Creditação Profissional do Jornalista: Regra nas Ditaduras, Raridade nas Democracias

Após mais uma polémica paroquial da vida pública portuguesa — que podem consultar em maior pormenor aqui ou aqui, relacionada com o organismo público que atribui licenças de exercício da profissão de jornalista —, como os nossos leitores já devem ter reparado, alguns bonecos da nossa praça aparentemente dão uma importância desmedida à creditação profissional em Portugal para profissões que não requerem propriamente um domínio técnico cuja ausência ponha o público em risco imediato. É esse o caso da actividade do jornalismo, ao contrário de, por exemplo, a medicina ou a engenharia. Tais bonecos da nossa praça entretêm-se ainda, já quase dois meses depois, a atacar uma senhora que entrevistou recentemente o primeiro-ministro e foi, blasfémia, apresentada pelo orgão de comunicação em causa como jornalista (a referida senhora diz que já nem se lembrava que não tinha renovado a autenticação, o que diz muito sobre a importância e quiçá a qualidade do título). Tudo isto causou uma polémica tão bizarra quão inócua, como tantas outras polémicas que dominam o histriónico e infantilizado debate público no país.

O organismo público que tutela esta exigência bizarra no quadro legal português produziu, na primeira peça que citámos, várias afirmações que oscilam entre a validade dúbia e a absoluta falsidade — a saber, “que para exercer a profissão de jornalista é obrigatório ter a carteira profissional” e que, nesse ponto da obrigatoriedade de creditação, a profissão é “regulamentada e protegida (…) à semelhança de muitos outros países do mundo e em particular na Europa”. Faz falta, para melhor informação do público em geral, nestas equações, um trabalho muito simples que os próprios jornalistas nunca seriam capazes de fazer porque poria em causa os seus próprios interesses corporativos, por detrás dos quais disfarçam o seu mau trabalho: investigar em que países é que a creditação profissional para a profissão do jornalismo é exigida, e aqueles em que não é.

Ao realizar, até mesmo de forma rascunhada, amadora, e simples, essa investigação, chegamos a uma conclusão devastadora para o provincianismo bacoco da chafarica portuguesa: a necessidade de creditação para exercer jornalismo é completamente minoritária e residual no quadro das democracias a nível mundial e não encontra qualquer suporte nem na posição do organismo oficial que tutela a sua creditação, nem na percepção pública e intelectual generalizada sobre a matéria.

Vejamos então ao pormenor este panorama. Convidamos todos os leitores a começarem, desde já, por ficar absolutamente boquiabertos com a situação geral e as situações particulares que vos vamos aqui deixar. O que pensarão se vos dissermos que apenas Grécia, Itália e Catalunha, a nível europeu, exigem liminarmente essa creditação para a prática da profissão? É na companhia destas três regiões do sul da europa que nos encontramos nessa exigência exótica para exercício do jornalismo, além de outras paragens menos recomendáveis a nível de pluralidade democrática e de desenvolvimento civilizacional pelo mundo fora, entre as quais Brasil (até recentemente), Argentina, Venezuela, México, Colômbia, Egipto, Quénia, Jordânia, Ruanda, Zimbabwe, e Turquia. Já para não falar de países que actualmente nada têm a ver com democracias liberais, como China, Cuba, Coreia do Norte ou o Vietnam. Esta é a presente situação. Convidamos, adicionalmente, os nossos leitores a adiantarem explicações sobre porque é que Portugal se encontra nestas companhias e não noutras.

É nesta constelação de sub-desenvolvimento e de atraso cívico que nos encontramos, e é a esta cultura de corporativismo de estado que os patéticos entusiastas da “creditação profissional” para o exercício do jornalismo apelam. Estão, por um lado, ridiculamente convencidos de que na sua ausência existiríamos todos numa anarquia de informação, e os pobres cidadãos, naturalmente burros e campónios, seriam presa fácil para as turmas de aldrabões profissionais empenhados em passar informações falsas sob a guisa de “notícias” (algo que, como todos podem ver, é completamente impossível no sistema de creditação oficial, profundo e infalível garante da verdade e do bem); e, por outro lado, estão também completamente alheios, de uma maneira profundamente constrangedora e provinciana, ao panorama rídiculo, a nível mundial, em que se encontram, e em que as suas ideias proteccionistas, corporativas e totalitárias, vicejam.

