«Porcos Fascistas-Organismos Tecnocientíficos e a História do Fascismo» de Tiago Saraiva, Dafne Editora, 2022, 335 p., ISBN 978-989-8217-56-1. Por José Braga – Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
«Fascist Pigs: Technoscientific Organisms and the History of Fascism» (MIT Press, 2016) da autoria de Tiago Saraiva, atualmente professor na Drexel University (Filadélfia), conheceu o sucesso a nível internacional e é agora traduzido, com grande qualidade, para a nossa língua. Assente nas preocupações de Georges Canguilhem e Michel Foucault com a biopolítica, o livro explica como organismos tecnocientíficos concebidos para sustentar a nação se tornaram importantes na institucionalização e expansão dos regimes de Mussolini, Salazar e Hitler, constituindo modernidades alternativas. A tese apresentada é a de que a crescente capacidade de manipular a vida vegetal e animal possibilitou a materialização de projetos políticos. Os organismos tecnocientíficos mobilizaram agricultores para a autonomia alimentar, ergueram estruturas estatais corporativas que eliminaram divergências políticas e tornaram regimes de trabalho forçado tolerados. A inclusão de Portugal fornece um contexto nacional que normalmente está ausente da História da Ciência e da Tecnologia e inclui o debate no contexto alargado da experiência fascista europeia.
O livro divide-se em duas partes: Nação (com 4 capítulos) e Império (2 capítulos). Na primeira parte, pega-se no entusiasmo fascista pela autarcia alimentar e demonstra-se como o regresso à terra ganhou sentido por causa da Ciência. O capítulo «Trigo I- Batalhas Alimentares, Linhas Puras e o Regime Fascista de Mussolini», mostra como a Batalha do Trigo foi a primeira ação de propaganda de massas do Regime. Os geneticistas foram importantes distribuindo sementes de alta produtividade pelos agricultores e impulsionando a indústria química no âmbito da política autárcica. Foi o caso do trigo ardito, lançado em 1920, mas apenas difundido com Mussolini. Aumentou a produção de cereais, o uso de fertilizantes e possibilitou a libertação da terra para outras culturas. Surgiram associações e consórcios para produzir e distribuir as novas sementes. Devido à circulação dos artefactos dos geneticistas, surgiram novas relações entre agricultores, padeiros, consumidores e Estado.
«Trigo II- A Nação Integral, Genética e o Estado Fascista Corporativo de Salazar» parte da ideia de que, sendo o solo fundamental para a nação orgânica imaginada pelo Regime, o culto dos antepassados e o cultivo da terra estavam ligados. Assim, os desafios da paisagem alentejana possibilitavam a formação de uma comunidade nacional virtuosa, fomentando a ruralização para colmatar o défice nacional de cereais. A Companhia União Fabril (CUF) financiou campos de demonstração e outras ações de propaganda que enalteciam os fertilizantes para o triunfo da autarcia alimentar. A Campanha do Trigo foi um primeiro passo na experiência corporativa portuguesa com vista à organização social através de associações de produtores, transformando um regime autoritário em regime fascista: com ideologia nacionalista, repressão política e corporativismo social e económico. Arrotearam-se novos espaços e quase se duplicou a produção de trigo com os produtos da CUF. Sublinhou-se a natureza tecnológica do latifúndio (recorriam-se a estudos do Instituto Superior de Agronomia e Estação Agronómica Nacional), materializando uma modernidade.
