“Quanto maior a pressão da originalidade sobre o gosto”, conclui Clement Greenberg em “Pintura de tipo americano” (1955), “mais teimosamente o gosto resistirá a ajustar-se-lhe” (p.158). Esta postura conservadora é uma particularidade da espécie. Ainda que o ponto de saturação varie de pessoa para pessoa, a nossa predisposição para aceitar o que é novo tem sempre um limite. Mas esse limite é susceptível de calibragem. Um sabor novo, que a princípio nos pareça excessivamente doce ou excessivamente amargo, pode tornar-se tolerável ao fim de algum tempo e, com isso, alargar o espectro de sabores que estamos preparados para tolerar. O gosto educa-se. Ora, é essencialmente em torno da tensão entre o gosto adquirido e a sua reiterada educação que, no contexto específico da arte moderna, os diferentes ensaios de Vanguarda e Kitsch se detêm. A história que Clement Greenberg nesses textos repetidamente nos conta é a de como a arte moderna, impondo-se ao gosto que a cada avanço e a cada inovação mais teimosamente lhe resistia, foi progressivamente forçando esse mesmo gosto a educar-se para a tolerar.
“Vanguarda e Kitsch”, o ensaio de 1939 que dá nome à colectânea, põe desde logo em confronto o impulso revolucionário subjacente a essa constante educação do gosto e o impulso reaccionário que lhe oferece resistência. Segundo Greenberg, a cultura de vanguarda que subjaz ao advento da arte moderna tem origem no momento em que os artistas e os escritores, encorajados pelas “ideias revolucionárias no ar que respiravam”, se começam a impor “contra os padrões da sociedade prevalentes” e abandonam os mercados capitalistas para os quais “tinham sido atirados com o desmoronar do mecenato aristocrático” (p.2-3). A aquisição de uma consciência de classe afasta o artista do público, de cujo gosto burguês então se liberta, e a porta da arte pela arte escancara-se-lhe. A consequência mais evidente dessa libertação é o progressivo sacrifício do conteúdo em favor da forma: o assunto da arte deixa de ser a experiência comum, pictoricamente capturável no espaço reduzido de uma tela, e passa a ser a própria arte, ou em concreto os processos pelos quais ela procura capturar essa experiência.
A mesma emancipação artística terá gerado em simultâneo, por reacção a essa vanguarda, um outro fenómeno cultural, o kitsch, que se manifesta por exemplo na “arte e literatura popular, comercial, com a sua cromotipia, as suas capas de revista, ilustrações, anúncios, ficção pretensiosa e de cordel, bandas desenhadas, música ligeira, sapateado, filmes de Hollywood, etc.” (p.6). Entendido como um produto do industrialismo ocidental, e do êxodo rural que o caracterizou, o kitsch veio no fundo satisfazer as necessidades culturais básicas daqueles camponeses que então se instalaram nos grandes centros urbanos e aprenderam a ler e a escrever, mas que nunca alcançaram “o lazer e o conforto necessários à fruição da cultura citadina tradicional” (p.7). Ao mesmo tempo que as populações recém-alfabetizadas das cidades já não se reviam na cultura popular característica das zonas rurais, também não dispunham do estilo de vida ideal ao consumo da cultura citadina tout court, pelo que se tornava necessário um novo tipo de cultura. É isso que justifica a criação do kitsch, que para Greenberg não passa de um sucedâneo moderno da antiga cultura popular destinado a todos os que, “insensíveis aos valores da cultura genuína, estão todavia esfomeados pela diversão que só a cultura, de alguma forma, pode fornecer” (p.7).
