Texto de Antímio Damião, licenciado em Filosofia pela NOVA/FCSH e Mestre em Ciência Política pela UBI. Revisão de João N.S. Almeida e Ricardo Fortunato. Imagem de capa: Prisoners Exercising (After Doré), Vincent van Gogh, 11.02.1890, 80×64 cm. Todas as imagens retiradas do magnífico trabalho em arthive, inspirado em Brave New World, de Aldous Huxley.
O fundamentalista ideológico, a cujo estado extremo corresponde a privação de autonomia ou vontade própria, é o corolário da cegueira ideológica quando dependente e regulada por um sistema de ideias e convicções (morais, religiosas, políticas ou económicas) sustentadas por um determinado grupo social. Este sistema, se adepto de crenças e verdades únicas, internaliza o Big Brother orwelliano através de uma vigilância e um policiamento de si a si mesmo e a outros, quer na realidade objectiva, quer na realidade virtual. Por conseguinte, tal vigilância insidiosa leva à conformidade, à inibição e à auto-censura derivadas do julgamento humano ou do medo de se ser julgado por outrem e de assim ver afectada a sua reputação.
No plano da psicologia de massas, o totalitarismo, além da religião organizada, é o paradigma da estrutura ideológica massificada. Os efeitos partidários de tal regime residem essencialmente no controlo e na mistificação política das massas através da propaganda, cujo princípio essencial consiste em exaltar a consciência de uma classe na amplitude das massas [Reich, p. 66], procurando-se, com isso, uma noção de verdade ou, antes, de concordância — uma concordância puramente formal ao nível da capacidade de julgar, de afirmar, de negar; uma concordância entre o discurso e a realidade; um conformismo “com” ou “igual a”; uma forma de moldar ou estruturar a realidade, ao ponto de um plano de verdade se tornar o único plano de referência da verdade, ou seja, um dogma ou monismo da verdade científica, ou, tão-só, um cientismo [Ricoeur, pp. 168-169].
Sob este pretexto, a consciência política facilita e promove, no limite, a unificação do verdadeiro, tal como está vocacionada e capacitada para congregar os interesses e objectivos da existência humana através do Estado, sendo este a totalidade envolvente que confere às realidades sociais um carácter público central de vontade com um mínimo de responsabilidade em relação a actividades de interesse comum. Já a ideologia massificada dos nossos dias recai na linha que atravessa as dialécticas económico-sociais e no tempo do progresso técnico, qual dialéctica hegeliana em que nada se perde e, pelo contrário, tudo se acumula e sintetiza.
As esferas clericais e políticas têm esse poder sociológico, habituadas que estão, tanto uma como outra, ao reagrupamento e à totalização real da nossa existência, e, por isso, são tentações para a passagem do total ao totalitário. O Estado nazista é um bom exemplo de totalização ideológica, pois, ao tomar o poder, promulgou o Decreto para a proteção do povo e do Estado, suspendendo, assim, os artigos da Constituição de Weimar respeitantes às liberdades individuais. Deste modo, a não revogação do decreto concedeu, do ponto de vista jurídico, uma duração de doze anos ao estado de excepção promulgado pelo Terceiro Reich.
Para Giorgio Agamben, o totalitarismo moderno pode definir-se como “a instauração, por meio do estado de excepção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis no sistema político. [..] A criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil mundial”, o estado de excepção tende cada vez mais a apresentar-se como o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente […] a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de excepção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo” [Agamben, pp. 12-13].
O fundamentalista ideológico enquadra-se nesse cenário de submissão à progressiva erosão dos poderes legislativos parlamentares que remonta à Primeira Guerra Mundial e que hoje em dia se consolida como um “laboratório em que se experimentam e se aperfeiçoam os mecanismos e dispositivos funcionais do estado de excepção como paradigma de governo. Uma das características essenciais do estado de excepção — a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário — mostra […] uma tendência a transformar-se em prática duradoura de governo” [Agamben, p. 19] e, com isso, a problematizar, ou mesmo a anular, o direito e o dever cívicos à resistência quando os poderes públicos violam as liberdades fundamentais e os direitos garantidos pela Constituição.
Agamben afirma ainda que em causa estão o limite do ordenamento jurídico e a compreensão da correcta determinação da localização (ou deslocalização) do estado de excepção, que, na sua essencialidade, se apresenta como disputa sobre o foco que lhe pertence. Esta indeterminação, além de viralmente ideológica porque massificada e democraticamente aceite, torna lícito o ilícito ao justificar a necessidade de transgressão de um caso particular através de uma excepção. Enquanto figura da necessidade, apresenta-se como medida ilegal mas perfeitamente jurídica e constitucional, que se concretiza na criação de novas normas ou de uma nova ordem jurídica, indefinida ou a definir pelo governo em funções [Agamben, p. 44].
