Hoje, abordar-se-ão brevemente, e até algo anarquicamente, aqui, alguns conceitos relacionados com a definição de obrigações financeiras — em inglês, bonds — e outros relacionados.
Bond significa, em inglês, essa tal obrigação, um pouco equivalente a um contrato, mas com promessa de entrega futura de bem acrescido — com mais valor. Etimologicamente, e na grande árvore das palavras relacionadas, encontramos a definição de um círculo que encopassa, junta, por obrigação, e prende: a banda, bond, bund, em alemão; o sâncristo बन्ध , bandh, nó, ligação forte. Uma coisa apertada, irmanada — também ligado o significado a brother, e a sua equivalência em germânico — e, por força, indissociável.
Mais à frente, no universo moderno, das mil e uma rápidas e digestíveis associações, temos o herói e anti-herói James Bond, assim como também o bondage, a prática psico-erótica de ser amarrado, estar preso, impossibilitado e limitado nos movimentos.
Na definição mais lata do bond, e numa reflexão mais panorâmica, temos o contraste entre os extremos da simples ligação, sem conotação vinculatória, e o abraço de urso do comprometimento absoluto, nexos lógicos envolvidos nesse círculo criado pelo acordo.
Na imagem acima, um dos contratos mais antigos de troca ou venda de propriedade: no caso, uma habitação e, como brinde, um escravo. Um documento que data dos sumérios, mais de dois mil anos antes de Cristo. Ao lado, aquele que parece ser o título de obrigação mais antigo conhecido, também de data semelhante, da babilónia.
É importante começar por notar, em aspectos que se relacionem com descrições económicas do mundo, que são primariamente as relações humanas que contêm a relação económica, e não o contrário. É de privilegiar, tanto nas descrições dessa ciência humana, a economia, como de outras, como os termos são e devem ser tipicamente usados na sua ambiguidade universalizante, onde é privilegiado o funcionamento analógico e não o modelo estrito de significante e significado. O bond é, primeiramente também, como tantos outras disposições morais, logocêntrico: é fundamental a ligação à palavra, ao voto (e como vemos em muita literatura sobre o assunto, dinheiro é palavra).
Uma breve incursão em Shakespeare é aqui bem-vinda, onde o tópico do dinheiro, da dívida e da relação humana — e frequentemente trágica — daí advinda é quase sempre, de modo ou outro, central, e com desculpas pelo meu desconhecimento das peças tornar a descrição pouco clara. Em Merchant of Venice, em primeiro lugar, a peça com mais referências ao termo, algumas anafóricas, confunde-se a ligação financeira com a ligação emocional da amizade. Em Comedy of Errors, bond e novo bond do casamento. A personagem Teseu em Midsummer Night’s Dream e Cordelia em King Lear mencionam também o termo enquanto voto e remetendo para a correspondente ligação emocional, cuja formalidade Lear rejeita (mas Cordelia também rejeita uma formalidade, a da retórica requerida por Lear). Em Timão de Atenas, o ócio é punido com a vida própria dos bonds contraídos, que dominam o protagonista, e aqui destaca-se a atribuição da qualidade da vida a instrumentos da finança, o que tem tudo a ver com idolatria, etc.
Na imagem acima, um título do séc. xvi, holandês, quase contemporâneo de Shakespeare, que ainda está a pagar juros. Não é certo, e aqui convém lembrar, que este seja a versão actual do título de obrigação, existindo provavelmente registos ou documentos adicionais que representam versões actuais do seu conteúdo, talvez até devidamente emendadas ao longo do tempo. Ou seja, bonds, obrigações, não são objectos físicos: são promessas, são texto e, por conseguinte, espécie de património imaterial feito de memória mas sustentado por indicadores físicos. Podem existir com pergaminho ou sem os mesmos. Podem existir sem contrato, como o exemplo que veremos um pouco a seguir.