A palavra “diversão” ajuda de certo modo a compreender a distinção estipulada nos dois termos do ensaio. Ao contrário da arte de vanguarda, o kitsch apela a prazeres mais viscerais e espontâneos e destina-se ao consumidor apressado, que pretende sobretudo divertir-se durante o pouco tempo de que dispõe e que desdenha de tudo o que requeira esforço. Greenberg é claro a esse respeito, quando rejeita que o êxito do kitsch advenha da educação dada às pessoas. Pelo contrário, a adesão das massas explica-se pela familiaridade inerente àquilo que é transmitido pelo objecto artístico, que dispensa a aceitação prévia de qualquer convenção artística. Ao contrário do que acontece diante de um quadro de Repin, que no ensaio é usado como exemplo de kitsch, “os valores decisivos que o espectador culto retira de Picasso são retirados num segundo momento, como o resultado da reflexão sobre a impressão imediata deixada pelos valores plásticos” (p.11). Aquilo que interessa na arte de Picasso, e no fundo em toda a arte genuína, não se encontra imediatamente e externamente disponível nas suas obras; exige a participação e o esforço do espectador. A imediatez do kitsch priva o espectador desse papel, e disponibiliza a priori na obra, “pronto para a fruição irreflectida do espectador”, aquele mesmo efeito que supostamente caberia ao espectador produzir. Greenberg não o explica deste modo, mas é como se o kitsch estragasse antecipadamente a surpresa em que a contemplação do objecto consiste. Ao contrário de Picasso, “Repin semidigere a arte para o espectador e poupa-lhe o esforço, fornece-lhe um atalho para o prazer da arte que evita o que é necessariamente difícil na arte genuína” (p.12).
A antítese não poderia então ser mais límpida, como Greenberg acaba por sugerir: “se a vanguarda imita os processos da arte, percebemos agora que o kitsch imita os seus efeitos” (p.12). A predilecção do kitsch pelos efeitos, em prejuízo dos processos, ou pelo conteúdo em desfavor da forma, torna aliás saliente um aspecto importante, que Greenberg começara por assinalar: além de ser um produto do espírito do tempo, como em boa verdade a vanguarda o é, este fenómeno inerentemente burguês constitui-se como a retaguarda dela. Esta dicotomia cultural não é uma novidade: “sempre houve de um lado a minoria dos poderosos – e, portanto, dos cultos – e do outro a grande massa dos explorados e dos pobres – e, portanto, dos ignorantes. A cultura formal pertenceu sempre aos primeiros, ao passo que os últimos tiveram de se contentar com a cultura popular ou rudimentar, ou com o kitsch” (p.12). É, pois, à antiga distinção entre alta e baixa cultura que Greenberg está a aludir. Nos seus termos, o critério decisivo para distingui-las é o esforço a que a primeira obriga e de que a segunda se exime.
Além de intrinsecamente conservador, e talvez até por isso, o gosto é por natureza preguiçoso, sendo que só a custo e paulatinamente se pode educá-lo. A baixa cultura, que modernamente se concretiza naquilo a que Greenberg chama kitsch, é a expressão acabada dessa preguiça. O gosto que a justifica é aquele mesmo gosto que em qualquer época não encontra regozijo senão adentro das fronteiras do mundo à época conhecido. A alta cultura, por seu turno, é em cada época o resultado da actividade exploratória dos que se aventuram no interior daqueles territórios desconhecidos que, depois de pisados por esses pioneiros e por eles definitivamente mapeados, alargam os limites da imaginação e passam a poder ser visitados por todos. A arte de vanguarda, tal como Greenberg a concebe, é pois aquela que, não obstante a relutância específica de cada época, legitima as investidas artísticas dos vindouros. É verdade que no contexto moderno, tendo o assunto da arte deixado de ser a experiência comum do mundo exterior, essa relutância é maior do que nunca. Como Greenberg reconhece, é natural que a arte se torne “caviar para o público em geral quando a realidade que imita já não corresponde, nem sequer de modo grosseiro, à realidade reconhecida por esse público” (p.13). Apesar dessa dificuldade, é em explicar em detalhe essa arte, e por conseguinte em explicar em detalhe de que modo ela desafiou o gosto estabelecido da época em que nasceu e de que modo, educando-o, veio a legitimar toda a arte futura, que Greenberg se empenha ao longo dos vinte e oito ensaios deste livro. A distinção entre vanguarda e kitsch ensaiada neste artigo seminal é por isso operativa em todo o seu projecto crítico.