Esta política de excepção, contrária à estabilidade e ao desenvolvimento salutar do indivíduo e de uma sociedade que se quer livre e democrática, restringe o discurso e o pensamento ao adoptar os novos paradigmas ideológicos que lhe são implícitos. Estes não só estabelecem e se estabelecem através de propagandas e políticas falsamente democráticas, mas também, e sobretudo, promovem a supressão de liberdades e direitos fundamentais agenciada pelos governos e, mais grave ainda, por cada cidadão a si mesmo e ao seu semelhante.
Neste sentido, o fundamentalismo ideológico deve-se, em parte, à repressão ideológica que o cidadão acaba por exercer a si mesmo e a outros, bem como ao desespero de não poder dizer a verdade (ou o que realmente pensa e sente) tão facilmente e tantas vezes quanto gostaria [Horkheimer, p. 129]. Logo, a restrição à regulação do discurso livre ou da liberdade de expressão vem anular e alterar o sentido da linguagem propriamente dita enquanto meio privilegiado de comunicação e entendimento. O homem condicionado e mentalmente inflexível, regido ética e moralmente por um dogma ideológico, torna-se agente da propaganda que lhe é imposta e que a si mesmo se impõe por aceitar e nunca questionar esse mesmo dogma.
O debate de ideias dos nossos dias, maioritariamente virtual e digital, parece canalizar, via media e inconscientemente, os dogmas culturais dos poderes estabelecidos. A linha ideológica que separa a direita da esquerda políticas estreitou-se de tal modo que já pouco ou nada se distinguem. Em vez de reconhecerem que o fenómeno fundamental de ambas é a ideocracia, a direita tende a vilipendiar o comunismo, enquanto a esquerda o fascismo. Estas duas doutrinas têm uma ideologia de estado rígida, que, embora hostil às várias formas de religião organizada, confere ela própria uma certeza quase religiosa aos seus seguidores. Neste caso, não importa a crença real numa ideologia, mas o fingimento fervoroso dessa crença. Os que se identificam totalmente com uma ideocracia e inflacionam os seus egos com ela inclinam-se ao fundamentalismo, à denúncia ou, até mesmo, ao assassínio. A política, quando para lá da direita e da esquerda, é, nos piores casos, um exemplo de violência ao serviço da dominação [Versluis, p. 141].
Por detrás do corporativismo reside a medida em que um regime manifesta as características fundamentais de uma ideocracia totalitária e dinâmicas cujas origens remontam à Inquisição, mas que, ao longo dos séculos XX e XXI, foram refinadas, industrializadas e brutalizadas através de meios e mecanismos desumanos [Versluis, pp. 141-142]. Esta desumanização incide na paridade entre fanatismo religioso e fanatismo político, cujos partidários escolhem reger-se pela infalibilidade ética e imaculada das suas crenças egocêntricas, dividindo a humanidade em amigos e inimigos ou nós e eles. Deste modo, qualquer contestação à sua verdade absoluta e universal é alvo de perseguição e conversão para o bem de todos e da sociedade. Daí em diante, os inquisidores não se proibirão de perseguir os insubmissos e os desobedientes, e, nesse entusiasmo persecutório, racionalizar o genocídio em nome do bem maior [Versluis, p. 142]. Para isso, há quem alinhe, por cobardia, com a insanidade de certas ideologias; outros convertem-se inconscientemente em função de recompensas e promoções obtidas pela imposição da sua verdade a outrem.
Ao longo da história, são inúmeros os defensores que não explicam as câmaras de tortura, as fogueiras e as valas comuns da desumanidade que promovem através do medo, da paranoia e da divisão. O fim da confiança e da bondade básica da humanidade torna possível a objectivação e a exterminação de um ou mais grupos divergentes por meio de uma espécie de psicose colectiva. Seja esta gradual ou súbita, a razão e a decência deixam de ser possíveis num sistema de terror generalizado e avesso a inimigos fora do círculo ideológico. Como tal, a sociedade vira-se contra si própria, incitada pelas autoridades no poder, e a psicose colectiva reforça o poder dessas autoridades e, em particular, de um líder representativo ou ideólogo carismático como impulso e centro desse movimento autoritário, daí os totalitarismos terem no ditador o único vulto estável numa sociedade em declínio. Se a isto se aliar uma precedente crise sócio-económica, os fundamentalistas perseguirão os bodes expiatórios e propagarão um futuro melhor sem esses mesmos. E tudo à custa de um sentimento de culto que idolatra o grande líder e abomina o dissidente ou persona non grata do regime, o qual é livre de pensar que escolhe, desde que não o faça em voz alta e sem escolhas alternativas [Versluis, p. 145].
