Crítica: O ciborgue de Donna Haraway e a Poesia

Resumo: Como é que a figura do ciborgue de Donna Haraway, em O Manifesto Ciborgue (1985), tem paralelos com certas ideias de teoria literária acerca de poemas? De que forma é que a interpretação de poemas se associa à formulação da identidade deste ciborgue e como é que ambos sustentam o término da preocupação para com a teoria, destacando a prática da leitura? Tentamos responder às perguntas anteriores, terminando a questionarmo-nos sobre o próprio ser humano. Texto de Guilherme Berjano Valente (Mestrando no Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). Revisão de João N.S Almeida.

Agrada-me a ideia de que poderemos ser ciborgues. Este, por sua vez, não o é concretamente, sendo-o.

Donna Haraway é uma filósofa e zoóloga norte-americana, professora emérita no Departamento de História da Consciência e no Departamento de Estudos Feministas na Universidade da Califórnia; em 1985 publica O Manifesto Ciborgue, considerado como um meteorito na academia, promovendo novas conceções para os estudos pós-humanos, contribuindo para as teorias feministas, reformulando-as com a comparação entre ciborgue e mulher.

O ciborgue de Donna Haraway está num estado paradoxal, aceitando e encontrando-se em conformidade para com o paradoxo, redefinindo as marcas nele anteriormente inseridas, tendo o objetivo de contribuir para uma teoria «fiel ao feminismo, ao socialismo e ao materialismo», através de um «mito político e irónico»[1]. Este afasta-se do androide de Blade Runner: Perigo Iminente, e do Exterminador Implacável, interpretado por Arnold Schwarzenegger. A referência ao ator é importante: não estamos a falar de um Homem muscularmente supra-desenvolvido onde se inserem peças tecnológicas, aperfeiçoando o corpo humano, auto-superando-se. Este ciborgue é um mapa, onde as marcas inseridas pelo programador formulam uma constelação, ou seja, um figura reconhecível através das conceções de seres que lhe são exteriores; este traz consigo as suas marcas anteriores, roubando a caneta àquele que antes o escrevia para, agora, escrever-se a si mesmo; pensemos no Pinóquio e no seu quedar independente depois da criação de Gepeto. Ele não possui um princípio, um estado primordial; é impuro por não ser concebido naturalmente e aceita a sua impureza. Sabe-se disperso e paradoxal, com opiniões várias, não sendo uniforme, mas disforme, assimétrico, e, talvez, não belo; neste saber, aceita-se e avança para se reformular. O seu propósito não será resolver a disformidade e os paradoxos, mas perpetuá-los com as novas marcas que insira em si. As suas marcas, no entanto, não são somente individuais, mas sociais: ele formula-se numa afinidade significativa.

Este ciborgue é especial, pois creio nele encontrar uma teoria da interpretação que bebe da teoria literária de Riffaterre[2] – a poesia é o idioleto (ciborgue) que representa o socioleto (conceção social), sendo o leitor (participante ativo da sociedade) a figura que une os dois, descobrindo o socioleto através da interpretação do poema –, superando-a. Repare-se que o socioleto é o conhecimento social e comum, que se inclui na aprendizagem de uma língua (e.g., ditos populares), podendo ser comum a outros contexto (e.g., topoi poéticos); o idioleto é a materialização deste saber geral, num poema, ou num texto em prosa; o leitor, por sua vez, é a figura que interpreta o idioleto, identificando as marcas que pertencem a um certo socioleto; é de notar que o socioleto não necessita de ser algo absolutamente geral, podendo-se ter como socioleto a palavra supositório, e deste fazer-se um poema, com marcas daquilo que se faz com um supositório, ou com palavras assonantes ao nexo do socioleto. Penso, assim, que a proposta da aproximação entre ficção científica e realidade (p.26), e do ciborgue como «ficção que cartografa a nossa realidade social e corporal» (p.27), indica o corpo do ciborgue como um poema e as suas marcas como possibilidades de descodificação do socioleto inserido.

Um conhecido exemplo de exercícios poéticos da parte de ciborgues.