É fundamental que tenhamos isso em conta, se quisermos perceber por que motivo Greenberg considera que a radical mudança de paradigma em que consiste a arte moderna não implica todavia qualquer ruptura com o passado. Se aquilo que o gosto de cada época considera aceitável depende sempre da educação prévia desse gosto, um paradigma sucede a outro não por substituição, mas por transformação, e consoante a tramitação específica desse processo educativo. Greenberg é aliás categórico a esse respeito num ensaio de 1959 intitulado “Em Defesa da Arte Abstracta”: “a arte abstracta não é um tipo especial de arte; não há nenhuma linha inamovível que a separe da arte representacional; é apenas a fase mais recente na evolução da arte ocidental como um todo” (p.212). O mesmo se afirma, de resto, no mais famoso e influente dos ensaios de Greenberg, “Pintura Modernista” (1960):
O modernismo nunca significou, nem significa agora, nada que se parecesse com uma ruptura com o passado. Pode significar uma involução, um desintegrar da tradição, mas significa também a sua evolução constante. A arte modernista continua o passado sem intervalos nem rupturas, e onde quer que chegue, nunca deixará de ser inteligível em termos do passado. (p.221)
Para compreender esse novo paradigma, aquilo que o caracteriza e quais os motivos por que se consolidou, há portanto que compreender, passo por passo, de que modo ele se originou a partir do paradigma anterior.
De acordo com a explicação celebrizada em “Pintura Modernista” (1960), a essência do modernismo “reside no uso de métodos característicos de uma disciplina para criticar a própria disciplina, não de modo a subvertê-la, mas de modo a fazê-la apossar-se com maior firmeza da sua área de competência”. Esta tendência autocrítica, como Greenberg sugere, começou na filosofia, quando Kant “usou a lógica para estabelecer os limites da lógica” (p.215), e disseminou-se depois por outros domínios. Nas artes, tal tendência deu origem a um “empreendimento de autodefinição levado ao extremo”. Movidas pelo interesse de suprimir tudo aquilo que não lhes fosse exclusivo, cada uma das artes tendeu então para a progressiva redução da sua área de jurisdição, que no limite “coincidia com tudo o que havia de único na natureza do seu medium”.
O novo paradigma estabeleceu-se, portanto, no momento em que, cedendo de vez à moderna tentação da autocrítica, cada artista voltou em definitivo o olhar para aquilo que singulariza a sua arte e deliberou a excomunhão de “todo e qualquer efeito que pudesse hipoteticamente ter sido tomado ao medium de outra arte qualquer, ou que lhe poderia ser emprestado” (p.216). As limitações específicas do medium (no caso concreto da pintura, “a superfície plana, o formato do suporte, as propriedades do pigmento”), que até então importava esconder, de modo a perturbarem o menos possível o usufruto pleno da ilusão em que consistia a experiência artística, passaram a ser tratadas positivamente sem quaisquer inibições, como forma de chamar a atenção para a arte.
O início desta revolução é estipulado por Greenberg na “franqueza” com que os quadros de Manet “declaram as superfícies planas em que são pintados”, na forma como os impressionistas, “na senda de Manet, renegaram a preparação da tela com um primário, bem como as velaturas, para não deixar ao olho dúvidas a respeito do facto de as cores que usavam serem feitas de tinta que provinha de bisnagas ou de frascos”, e no sacrifício da verosimilhança encetado por Cézanne para “adequar mais explicitamente o seu desenho e a sua composição ao formato rectangular da tela” (p.216-217). Uma vez que a cor e o formato do quadro eram igualmente características da escultura e do teatro, foi essencialmente em função do “carácter inelutavelmente plano da superfície” que a pintura modernista se desenvolveu. Desse ponto de vista, a transição da pintura figurativa à pintura abstracta ter-se-ia consumado na renúncia cada vez mais flagrante da representação do espaço tridimensional e, por conseguinte, “numa direcção anti-escultórica” (p.218).