Nas sociedades democráticas, a unilateralidade e a irreversibilidade ideológicas existem na base da imitação social, tendo a hierarquia familiar um papel importante nesse processo. Com efeito, todas as sociedades começam e são governadas por um líder, cuja acção, além da necessidade de falar, implica a crença e a obediência dos seus seguidores [Tarde, pp. 77-78]. O poder da crença e do desejo colectivos é centralizado num único ponto, produzindo-se uma obediência e imitação massivas através de um fascínio focado [Tarde, p. 80]. A sociedade civilizada julga-se livre deste sono dogmático, quando, na realidade, vive presa na imitação de uns a outros com uma facilidade e rapidez espantosas. Quanto mais civilizada for uma sociedade, menos consciente está dessa imitação. Por outro lado, o amadurecimento e a progressiva aculturação do homem tornam-no susceptível à admiração, à imitação e à submissão a uma ideologia [Tarde, p. 83], com o seguidor a tomar a si o prestígio e a superioridade irresistíveis do líder que ele admira e segue, perdendo, sob o olhar deste, o auto-controlo e a percepção do seu próprio discernimento.
Vendo bem, o humano enérgico e autoritário exerce um poder irresistível sobre o humano mais frágil e leva-o a obedecer mais por necessidade que por dever. Assim começam os laços sociais, uma vez que as pessoas obedecem pela mesma razão com que acreditam, sendo o desejo e a crença do líder comuns aos do seguidor. O que o primeiro faz, o segundo faz, diz ou inclina-se a fazer ou a dizer de igual modo. Em suma, a obediência passa a ser irmã da fé.
Hoje em dia, a profusão e a disseminação ideológicas transmitem-se através de uma linguagem eufemística, manipuladora e de duplo sentido ao estilo do double-speak de 1984, de George Orwell. Essa linguagem finge comunicar quando na realidade não o faz; pelo contrário, faz o mau parecer bom e o negativo positivo; torna o desagradável atraente ou, pelo menos, tolerável; evita ou transfere a responsabilidade do seu sentido a outro referente; está em desacordo com o seu significado real ou presumível; esconde ou impede o pensamento e, em vez de o expandir, limita-o. Esta ambiguidade baseia-se na incongruência entre o que é dito ou fica por dizer e o que realmente é, entre a palavra e o referente, entre parecer e ser, entre a função essencial da linguagem — a comunicação — e a ilusão, a distorção, o engano, o enfatuamento, a tergiversação, a ofuscação do seu discurso [Lutz, pp. 1-2].
Seja como for, a linguagem tanto distingue os homens como os aproxima. No que a tal respeita, Aristóteles é bastante claro: o homem, por natureza, foi talhado para a sociedade civil. Na hipótese de não ter necessidade dos outros, não deixaria de querer viver com eles, uma vez que o interesse comum une-nos na medida em que cada um encontra, assim, melhores meios de subsistência e de segurança, sendo o Estado social não apenas uma forma pluralista de viver juntos mas de bem viver juntos [Aristóteles, p. 53].
Embora este ideal saliente a importância do discurso racional como função única e exclusiva do homem individual e social, a verdade é que a razão ocidental transformou-se num racionalismo mesquinho porque procura perseguir o seu próprio fim lógico, dirigindo-se, por isso, para o extremismo. Como uma maldição secreta em curso, tudo o que o Ocidente inventa e põe em marcha é pervertido na sua verdadeira natureza, avançando muito para lá das lutas de classes e das interpretações sociológicas. Significa isto que o Ocidente visa uma perfeição demasiado elevada e, ao invés, tende sempre a alcançar o poder. Esta é a sua tragédia final [Ellul, p. 148]. Para que tal não aconteça, a lógica política deve ser fundada na palavra e na contagem da palavra, na tolerância do contraditório, na aceitação de opiniões divergentes, na livre expressão e no livre debate de ideias.