«Batatas- Pragas, Melhoramento de Plantas e Expansão do Estado Nazi» e «Porcos- Nazismo, Ciência e Enraizamento no Solo» abordam a Batalha pela Produção nazi, sendo a independência alimentar encarada como fundamental para a sobrevivência da raça e a independência política. A autossuficiência em batatas e carne de porco, era protagonista do enraizamento no solo alemão da comunidade nacional imaginada pelos nazis. A maior produção de tubérculos significava menor importação de rações. As pragas da batata eram mais um inimigo, sendo a população mobilizada para as combater, tendo a educação das crianças um papel. A Ciência era mobilizada para evitar a subnutrição. Desenvolviam-se métodos de identificação de imunidade às pragas e padrões de testagem das novas espécies. Aperfeiçoaram-se métodos de testagem laboratorial para orientar o trabalho das casas comerciais de sementes e identificar as variedades a aprovar, as únicas legalmente comercializadas. O Grémio Imperial da Alimentação controlava as propriedades agrícolas e incluía cooperativas de crédito que financiavam sementes e fertilizantes, bem como associações de criadores de gado.
A institucionalização do melhoramento animal na academia germânica nasceu com esta campanha, pois a carne de porco era a maior fonte de proteína dos alemães. Deviam-se criar porcos alimentados com produtos do solo nacional para reduzir a importação de rações, incentivando o trabalho com criadores e associações de produtores. Os testes de desempenho da engorda desenvolvidos na Academia forneceram padrões com que era possível avaliar a contribuição dos animais para a construção do regime nazi. Os porcos alimentados com tubérculos tudescos eram um trunfo na guerra, dando o nome ao livro.
A Segunda Parte trata dos organismos tecnocientíficos nos impérios fascistas, resultado da obsessão da capacidade do solo nacional garantir a sobrevivência da nação. «Café, Borracha e Algodão- Mercadorias, Trabalho Forçado e o Imperialismo Fascista na Etiópia, em Moçambique e na Europa de Leste» mostra como a história destas mercadorias é a do controlo de populações e de regimes de trabalho forçado. Os organismos tecnocientíficos materializam diferentes relações coloniais. Assim, o êxito da colonização italiana na Etiópia estava dependente da disponibilidade de terras para colonos vindos de Itália. Houve uma versão local da Batalha do Trigo, ocorrendo circulação de sementes a partir da Europa. Além disso, recolhia-se biodiversidade no Império distribuindo novas variedades de plantas desenvolvidas por melhoradores europeus, incentivando a agricultura de plantação.
Sendo a borracha uma importação alemã, era uma das fragilidades da sua economia. O sistema de produção na Europa de Leste ocupada pelos nazis era semelhante ao estabelecido nas colónias. Não havendo sucesso nesta estratégia, foram estabelecidos campos de concentração, como Auchwitz.
A instituição do Império foi um traço marcante do fascismo luso. Em Moçambique, os portugueses recorreram ao trabalho indígena para plantarem algodão e reduzirem as importações. Aurélio Quintanilha e o Centro de Investigação Científica Algodoeira tiveram um papel importante nesta dinâmica.
Finalmente, «Carneiros- Colonos Fascistas em África e na Europa» dá uma narrativa trans imperial através da circulação dos carneiros caraculo (usados para os casacos de Astracã). Uma espécie da União Soviética foi criada numa Universidade alemã, circulando para as colónias desta e, depois, para Angola.
Esta obra ganharia se aplicasse aos três regimes a mesma grelha de leitura, por exemplo, explorando mais o papel dos sistemas de ensino na construção de representações políticas ou científicas (como faz no caso da Alemanha) ou de cientistas que tiveram de trabalhar em contexto imperial e autoritário (que exemplifica com Aurélio Quintanilha).
Bem estruturado, dotado de um amplo aparelho iconográfico, com fotografias icónicas, este livro demonstra a sua tese apresentando diversos exemplos e casos concretos. Aborda o fascismo através da atividade agropecuária, interrelacionando avanços tecnocientíficos, contexto político e problemas sociais existentes. Dá também conta da relação entre linhas de investigação científica e questões político-económicas, ideologia política e Impérios, sendo, provavelmente, o primeiro trabalho que inclui o colonialismo português no quadro dos imperialismos fascistas. Vencedor de um importante prémio na área da História da Ciência, esta obra será igualmente útil a historiadores e quem se interessa por ciência política.