Em “Rumo a um Laocoonte mais novo” (1940), Greenberg defendera, porém, que a arte de que a pintura procura emancipar-se não é a escultura mas a literatura, e que não é tanto em despojar-se da tridimensionalidade característica da primeira mas antes do assunto, componente fundamental da segunda, que os pintores de vanguarda se empenham. Ou assim é, talvez, numa primeira fase, dado que era da influência da literatura que precisavam de se desfazer em primeiro lugar. O primeiro desses pintores de vanguarda a sério, Courbet, teria tentado “reduzir a sua a arte a dados sensoriais imediatos ao pintar apenas o que o olho podia ver, enquanto máquina não ajudada pela mente”. Mais interessado em prender o olhar do que em seduzir a imaginação, Courbet abandonou a expressão de ideias e noções e tomou como assunto “a vida contemporânea prosaica”. O resultado foi “uma nova qualidade plana, (…) bem como uma atenção igualmente nova a cada polegada da tela” (p.25), e foi isso que possibilitou as experiências de Manet e dos impressionistas.
A passagem de uma noção de arte que consiste em escondê-la (ars est artem celare) para uma outra que consiste em salientá-la (ars est artem demonstrare) deu-se portanto, de acordo com este ensaio, por ocasião de uma manobra precursora de âmbito diferente: ao procurar rechaçar toda e qualquer investida da imaginação, Courbet acabou inadvertidamente por chamar a atenção para as propriedades da própria pintura, e foi esse acidente que de certo modo forçou “o seu sucessor, Manet, a virar-se para o futuro” (p.87), como é dito noutro dos textos deste livro. Que os pintores modernos tenham sentido necessidade de avançar numa determinada direcção e não noutra, privilegiando cada vez mais as cores primárias, fazendo sobressair a pouco e pouco o traço e a pincelada, tornando mais geométricas e simples todas as formas e progressivamente mais achatadas as superfícies, é assim explicado à luz de um primeiro desvio original e fortuito. A relação entre esse acontecimento inicial e as consequências dele é aliás explicitado por Greenberg, ao sugerir que “a história da pintura vanguardista é a história de uma rendição progressiva à resistência do seu medium” (p.30). Uma vez que tal resistência “consiste, antes de mais, em a superfície plana do quadro recusar os esforços para nela se ‘escavar’ o espaço da perspectiva realista”, foi por essa rendição que a pintura pôde emancipar-se tanto da literatura como depois da escultura: “ao render-se deste modo, a pintura não apenas se viu livre da imitação – e, com ela, da ‘literatura’ – mas também do corolário da imitação realística que é a confusão entre a pintura e a escultura” (p.31).
O carácter acidental deste progresso, implícito na forma como o projecto artístico de Courbet contribuiu inadvertidamente para as descobertas dos seus sucessores, é de resto um dos aspectos mais interessantes da tese de Greenberg. O contributo decisivo de Cézanne, o mais abundante gerador de ideias modernas, como é descrito em “Cézanne e a Unidade da Arte Moderna” (1951), terá por exemplo sido o oposto daquele que o próprio ambicionava: apesar do empenho em fazer a arte “regressar ao velho caminho por novos trilhos” (p. 121), o que provocou foi uma inflexão irremediável, de sentido inverso, no curso dela. Segundo Greenberg, o objectivo de Cézanne seria o de conferir ao “material ‘cru’ fornecido pela notação impressionista da experiência visual” a unidade pictórica e a organicidade que admirava nos pintores do Alto Renascimento. Uma parte do projecto comprometia, no entanto, a outra. O princípio composicional dos velhos mestres, aquele “sistema ritmicamente organizado de concavidades e convexidades, com múltiplas gradações de valor simulando profundidade e volume dispostos em torno de pontos de interesse salientes”, através do qual o olho deveria ser conduzido, não se acomodava de modo algum às “formas aplanadas, sem peso, produzidas pelos tons separados do impressionismo”. De modo a tentar contornar o problema, Cézanne serviu-se do “método impressionista de registar variações de cor puramente óptica” para, através dessas variações de cor, “indicar variações de profundidade e direcção de planos” (p.122). O resultado não foi o que pretendia, e o “mosaico de pinceladas” que passou a cobrir os seus quadros como consequência desse esforço teve como efeito “chamar a atenção para a superfície física do quadro” (p.122).
