A improbabilidade da comunicação (2a ed). Vega Limitada.
Neto, F. (2004). Psicologia social das migrações. Em F. Neto, Psicologia social aplicada (pp. 81–117). Universidade Aberta. https://elearning.uab.pt/mod/resource/view.php?id=894247
Ramos, N. (2011). Educar para a interculturalidade e cidadania: Princípios e desafios. Em L. Alcoforado, J. A. G. Ferreira, A. G. Ferreira, M. P. de Lima, C. Vieira, A. L. Oliveira, & S. M. Ferreira, Educação e formação de adultos: Políticas, práticas e investigação (pp. 189–200). Imprensa da Universidade de Coimbra. https://doi.org/10.14195/978-989-26-0228-8_16
Rodrigo Alsina, M. (1999). Comunicación intercultural. Anthropos.
Schröder, U. (2008). Comunicação intercultural: Uma desconstrução e reconstrução de um termo inflacionário. Cadernos de Linguagem e Sociedade, 9(1). https://doi.org/10.26512/les.v9i1.9259
Tylor, E. (1920). Primitive culture: Vol. I (6a). https://archive.org/details/primitiveculture01tylouoft/page/n17/mode/2up
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Tradução livre do original: “Culture or civilization, taken in its wide ethnographic sense, is that complex whole which includes knowledge, belief, art, morals, law, custom, and any other capabilities and habits acquired by man as a member os society”. ↑