Ainda assim, os homens não encontram estratégias que mudem a seu favor as regras do jogo da vida. Tal dilema sugere, por si só, uma hegemonia ideológica, que não é nem pode ser um credo articulado ou um conjunto de refrões que devam ser aprendidos, aceitos e creditados. Não. Essa hegemonia está, sim, incorporada na forma e no estilo de vida dos cidadãos, no modo como estes actuam e se relacionam. Não é pois necessário nenhum tipo de lavagem cerebral colectiva, já que a imersão do sujeito na vida social, em si modelada e prescrita mediante regras pré-estabelecidas, é suficiente para manter os actores e agentes sociais no aparato social da vida. Como tal, melhor se entende que uma ideologia é inseparável da ideia de poder e dominação, já que qualquer ideologia interessa a uma classe governante, cuja supremacia é assegurada por uma hegemonia ideológica. Para tal é necessária uma causa universal que leve a campanhas culturais capazes de fracturar ou dividir as classes sociais, de dissuadir a revolta colectiva através da hegemonia ideológica e de manter os dominados permanentemente entretidos, ocupados e dependentes da gestão de recursos disponíveis [Bauman, pp. 19-21]. Além disso, a pouca importância atribuída à subjectividade é céptica quanto à eficácia da intervenção humana e o cepticismo é reforçado pelo sentimento que exagera os resultados destrutivos da acção humana.
É disso exemplo o reconhecimento universal das alterações climáticas como fruto do abuso e da destruição ambiental a cargo da exploração humana, exemplo este que dificulta a crença numa visão humanista do mundo e o respeito geral pelas acções e criações humanas. Na ausência de alternativas, tal pode levar à suspeita de qualquer forma de intervenção humana, logo, a crítica exageradamente cínica não reforça o pensamento crítico mas a opinião de que não existem escolhas reais e que os limites da acção e eficácia humanas obrigam-nos a aceitar um destino pré-determinado. Esta ausência de escolha subentende-se nas ansiedades despertadas pela obsessão da sociedade com o risco — pode haver cautela, mas não escolha. Deste modo, a impossibilidade de prever o futuro conduz a uma única linha ideológica de acção possível: a da precaução ou da segurança — o que suscita ou uma visão utópica do futuro, ou um fatalismo resultante da visão altamente determinista da condição humana e do espaço em que a consciência humana pode operar [Furedi, pp. 175-176].
Apesar do que hoje se possa entender por ideologia, a obsessão crescente e fatalista da sociedade com o risco e a precaução incrementa uma impotência reforçada pela erosão da solidariedade social. O processo de individuação e a debilidade das relações de confiança contribuem para um intenso sentimento de isolamento, ao qual acrescentamos uma ideologia paralela à realidade de hoje e em franco crescimento desde meados do século XX, relativa ao homem organizado ou àquele que só trabalha e age de acordo com o que William Whyte apelida de “A Organização”, composta de indivíduos de classe média que, espiritual e fisicamente, se votam à idolatria da vida organizada.
Este tipo de homem é defensor de um individualismo colectivamente corporativista do qual se julga separado [Whyte, p. 7], e a sua ideologia, apesar de regida por uma ética social e ortodoxa, é, acima de tudo, organizacional e burocrática, exige fidelidade à organização e confere aos seus seguidores um sentido de dedicação extremo, convertendo ilegalidades em reafirmações de individualismo. A sua fé secular pode encontrar-se nos que juram nunca vir a pertencer a uma corporação ou agência governamental e tem como princípios “a crença no grupo como fonte de criatividade, a crença na “pertença” como necessidade última do indivíduo e a crença na aplicação da ciência para alcançar a pertença” [Whyte, p. 7]. Na sua essência, é uma fé utópica, pois, à superfície, parece dedicar-se aos problemas práticos da vida organizacional e a sua plenitude parece residir na promessa a longo prazo de que a técnica traz e assegura uma harmonia limitada e acessível, o que, como todas as utopias, compreende a sociedade num sentido bastante restrito e imediato [Whyte, pp. 7-8].