Esta tentativa de conciliar a crueza cromática dos impressionistas com os preceitos clássicos abriu inadvertidamente caminho à pintura plana e, em concreto, ao cubismo, que haveria de sacrificar “quase por completo a integridade do objecto à da superfície” (p.139). Picasso e Braque aproveitaram os “pequenos plano-faceta de Cézanne” de modo a definir “mais vividamente” o volume a cada objecto, mas o que obtiveram foi “o objecto a pairar longe do fundo como uma peça de escultura”, pelo que passaram “a modelar o fundo, também, em planos-faceta, como Cézanne tinha modelado os céus sem nuvens nos seus últimos anos”. A profusão de tais planos, cada vez mais “paralelos à superfície da tela” (p.139), levou à diluição dos contornos de cada objecto. E assim, “parodiando pelo exagero os métodos tradicionais de sugerir volume e luz num esforço desesperado para repor a terceira dimensão pelo método de Cézanne”, o cubismo “acabou por aniquilar a terceira dimensão” (p.62-63).
O antigo paradigma, que principiara justamente com a descoberta revolucionária dessa terceira dimensão, na passagem “da qualidade plana do gótico e do bizantino para a tridimensionalidade do Renascimento” (p.59), e que se sustentara sobretudo na ilusão sugerida, sofreu os primeiros reveses nas telas de Courbet e Manet, no modo como “a natureza física da tela e da pintura que a cobre é confessada de modo franco” (p.61-62) pelos impressionistas, nos objectos fragmentados e na multiplicidade de planos de Cézanne, na violação das leis tradicionais da composição protagonizada por Van Gogh, Gauguin, Matisse e os fauvistas, ou ainda mais flagrantemente por Monet e Pissarro (p.74), mas o golpe de misericórdia só seria dado pelas experiências ainda mais radicais dos cubistas, como a das colagens. “A diferença decisiva entre o cubismo e os outros movimentos”, explica Greenberg em “O papel da Natureza na Arte Moderna” (1949), reside na sua “relação com a natureza”. Por maiores que até aí tivessem sido os avanços em direcção à abstracção, foram os cubistas que, “dispostos a violar as normas da aparência” e a mostrar “um objecto sob mais do que um ponto de vista na mesma superfície do quadro”, se libertaram de vez da opressão da natureza. Pavimentada a estrada, competia a quem quer que viesse a seguir permitir que as pretensões do medium se sobrepusessem “quase por completo às da natureza” (p.82). Foi isso que a arte abstracta concretizou:
O carácter plano da pintura tornou-se a premissa todo-poderosa, definitiva, desta arte, e a experiência da natureza só poderia ser nela transposta por analogia, não por reprodução imitativa. O pintor abandonou, assim, o seu interesse pela aparência concreta, por exemplo, de um copo, e tentou em vez disso fazer aproximar por analogia o modo como a natureza casara os contornos rectilíneos que definiam o copo verticalmente com os contornos curvos que o definiam lateralmente. A natureza deixara de propor aparências a imitar, mas princípios para fazer em paralelo. (p.83)