Nem vale a pena levantar a questão muitas vezes agitada por estas alminhas sobre a exigência de registos em ordens profissionais e creditação oficial para outras profissões, como na medicina, na advogacia, na engenharia, etc, como se os riscos para o cidadão em ser vítima de possíveis burlas nestas áreas fosse comparável ao da profissão do jornalismo, profissão essa que se baseia simplesmente em escrever e relatar coisas que se terão passado. Não é preciso sequer empreender essa análise, que seria uma análise interessante e até pertinente, mas que aqui não colhe qualquer necessidade, bastando apenas consultar o panorama acima sobre os países — e o tipo de país — em que tal creditação é obrigatória para concluir facilmente que estamos perante uma exigência absurda, retrógrada, corporativa e totalitária que não é tradição corrente em praticamente nenhum país do universo das democracias liberais.

Vejamos de seguida listas mais detalhadas com os países em que tal creditação oficial não existe propriamente, mas em que, conforme o caso, algum tipo de vínculo oficializado seja necessário para situações práticas como acesso a eventos dedicados à imprensa e a mecanismos legais de protecção de fontes, entre outros. Voltamos a sublinhar: nestes países, não é necessária creditação oficial de coisíssima nenhuma para alguém trabalhar como jornalista, identificar-se como jornalista e ser jornalista, sendo necessária apenas pontualmente para acesso privilegiado a alguns estatutos e instrumentos da profissão.

  • Estados Unidos: Não há qualquer exigência de registo ou carteira profissional, em linha com o forte princípio de liberdade de imprensa.
  • Reino Unido: Não existe exigência de carteira profissional. Qualquer pessoa pode atuar como jornalista, embora algumas organizações ofereçam certificações voluntárias.
  • França: A profissão é regulada em termos de direitos trabalhistas, mas não é necessária uma carteira profissional obrigatória. No entanto, o título de “jornalista profissional” é reconhecido oficialmente com base em critérios legais.
  • Alemanha: Não há carteira obrigatória, mas há associações que emitem credenciais para facilitar o acesso a eventos ou locais de trabalho.
  • Países Baixos (Holanda): Não há regulamentação oficial para a profissão.
  • Suécia: Não é necessária qualquer autorização oficial para ser jornalista, devido à forte proteção da liberdade de imprensa.
  • Canadá: Sem regulamentação oficial, embora algumas associações ofereçam credenciais voluntárias.
  • Austrália: Não exige registo ou carteira profissional.
  • Noruega: Liberdade total para o exercício da profissão, sem necessidade de registo.
  • Dinamarca: Sem exigências formais ou carteiras oficiais.
  • Finlândia: Não há regulamentação obrigatória, apenas reconhecimento voluntário.
  • Suíça: Não há regulamentação, mas jornalistas podem buscar associações como a Impressum, que fornece credenciais opcionais.
  • Áustria: Não é necessário ter uma carteira profissional; a profissão é autorregulada por associações como a Österreichischer Journalisten Club (ÖJC).
  • Bélgica: Não há obrigatoriedade de registo ou carteira, embora existam conselhos que emitem credenciais para facilitar o trabalho.
  • Irlanda: Qualquer pessoa pode atuar como jornalista, sem necessidade de registo formal.
  • Nova Zelândia: Não há regulação estatal; a profissão é aberta, com organizações que emitem credenciais opcionais.
  • Luxemburgo: Não existe obrigatoriedade de registo ou regulamentação, mas há associações de jornalistas reconhecidas.
  • Japão: Não exige regulamentação formal para jornalistas, mas muitas vezes é necessário estar afiliado a uma redação ou associação de imprensa para obter acesso a conferências de imprensa e protecção de fontes.
  • África do Sul: A profissão não é regulamentada, mas associações como o South African National Editors’ Forum (SANEF) oferecem apoio profissional e credenciais.
  • Islândia: Liberdade total para atuar como jornalista, sem necessidade de carteira ou registo.
  • Chile: O exercício da profissão não é restrito por lei, mas existem credenciais emitidas por sindicatos para acesso a eventos e fontes.
  • México: Não é exigida uma carteira formal para ser jornalista, mas organizações como a Federação de Associações de Jornalistas Mexicanos (FAPERMEX) oferecem credenciais amplamente aceitas.
  • Uruguai: Exige-se registo profissional em algumas situações específicas, especialmente para conferências de imprensa tradicionais.