Esta ideologia, para além de cientificar as coisas, começa agora a cientificar o próprio homem e toda a estrutura social [Whyte, p. 24]. Como cientismo, faz do especialista um redentor e pode dar a indivíduos desiludidos e descrentes um propósito que permeia as linhas organizacionais e ocupacionais da vida activa. Independentemente do ramo de engenharia social que se lhe associe — comunicação de massas, engenharia do consentimento, relações públicas, publicidade, aconselhamento profissional ou pessoal — o indivíduo sente-se parte de um movimento maior e mais bem equipado para se orientar psicológica e tecnicamente nos meandros da nova rede organizacional, bem como para levar uma vida comunitária significativa e para se adaptar às mudanças constantes e cada vez mais exigentes da vida social. No melhor sentido do termo, o indivíduo torna-se partilhável porque compreende e aceita o seu papel social e está no mesmo caminho de todos, cujo destino, a bem dizer, ninguém conhece ou sabe definir. O desnorte, neste caso, é aceite, já que o sistema social tem favorecido os seus membros através das condições económicas e democráticas proporcionadas pela alta expansão industrial e tecnológica dos últimos anos. Nesta perspectiva, o sistema, para os crentes, é, no fundo, essencialmente favorável e benevolente, e, nesta época de pressões políticas, económicas, mediáticas e sociais altamente organizadas, exige-se do indivíduo uma adaptação rigorosa e um esforço constante, cabendo-lhe, por igual, articular e orientar a sua filosofia de vida para e por uma ética, pela e para a conformidade.
Em última análise, e como solução possível às questões apresentadas, (re)educar os homens para a liberdade começa pela afirmação de factos e pela enunciação de valores, seguidas de um desenvolvimento técnico adequado à sua realização e um combate contra aqueles que, por qualquer motivo, decidem ignorar os factos da diversidade individual e da singularidade genética e negar os valores da liberdade, da tolerância e da caridade mútua como corolários éticos desses factos [Huxley, p. 131]. Tais negacionistas, sejam eles ditadores, gestores ou cientistas, parecem querer reduzir a diversidade e as diferenças inatas da natureza humana a um tipo de uniformidade fácil de lidar. É pois imperioso que o homem moderno não se minimize sob pena de, com isso, se limitarem liberdades, garantias e direitos essenciais das democracias.
No entanto, factos e princípios sólidos não chegam para (re)educar a população à liberdade, pois “uma verdade desinteressante pode ser eclipsada por uma falsidade apaixonante” [Huxley, p. 141]. A essa (re)educação convém, entre outras coisas, o uso e o ensino adequados da linguagem de modo a evitar a manipulação social e mental através da propaganda ou da censura. Ao invés, a liberdade de expressão permite o uso ilimitado da linguagem, sobretudo quando os cidadãos aceitam passivamente a informação que lhes é dada em detrimento de um saber cuja preocupação recai na qualidade da vida humana. De resto, o conhecimento tem como propósito responder às solicitações da faculdade criadora do homem e escolher com discernimento e bom senso o que o pode ajudar a viver melhor [Vanegeim, pp. 21-22]. A liberdade de expressão confere à palavra a vida indissociável da vivência quotidiana, sem a qual a língua estagna e se trivializa. Há pois que devolver à linguagem a sua vocação poética originária [Vanegeim, p. 27], restituir às informações a qualidade de que o seu excesso quantitativo as despoja, confiar à consciência dos homens o encargo de privilegiar as palavras que lhes são úteis e reciclar as que os prejudicam.
Aceitar que tudo seja dito é, no fundo, aprender a separar, a selecionar, a descodificar, a criticar, a não cair na dependência de encenações e manipulações espectaculares a cargo dos media e de mecanismos políticos e institucionais. Não serão a censura nem a repressão a erradicar os discursos de ódio, o fanatismo, a estupidez, a desinformação ou o consumismo desenfreado do homem moderno. A liberdade de expressão é de todos e não dos poucos que a ultrajam por se recearem a si mesmos e se intimidarem ante o ridículo e o grotesco. Os seus medos e lamentos continuarão sem reconhecerem que o futuro da palavra livre lhes pertence [Vanegeim, pp. 98-99].
Todavia, como é comum aos pensadores deste e doutros tempos, o homem livre nunca o é propriamente e não deixa de estar psicologicamente cativo. Representado pelo Estado e sujeito às suas leis, é alvo de imposições ordenadas por este ou por interesses privados no seio do aparelho político. Sob esta medida, a natureza da compulsão psicológica determina que os que agem sob coacção julgam agir de livre vontade ou por iniciativa própria. A vítima mentalmente manipulada desconhece que é vítima. Os muros da sua prisão, manifesta na servidão objectiva a outros, são invisíveis.
