Duelo de Titãs: Liberdade de Expressão vs. Discurso de Ódio (o Tratamento pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos)

Texto de Vanessa Nunes Monteiro. Revisão de Ricardo Fortunato. Paper no âmbito do Mestrado em Direito com especialização em ciências jurídico-criminais orientada pela Professora Doutora Paula Margarida Cabral Santos Veiga e apresentada no âmbito de Direito Constitucional II. Imagem: Part of the berlin wall in front of the Human’s Right building; Author, François, from Strasbourg, France.

Índice

I – Introdução 4
II – Do direito à liberdade de expressão – a proteção multinível 5
III – O discurso de ódio: as dificuldades da sua delimitação 8
Os fatores em consideração 10
Suprimir ou proteger? 13
IV – A jurisprudência de Estrasburgo 18
O artigo 10º, nº2 CEDH 18
O artigo 17º CEDH 23
V – Considerações finais 25
VI – Bibliografia 26

«Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.»

Artigo 1º Declaração Universal dos Direitos Humanos

I – Introdução

Ainda com o sangue fervente dos regimes totalitários do último século, que tiveram lugar por toda a Europa, a liberdade de expressão assume-se como a melhor arma de um povo outrora oprimido. A construção de um «país mais livre, mais justo e mais fraterno»[1] exige a proteção do direito à liberdade de expressão de todos, sem esquecer, contudo, que este direito não vive isolado no catálogo dos direitos fundamentais. Num Estado de Direito democrático baseado na dignidade da pessoa humana, urge saber qual a resposta a dar quando o direito a exprimir e a divulgar, por qualquer meio a que se tenha acesso, ideias e opiniões[2] assume a forma do designado discurso de ódio, apto a criar um ambiente ameaçador, qual veneno lento que mata aos poucos[3], para os visados de tal discurso.

Confrontados com um duelo de titãs – por um lado, a liberdade de expressão, concretizadora de uma sociedade democrática;[4] por outro lado, o discurso de ódio, que mina, ele próprio, a coesão social e o reconhecimento genuíno de respeito pela diversidade, sobre os quais se constrói uma democracia[5] – procuramos analisar o discurso de ódio como limite à liberdade de expressão, entender o tipo de discurso suscetível de constituir discurso de ódio, os diversos fatores subjacentes e ainda o tratamento deste problema pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. No presente ensaio não se almeja a descoberta de verdades absolutas, nem tampouco a imposição de ideias, mas sim uma contribuição para a compreensão de um problema atual que tem vindo a proliferar-se nos últimos anos com a crise de migração, a convulsão política devido ao populismo e a desinformação[6] associada a uma educação lacunosa.

II – Do direito à liberdade de expressão – a proteção multinível

O direito à liberdade de expressão é, no seu âmago, uma condição fundamental do progresso e da realização individual[7], que ascende à sua incontestável importância, não quando estamos perante opiniões e ideias concordantes, tidas como consensuais pela maioria, mas quando somos confrontados com opiniões e ideias discordantes[8] e até mesmo ofensivas, chocantes e preocupantes.[9] Não é surpreendente, portanto, o amplo reconhecimento deste direito, não só em variadíssimas Constituições nacionais, mas também nos diversos instrumentos internacionais, conduzindo à proteção multinível de direitos fundamentais.

Esta proteção multinível permite que os direitos fundamentais sejam protegidos além fronteiras nacionais, reforçando-se, deste modo, a sua proteção ao ampliá-la a nível regional e global,[10] verificando-se, com efeito, diversos patamares de proteção dos direitos fundamentais, reconduzindo-se a diversos graus de juridicidade dos direitos fundamentais.[11] Deste modo, uma eventual violação do direito à liberdade de expressão poderá ser apreciada pelos tribunais nacionais – com fundamento na Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) –, como também pelo Tribunal de Justiça da União Europeia – com fundamento na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – e ainda, com especial relevância para a presente exposição, pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (doravante, TEDH) – com fundamento na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (doravante, CEDH).[12] No que à consagração da liberdade de expressão em instrumentos internacionais diz respeito, em 1789 a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão consagrou no artigo 11º que «a livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos pela lei».[13] Seguem-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos[14] de 1948, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem[15] de 1950, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos[16] de 1966, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[17] de 2000, entre tantos outros.

Já na nossa Lei Fundamental, o direito à liberdade de expressão encontra abrigo no artigo 37º, sistematicamente integrado na Parte I, referente aos direitos e deveres fundamentais, Título II, relativo aos direitos, liberdades e garantias. Nas palavras do célebre constitucionalista Jorge Miranda, «os direitos, liberdades e garantias são direitos de autonomia, de manifestação, de individualização: revelam a essência da pessoa».[18] A doutrina tem vindo a conferir à liberdade de expressão várias finalidades substantivas, que têm o condão de simplificá-la e fazer-nos compreender o que está em jogo quando há interferências neste direito liberdade, destacando-se, neste seio, a obra do professor Jónatas Machado.[19] Procurando elencar, de uma forma que não se quer exaustiva, as tais finalidades, a bem ver intricadas umas nas outras, surgem-nos, desde logo, a procura da verdade[20]; o mercado livre das ideias[21]; a autodeterminação democrática[22]; o controlo da atividade governativa e do exercício do poder[23]; o estabelecimento da esfera aberta e pluralista do discurso público[24]; a garantia da diversidade de opiniões[25]; a acomodação de interesses juntamente com a transformação pacífica da sociedade[26]; a promoção e expressão da autonomia individual[27]; e, por fim, a formação de concepção multifuncional das liberdades de comunicação[28].