Mesmo em casos mais cinzentos em que se pode dizer que existe uma exigência ou semi-exigência de creditação oficial, ou em casos em que existe uma tendência para abandono dessa exigência, ou ainda em casos especiais por outros motivos, na prática as coisas são mais flexíveis do que parecem. Alguns exemplos:

  • Brasil: O registo formal não é mais obrigatório desde 2019, mas a profissão enfrenta desafios como violência e censura indireta.
  • Colômbia: A legislação exige que jornalistas sejam registrados na Comisión Nacional de Televisión, mas, na prática, há flexibilidade.
  • Nigéria: Não há exigência formal de carteira profissional, mas os jornalistas enfrentam intimidações frequentes, especialmente ao cobrir temas sensíveis. A autorregulação é promovida por associações como a Nigerian Union of Journalists (NUJ).
  • Equador: Até recentemente, havia regulamentação obrigatória, mas hoje a profissão está mais aberta.
  • Israel: Não exige uma carteira obrigatória, mas o trabalho na área de segurança ou em territórios palestinianos muitas vezes requer autorizações especiais.

Por último, destacamos aqueles países que a nossa pesquisa estabeleceu como mais semelhantes ao caso português unicamente quanto ao ponto de exigência legal de creditação profissional para a prática do jornalismo oficialmente falando, independentemente dos diferentes graus — e existem muitos — de liberdade de imprensa nestes países. Aqui incluímos tanto democracias liberais como regimes não-democráticos. Mas é bom sublinhar que, modo geral, a partir de todo este panorama, parece claro que essa exigência legal de registo em uma ordem ou órgão oficial para o exercício da profissão de jornalista é relativamente rara e normalmente está associada a países com regulamentação estrita da profissão. Eis então uma triste lista dos países conhecidos por exigirem registo obrigatório em uma ordem ou associação específica para o jornalismo, na companhia dos quais Portugal se encontra:

  • China: A profissão é fortemente controlada pelo governo. Os jornalistas precisam ser licenciados pelo Estado, com um registo emitido pelo Departamento de Propaganda ou outros órgãos governamentais. Há uma vigilância rigorosa e punições severas para quem publica conteúdo contrário aos interesses do regime.
  • Rússia: Embora não exista obrigatoriedade de uma carteira formal para atuar como jornalista, a liberdade de imprensa é severamente restringida. Muitos jornalistas estão ligados a veículos controlados pelo governo, e aqueles independentes frequentemente enfrentam censura, assédio ou violência. Existe um registo voluntário em associações de jornalistas, mas estas têm pouca autonomia.
  • Índia: Não há exigência de carteira profissional, mas jornalistas muitas vezes se afiliam a associações como o Press Council of India, que atua como um órgão de autorregulação. A liberdade de imprensa é garantida constitucionalmente, mas enfrenta desafios significativos, como censura governamental e pressões econômicas.
  • Venezuela: É obrigatório o registo na Colegio Nacional de Periodistas (CNP) para atuar formalmente como jornalista.
  • Coreia do Norte: Apenas jornalistas aprovados pelo regime podem trabalhar, todos ligados à mídia estatal. Não existe jornalismo independente.
  • Egito: Os jornalistas devem ser registrados no Sindicato de Jornalistas, controlado pelo governo. A liberdade de imprensa é severamente restringida, com censura e prisões frequentes de profissionais da área.
  • Ruanda: A imprensa é estritamente monitorada pelo governo, com registos obrigatórios para operar formalmente.
  • Arábia Saudita: Todos os jornalistas precisam de autorização do governo para trabalhar. A censura é muito rigorosa, e não há liberdade de imprensa independente.
  • Irão: Os jornalistas devem ser aprovados e registrados pelo governo. A mídia independente é praticamente inexistente, com repressão severa a vozes dissidentes.
  • Turquia: A profissão é tecnicamente aberta, mas os jornalistas frequentemente enfrentam prisões e perseguições. Muitos precisam estar afiliados a veículos aprovados pelo governo para atuar sem represálias.
  • Venezuela: Apesar da existência de uma ordem profissional, a liberdade de imprensa é severamente restringida. Muitos jornalistas independentes são perseguidos ou exilados.
  • Cuba: Apenas jornalistas alinhados ao regime podem atuar formalmente. O jornalismo independente é praticamente clandestino.
  • Portugal: A carteira profissional é obrigatória e emitida pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ).
  • Itália: Os jornalistas devem estar registrados na Ordem dos Jornalistas (Ordine dei Giornalisti), com divisões entre profissionais e publicistas.
  • Grécia: O registo em associações locais, como a ESIEA (União de Jornalistas de Atenas), é necessário para atuar formalmente como jornalista.
  • Zimbábue: Exige-se registo no Zimbabwe Media Commission para operar como jornalista.
  • Jordânia: Jornalistas devem ser membros do Jordan Press Association (JPA), o que restringe o exercício da profissão a quem está registrado.
  • Turcomenistão: A mídia é completamente controlada pelo Estado, e jornalistas só podem trabalhar se forem reconhecidos oficialmente.
  • Vietnã: Jornalistas precisam ser registrados no governo e vinculados a veículos de imprensa controlados pelo Estado.
  • Myanmar: Antes do golpe de 2021, jornalistas precisavam de licenças para operar, um controle que ficou ainda mais rígido após o regime militar.

Em suma, na maior parte dos países não só da esfera das democracias liberais mas fora desta, mesmo sem regulamentação obrigatória, sindicatos, associações de imprensa ou conselhos voluntários têm grande peso para o acesso prático à profissão, fornecendo vantagens como credenciais para eventos e suporte jurídico. Isto não significa, porém, que a exigência completamente exótica existente no presente momento em Portugal para que uma pessoa não se possa sequer identificar como jornalista se não possuir creditação oficial não seja uma exigência de uma absoluta raridade no quadro das democracias a nível mundial. E, como é óbvio, a distinção entre países que regulamentam e aqueles que confiam na autorregulação costuma refletir diferentes abordagens à liberdade de imprensa e ao controle ético da profissão. É verdadeiramente chocante a posição em que Portugal está neste âmbito e as companhias a nível mundial em que se encontra.

Deixamos para os leitores a digestão destas informações e a conclusão óbvia a tirar sobre o comprimento de onda civilizacional em que Portugal se encontra nesta matéria. Deixamos também aliás uma pergunta pertinente: exactamente o que é que mudou, quanto a este ponto, de 24 para 25 de Abril de 1974? Mudou alguma coisa, ou encontramos exactamente o mesmo espírito, defendido exactamente pelas mesmas pessoas ou pelo mesmo tipo de pessoa, gente que ontem pugnava contra o controle do estado sob a informação e hoje defende precisamente uma versão idêntica do mesmo, mas orientada para os seus próprios interesses? E dado o paroquialismo bacoco que domina grande parte do debate das ideias em Portugal, este estado de coisas surpreende alguém?