Este ciborgue é uma ficção literária que aparenta receber um carácter real que poria em causa as fronteiras entre «natural» e «cultural»[3], «real» e «ficcional», etc. Por sua vez, um poema é descrito como um texto que se resolve a si mesmo, podendo ser compreendido porque o leitor, devido ao seu conhecimento linguístico, possui, a priori, o socioleto: esta ideia produz uma cisão entre socioleto e idioleto; o ciborgue da Haraway ultrapassa esta cisão, resolvendo o problema levantado por Paul de Man em «Hypogram and Inscription: Michael Riffaterre’s Poetics of Reading»[4], sobre o poema como uma prosopopeia do texto literário, i.e., se um poema é referente a outro poema, dirigindo-se ao socioleto referido num outro poema, o que ocorre é que um idioleto refere-se a outro idioleto que se refere a outro idioleto, criando um monstro, ou seja, uma acumulação de prosopopeias, visto que o poema está a dar a face a um outro poema, que, por sua vez, deu a face a um poema antes desse. O socioleto desaparece entre os vários idioletos, dificultando o encontro do socioleto original.

O ciborgue da Haraway não tem este problema, pois a sua natureza é paradoxal e social, aceitando o seu estado disperso: «Os nossos corpos, nós mesmas; os corpos são mapas de poder e identidade. Um corpo ciborgue não é inocente; não nasceu num jardim; não busca uma identidade unitária, gerando, por isso, dualismos antagónicos» (p.90). O ciborgue não possui um socioleto original: as suas marcas são o socioleto e é com estas marcas que se pode ambicionar descobrir algo que se aparente com um socioleto, mesmo não o sendo. Notemos que um socioleto pode ser algo simples, como um objeto, no entanto, o socioleto só existe em estado de socioleto, porque o idioleto/poema existe: caso o poema não existisse, não havia algo que o precederia, ou seja, não haveria socioleto.

Outro ciborgue exercendo escolha poética.

Se Paul De Man diz que as prosopopeias de prosopopeias são um monstro, Donna Haraway confirma-o; por sua vez, é deste estado de acumulação de marcas que provém o prazer de tomar o controlo do marcador, ou seja, da forma como nos marcamos. Assim, como a teoria feminista deve identificar as marcas inseridas nos corpos, também o leitor deverá controlar que marcas é que pressupõe num poema, isto é o que aparenta pressupor o poema, ser-lhe anterior. Compreendamos marcas como os signos que são inseridos num corpo; destes signos interpreta-se significados. A roupa é um exemplo de signos, que nos transmitem significados que formulam uma constelação significada, i.e., uma imagem composta. Para se compreender melhor a atribuição destas marcas/signos, compreendamos o que se quer dizer por male gaze, e de que forma Ann Kaplan argumenta que a relação de significação não é unilateral, mas dialógica: se a figura masculina insere significados na figura feminina através do seu olhar, tornando-a num objeto desejado, a figura feminina pode ou não cooperar com esta atribuição; se se rege por este desejo, mantém a ordem patriarcal; se o nega, põe-na em causa, não se limitando a um padrão de atuação[5]. Em «O Triunfo»[6], de Clarice Lispector, a figura feminina compreende que só existe em acordo com o gale maze do marido; quando este se vai embora, ela entra em desespero; é, no entanto, ao compreender que ela é o objeto desejado, e que o esposo é incapaz de a abandonar, por desejá-la, que se recompõe e aceita o seu lugar de poder na relação. As marcas são propostas de forma dialógica, todavia, socialmente, as marcas são impostas institucionalmente. Deverá o ciborgue superar a instituição, e auto-marcar-se. A responsabilidade do leitor, comparativamente à do ciborgue, será perceber quais as delimitações interpretativas impostas pelo poema: assim como o ciborgue formular-se-á individualmente e socialmente, de acordo com a sua comunidade, também o leitor tem de respeitar as delimitações que o poema lhe impõe, sabendo utilizar a sua identidade construída para interpretar o poema. Nenhum leitor lê sem viés, tal como um ciborgue não se marcará sem individualidade.