Cada vez menos interessados no espectáculo natural que tinham diante dos olhos, e cada vez mais atentos às leis que regem tal espectáculo, os sucessores dos cubistas voltaram de vez a atenção para as “qualidades decorativas e abstractas da arte pictórica” e criaram as condições para que a superfície do quadro, “cada vez mais rasa”, se reduzisse em definitivo “ao seu verdadeiro facto físico de superfície plana” (p.52). Essa redução fez com que a experiência estética se tornasse exclusivamente visual. Num ensaio de 1957, Greenberg aproveita aquilo que Frederick S. Wight sugerira ser o traço distintivo da pintura de Milton Avery para assinalar precisamente a supremacia do olhar sobre o tacto em que se fundamenta a revolução modernista: “a sua [de Avery] insistência na natureza como uma realidade só de superfícies, não de massas ou volumes, e acessível apenas através dos olhos que se refreiam de fazer associações tácteis” (p.194). Tal supremacia seria de resto novamente enunciada três anos mais tarde, em “Pintura Modernista” (1960): “Os grandes mestres criaram uma ilusão de espaço em profundidade para dentro do qual nos imaginaríamos a caminhar, mas na ilusão análoga criada pelo pintor modernista só podemos entrar olhando; podemos viajar nela, literal ou figurativamente, apenas com os olhos” (p.220).
Em certa medida, era a ilusão táctil que alimentava a imaginação do espectador. A pintura de cavalete tradicional, que subordinava precisamente “o efeito decorativo ao efeito dramático, fazendo a ilusão de uma cavidade em forma de caixa abrir caminho na parede por trás, e organizando nessa cavidade a ilusão de formas, luz, e espaço, mais ou menos de acordo com as regras de verosimilhança vigentes”, entrou em crise no momento em que os artistas se atreveram a deslaçar o olhar do tacto. Ao encurtarem essa cavidade “em benefício da estrutura decorativa” e ao passarem a organizar “os seus elementos em termos de qualidades planas e da frontalidade” (p.73), tornaram a experiência visual cada vez mais inacessível à intromissão imaginativa do tacto. Sem a ilusão da tridimensionalidade, sem formas com contornos bem definidos, sem contrastes cromáticos capazes de sugerir profundidade e volumes concretos, não é possível ao espectador percorrer o quadro com a imaginação ou pressentir-se a tocar o que nele vê. Como Greenberg afirma em “Pintura de tipo Americano” (1955), “o olho orienta-se automaticamente pelos contrastes de valor ao lidar com um objecto que lhe é apresentado como uma imagem e, na ausência de tais contrastes, tende a sentir-se quase tão perdido, se não mesmo tão perdido, como na ausência de uma imagem reconhecível” (p.157). A passagem da figuração à abstracção, de um tipo de pintura visualmente táctil, se assim se pode dizer, à total “dissolução do quadro em pura textura, em pura sensação” (p.76), pode assim de modo muito simples explicar-se pela progressiva supressão de tais contrastes.
Em suma, a hipótese de que “os valores – os contrastes e gradações de claro e escuro – não eram indispensáveis nem à representação da natureza, nem à integridade da arte pictórica” (p.179), intuída inicialmente pelos impressionistas e depois confirmada e aprofundada por Monet, como Greenberg defende em “O Monet tardio” (1957), foi sendo testada aos poucos, muitas vezes de forma inconsciente, num processo de tentativa e erro cujo alcance futuro não poderia evidentemente ser previsto. Impondo-se paulatinamente, a hipótese foi resistindo, época após época, à ditadura do gosto, tornou-se cada vez mais popular, fez escola e acabou por criar o próprio gosto que finalmente a compreendesse e admitisse. A carreira de Clement Greenberg, que com esplêndida clareza se consubstancia nesta antologia de ensaios agora acessível ao público português, consistiu em larga medida em tornar explícito de que modo essa nova pintura, desde as suas manifestações mais primitivas à efectiva consolidação em paradigma, veio a ser possível.