É de notar que, tanto em Shakespeare como na arte performativa em geral, o uso das palavras em performance permite a sua digestão de modo mais emocional, facilitando assim essa leitura analógica do bond como personificado. Em Troilus e Cressida, e também em Macbeth, temos referências à ligação, o bond, entre o homem e o divino: no primeiro caso, o impossível acontece e o laço é quebrado; no segundo, há um desejo faustiano de libertação da providência. Ainda em Cymbeline, o bond é o frio da vida, e todos estes casos se referem ao ultimate bond, o do divino ao homem, ou do ser à vida. Em Macbeth, o bond da promessa, ao matar Macduff, e em Timão, o laço do casamento de um serviçal deriva do laço da amizade. A personagem Apemantus, filósofo cínico, em Timão, desconfia de qualquer laço. Brutus, em Júlio César, equivale a palavra ao laço, continuando o tema do voto, da promessa, através do logos. Finalmente, Coriolanus privilegia o laço familiar aos contratuais: esta tensão é encontrada em inúmeras peças, e mistura o natural com o artificial, o intencional com o providente, de modos inesperados e não sistematizáveis.
Já na contemporaneidade, em James Bond, o laço é também o do dever, de um dever particular à coroa e ao militarismo. Na descrição de Ian Fleming, o apelido é “brief, unromantic, Anglo-Saxon and yet very masculine name”. No entanto, apesar de, e principalmente por ser amarrada, é intensamente romântica. Curiosamente, na biografia ficcional de uma das encarnações da personagem, só uma vez Bond casou — para ter, minutos depois, tragicamente, a sua recém-mulher logo assassinada. Durou pouco a convivência do Bond-com-a-coroa, ou, noutra visão mais romântica e individualista, do Bond-em-si-mesmo, com o laço adicional. Talvez isso indique que não é possível acumular várias obrigações, entrando estas em conflito — e, de facto, obviamente o assassinato proveio de razões relacionadas com a sua actividade profissional. Mais à frente — muito à frente? — na prática do bondage, a objectivação do sujeito é causa de prazer: transformação do sujeito em objecto, experiência estética, através de um laço que é anti-natural, e por isso psicologicamente excitante. Tanto no contrato financeiro como no bondage, o mais precioso do ser destina-se à dádiva ou à troca, e a vida é posta nas mãos de outrem. O caso a seguir é exemplar desse tipo de disposição.
Chegamos assim ao contrato mais famoso e mais poderoso de todos os tempos e de todas as culturas, o casamento, mesmo sobrevivendo a algumas invenções modernas. É bom lembrar que, de todos os arranjos maritais concebidos ao longo do tempo, é difícil pormenorizar qual é o mais antigo: se o civil, o religioso, ou o estatal. Difere o primeiro do terceiro no facto de ser possível nalguns sistemas legais o reconhecimento de facto de um common law marriage, ou seja, o mero ajuntamento de pessoas, sem qualquer vínculo contratual que o ateste. Novamente, a obrigação, o bond, a promessa, é logocêntrica, pois depende de enunciados, mas não depende de suporte físico. Mesmo entre dívidas de bens ou dinheiro, entre pessoas, a palavra dada pode ser suficiente, a nível judicial, para atestar um bond.
Por último, a prática fetichista e extremista do bondage, em que já não é um fim exterior do bond que mobiliza a acção, mas o prazer retirado do próprio bond. Não é certo se em Shakespeare ou na finança antiga ou moderna podemos encontrar equivalências neste bondage pelo bond: o ideal supremo da estética kantiana, a arte, a finalidade sem fim. Ninguém se prende, aqui, com fim a um benefício ulterior, a um cálculo de subtracção presente que levará a adição futura; é um bond que contém um fim em si mesmo. Daqui, para diante, deixamos aos leitores a consideração sobre outros níveis desta fantástica construção da psique humana: aquela que envolve ficar preso a outra coisa por vontade própria, por mera obrigação moral, contratual, metafísica.