Nestas circunstâncias, prevê-se uma futura inversão do processo democrático nos países ocidentais. A substância subjacente a tal mudança surgirá, porventura, como um totalitarismo não-violento, o qual, ao contrário de coagir directa e violentamente, permitirá a ilusão perfeita da liberdade individual e à qual se acrescentará a tendência e o efeito veloz do progresso e a idolatria do espectáculo e do trabalho. Este totalitarismo gozará de maior eficácia que os do passado, cujo fracasso, segundo Aldous Huxley, se deveu a não terem fornecido ao povo dose suficiente de pão e circo, bem como de não terem usufruído de um sistema mais eficaz de manipulação dos espíritos. Sob o domínio de uma ditadura científica, será mais fácil às massas amarem a sua servidão e jamais sonharem ou ansiarem pela revolução. Aliás, “não parece haver qualquer razão válida para que uma ditadura fundada em métodos científicos venha algum dia a ser derrubada” [Huxley, p. 156].
Mais ainda: os cenários traçados por Orwell ou Huxley são cada vez menos avisos que instruções. A impô-los há hoje uma variedade de “mecanismos de fuga” psicológicos que permitem uma sensação aparente de pertença à custa da perda do indivíduo num corpo social maior [Weissman, p. 26]; algo já tentado no passado por instituições reformistas e religiosas (a Reforma Protestante e o Calvinismo, p. ex.), em que o indivíduo passou a não obedecer a autoridades abertamente externas, como a Igreja, mas à consciência de uma culpa interior que o obriga a trabalhar incessantemente mediante o medo da morte e na senda de uma salvação ou ideologia redentoras. Acontece que, tanto antes como agora, procuramos um efeito dopamínico que motive e gratifique a vontade dos nosso actos, seja pela via religiosa, seja através dos mecanismos operativos e espaços virtuais de condicionamento e conformidade das redes sociais.
Michel Houellebecq defende que a informação, enquanto “produto residual da impermanência”, opõe-se à significação. Uma sociedade híper-informativa “não implode necessariamente, mas mostra-se, sem dúvida, incapaz de produzir um sentido, uma vez que toda a sua energia é monopolizada pela descrição informativa das suas variações aleatórias”. De forma a resistir às ideocracias modernas, cada um de nós pode produzir, por si mesmo, “uma espécie de revolução fria, ao colocar-se momentaneamente fora do fluxo informativo-publicitário”. Em função disso, “basta marcar um tempo de paragem; apagar o rádio, desligar a televisão; decidir não comprar […] [nem] desejar comprar mais nada. Basta deixar de participar, deixar de saber; suspender temporariamente toda a actividade mental; basta, literalmente, ficarmos imóveis durante alguns segundos” [Houellebecq, p. 32]. Ou, no entender de Kafka: “não é necessário sair de casa. [Basta] ficar à mesa e escutar. Não escutar sequer, esperar. Não esperar sequer, estar completamente quieto e só. O mundo oferecer-se-á para que seja desmascarado, não tem outra escolha, serpeará perante [cada um de nós,] em êxtase” [Kafka, p. 133].
Referências Bibliográficas:
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• Aristóteles. A Política. Martins Fontes, São Paulo, 2006
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• Ellul, Jacques. The Betrayal of the West. The Seabury Press, Nova Iorque, 1978
• Furedi, Frank. Culture of Fear Revisited: Risk-taking and the Morality of Low Expectation. Continuum, Londres, 2007
• Horkheimer, Max. Dawn & Decline: Notes 1926-1931 and 1950-1969. The Seabury Press, Nova Iorque, 1978
• Houellebecq, Michel. Intervenções. Alfaguara, Lisboa, 2021
• Huxley, Aldous. Regresso ao Admirável Mundo Novo. Antígona, Lisboa, 2014
• Kafka, Franz. “Aforismos”. Assírio & Alvim, Lisboa, 2008
• Lutz, William. Doublespeak. HarperPerennial, Nova Iorque, 1990
• Reich, Wilhelm. Psicologia de Massa do Fascismo. Publicações Escorpião, Porto, 1974
• Ricoeur, Paul. História e Verdade. Companhia Editora Forense, Rio de Janeiro, 1968
• Tarde, Gabriel. The Laws of Imitation. Henry Holt and Company, Nova Iorque, 1903
• Vanegeim, Raoul. Nada é Sagrado, Tudo pode ser Dito: Reflexões sobre a Liberdade de Expressão. Parábola Editorial, São Paulo, 2004
• Versluis, Arthur. The New Inquisitions: Heretic-Hunting and the Intellectual Origins of Modern Totalitarianism. Oxford University Press, Nova Iorque, 2006
• Weissman, Jeremy. The Crowdsourced Panopticon: Conformity and Control on Social Media. Rowman & Littlefield, Londres, 2021
• Whyte, William H. The Organization Man. University of Pennsylvania Press, Filadélfia, 2002