Encontramos, no entanto, uma diferença: o ciborgue/corpo feminino é um campo onde se podem reformular marcas, enquanto o poema é marcado por um poeta, não se alterando senão por outro poeta, através de um desvio do precursor. Com isto, os poetas vão tecendo um poema como se fosse uma tapeçaria, para qual todos os poetas contribuem; esta ideia é proposta por Shelley, e parece-nos possível afirmar que esta tapeçaria não tem um princípio e não tem um fim. Este poema-tapeçaria é equiparável ao ciborgue: assim como o ciborgue se marcará numa relação de alteridade significativa (p.128), o poema será marcado numa relação edipiana[7], em que o poeta novo altera/corrige o poema do precursor, de acordo com a sua perspetiva, tornando este enorme poema numa construção a várias mãos, com correções individuais que deverão corresponder com o poema precursor, fazendo-se uma espécie de jogo do telefone estragado — um jogo em que um dos participantes principia com uma afirmação, sendo transmitida a outro participante, sem que os outros oiçam, até que chegue ao último, e se exponha a afirmação; neste momento, verificar-se-á as alterações que foram feitas na afirmação, sem que se perceba quem é que as provocou.

E uma lendária cena de transformismo ciborguiano, de mulher para máquina.

Com a teoria de Shelley sobre um macro-poema e o ciborgue da Haraway como um espaço de produção de novas marcas, podemos propor que este ciborgue é como o macro-poema, que possui uma história e que é marcado pela alteridade, enquanto marca a alteridade (alteridade significativa[8]: um movimento em ambas as direções); no entanto, enquanto o poema continuará a ser marcado/definido pelos poetas, o ciborgue tomará o controlo da marca para si mesmo, em relação com o outro. Shelley e Haraway resolvem as questões de Riffaterre e de De Man, visto que para os primeiros a aceitação do disperso permite a leitura prazerosa: se com Riffaterre podemos afirmar que o prazer da leitura provém da descoberta do socioleto, como a descoberta do criminoso num policial, e se De Man afirma que é impossível alcançar este socioleto, ambos o pressupõem ; Haraway e Shelley, concordando ou não com a existência do socioleto, não o consideram uma necessidade. Enquanto o leitor de poesia encontra marcas comparáveis entre vários poemas, produzindo ideias através dos mesmos e conceptualizando filosofias, o ciborgue marcar-se-á de acordo com o seu poder individual sobre o seu estado social. A única coisa que requerem é a bagagem de poemas lidos e as várias canetas já gastas: não há a necessidade de encontrar o que incentivou o poema, porque o poema chega-nos; nele estão as ideias necessárias à sua compreensão. Caso assim não o fosse, o poema seria um mistério a ser desvendado, e não um poema. Claro está que o hábito de leitura auxiliará à compreensão, não só devido à bagagem poética, podendo encontrar-se relações entre textos, mas porque nos habituamos a comparar poemas e a lê-los: a leitura só requer hábito e não uma supra-bagagem intelectual, com o propósito de ser identificada nas palavras do poeta.

Disto, podemos afirmar que não há uma teoria literária, nem uma teoria feminista; ambas são abstratas e propõem-se a divisões entre coisas que são uma só: um socioleto não está num idioleto, pois o socioleto e o idioleto são a mesma coisa (um não existe sem o outro); as ações sobre o corpo da mulher não devem apenas ser denunciadas, pois, aí, «morre o burro de aborrecimento»; é necessário que as teorias feministas agarrem na caneta e proponham novas escrituras, e, quando estas se tornarem obsoletas, requer-se que aceitem que a teoria é inútil e que só a prática da auto-definição, de acordo com o grupo, pode auxiliar o combate feminista.

Este ciborgue aparenta, de modo subentendido, citar o seguinte: «A nossa tese tem sido que ninguém alcança uma posição [intelectual] fora da prática, que os teorizadores deveriam deixar de tentar, e que a missão teorética devia, por isto, acabar.»[9] No caso do ciborgue, nenhuma teoria universalista funcionará, pois iria impor marcas sobre o mesmo, regressando ao estado primeiro de criador e criatura; o único modo de superar este estado é aceitar a teoria como algo falacioso e relativo; aceitando a afirmação prévia, ela torna-se secundária na inserção de marcas pelo ciborgue, no ciborgue; só a prática de inseri-las, de interpretar-se e de se perceber num contexto, respeitando-o, é que permitirá o sucesso do ciborgue da Haraway, ou seja, de uma figura sem princípio nem fim que convive com o devir de acordo com as suas relações, não temendo-o, mas aceitando-o, não se moralizando, mas sendo moral em acordo com os outros e consigo. Por sua vez, neste ensaio, Knapp e Michaels argumentam contra a ideia de teoria literária e do ensinamento da literatura através de teorias,, defendendo que só através da prática de leitura (hábito) é que alcançamos posições intelectuais, chegando a conclusões fidedignas, superando o pressuposto de aplicabilidade de teorias metódicas sobre textos literários. Nem a leitura, nem a inserção de marcas tem método, apenas hábito de reconhecimento.

Assim, somos todos ciborgues se nos auto-inscrevermos com marcas por nós controladas; somos leitores se tomarmos em atenção as marcas do poema, e, com esta mesma atenção, as marcas dos ciborgues que nos circundam. Pergunto: serão as pessoas parecidas a poemas?

Bibliografia:

Bloom, Harold. A Angústia da Influência: Uma Teoria da Poesia. Trad. Miguel Tamen. Coimbra: Edições 70, 2022.

Haraway, Donna. Um Manifesto Ciborgue / O Manifesto das Espécies de Companhia. Trad. Ana Maria Chaves. Pref. José Bragança de Miranda. Lisboa: Orfeu Negro, 2022.

Man, de Paul. «Review of Hypogram and Inscription: Michael Riffaterre’s Poetics of Reading», in Diacritics 11, no. 4 (1981): 17–35.

Kaplan, E. Ann. «IS THE GAZE MALE? ». In The Film Theory Reader: Debates and Arguments. Ed. Marc Furstenau. Londres e Nova Iorque: Routledge Taylor & Francis Group, 2010: 209-219.

Knapp, Steven, and Walter Benn Michaels. «Against Theory», in Critical Inquiry 8, no. 4 (1982): 723–42. [http://www.jstor.org/stable/1343194]

Riffaterre, Michael. «Fear of Theory», in New Literary History 21, no. 4 (1990): 921–38. [https://doi.org/10.2307/469192]

Riffaterre, Michael. «Prosopopeia», in Yale French Studies, no. 69 (1985): 107–23. [https://doi.org/10.2307/2929928]

  1. Donna Haraway, Um Manifesto Ciborgue / O Manifesto das Espécies de Companhia, trad. Ana Maria Chaves, (Lisboa: Orfeu Negro, 2022), 25.

  2. Ver: Michel Riffaterre, «Fear of Theory», in New Literary History 21, vol. 4 (Outono, 1990), 921-938.

  3. Estas ideias encontram-me expostas em «O Manifesto das Espécies de Companhia».

  4. Ver: Paul de Man, «Review of Hypogram and Inscription: Michael Riffaterre’s Poetics of Reading», in Diacritics 11, no. 4 (1981): 17–35.

  5. Ver: E. Ann Kaplan, «Is The Gaze Male?», in The Film Theory Reader: Debates and Arguments, ed. Marc Furstenau, (Londres e Nova Iorque: Routledge, 2010), 209-219.

  6. Ver: Clarice Lispector, «O Triunfo», in Todos os Contos, ed. int. not. Benjamin Moser, (Lisboa: Relógio D’Água, 2015), 27-31.

  7. Harold Bloom, A Angústia da Influência: Uma Teoria da Poesia, trad. Miguel Tamen, (Coimbra: Edições 70, 2022).

  8. Op. Cit.: 128.

  9. Steven Knapp and Walter Benn Michaels, «Against Theory», in Critical Inquiry 8, no. 4 (1982), 723-742.