III – O discurso de ódio: as dificuldades da sua delimitação

Assente a importância da liberdade de expressão, tanto a nível individual, como a nível comunitário, facilmente se compreende que limitá-la exige uma justificação especial.[29] Se é certo que uma sociedade amordaçada não é uma sociedade livre[30], certo é que não existem direitos fundamentais absolutos e ilimitados[31] e o direito à liberdade de expressão não é exceção. Caberá, então, analisar com cuidado os possíveis limites à liberdade de expressão, configurando-se o discurso de ódio o limite paradigmático neste âmbito. Com efeito, eis a derradeira questão – o que é, afinal, o discurso de ódio?

O ser humano com o decorrer dos tempos foi aperfeiçoando os seus conhecimentos, o que culminou com a realização de grandes feitos que se manifestam na grande obra humana, percetível quando paramos para observar o que nos rodeia. No entanto, o ser humano longe está de alcançar um patamar civilizacional que se prime, essencialmente, pela tolerância relativamente aos «outros», que são, contudo, nossos iguais. A tolerância não é mais do que reconhecer as diferenças e compreendê-las, isto é, reconhecer o direito a ser distinto[32], porém, algo que pode parecer simples, revela-se, na verdade, o calcanhar de Aquiles da raça humana. Neste sentido, o discurso de ódio é tão-só a manifestação de uma intolerância, mas esta não é uma intolerância qualquer e, por isto mesmo, aquele não é um discurso qualquer.

Apesar de não ser possível definir com precisão os discursos que serão qualificados e tratados como discurso de ódio, o Comité de Ministros do Conselho da Europa, através da Recomendação nº (97) 20, avançou que este tipo de discurso «deve ser compreendido como a cobertura de todas as formas de expressão que espalham, incitam, promovem e justificam ódio racial, xenófobo ou antissemita, ou outras formas de ódio baseadas na intolerância, incluindo: intolerância expressa por um nacionalismo agressivo, discriminação e hostilidade contra minorias, migrantes e outras pessoas de origem imigrante». Já o académico britânico Bhikhu Parekh[33] dispõe três principais características do discurso de ódio – o discurso é dirigido comumente a um grupo de indivíduos com base em características arbitrárias ou normativamente irrelevantes[34]; em segundo lugar, o discurso estigmatiza o grupo-alvo ao, implícita ou explicitamente, atribuir-lhes qualidades tidas como indesejáveis; e, por último, o discurso de ódio seleciona o grupo-alvo como uma presença indesejável e objeto legítimo de hostilidades.

Estas definições ou, pelo menos, linhas de orientação, ajudam-nos a perceber quais são os discursos que devem ser punidos. São eles os discursos que têm a aptidão de espalhar, incitar, promover ou justificar o ódio baseado numa característica que, em princípio, une um grupo de pessoas, seja a religião, a cor da pele, a etnia, a orientação sexual, etc. Será punido aquele discurso que apresenta a aptidão[35] para desencadear um processo violento relativamente aos por ele visados. No entanto, a aferição desta aptidão[36] não é realizada a priori, sendo apenas possível caso a caso, analisando as várias circunstâncias[37] que permeiam a situação. Deste modo e apesar de a regulação do discurso de ódio ser essencial, para efeitos de certeza e de segurança jurídica, a apreciação casuística de um potencial caso de discurso de ódio permitirá uma melhor análise da situação, especialmente quando do outro lado surge o direito à liberdade de expressão. Parece-nos, neste sentido, que uma ponderação, tendo em conta os fatores em consideração explicitados infra, é o que oferece uma melhor resposta à sensibilidade do tema. É neste espaço que procuramos responder à questão de saber quando é que a intolerância demonstrada pelo discurso de ódio se torna intolerável e, portanto, punível.

Os fatores em consideração

Surge como primeiro fator a ter em consideração o tom da expressão[38] que é revelado pelo próprio conteúdo, sendo certo que a intensidade e a gravidade aumentam de tom em função das palavras proferidas. O discurso de ódio não se reduz a uma falta de respeito, desaprovação ou visão negativa de um determinado grupo, é sim a projeção de uma hostilidade, desprezo severo, rejeição e ainda desejo de prejudicar ou destruir aquele grupo que partilha determinada característica[39].

Focando-nos, neste momento, numa intolerância que radica na orientação sexual, não é a mesma coisa afirmar «não gosto de homossexuais!» e afirmar, por sua vez, «os homossexuais deviam ser exterminados!» ou «homossexuais violam crianças e, por isso, deviam ser abatidos.» Ora, da primeira declaração para a segunda e para a terceira o tom mudou, aquilo que era um mero preconceito passou a ser uma expressão odiosa que incita ao ódio e à violência de todo um grupo de pessoas.

De seguida, alguns autores[40] entendem que é necessário avaliar a intenção do agente que profere o discurso. Pensa-se, a este propósito, que a intenção de que aqui se fala remete simplesmente para a intenção do agente de ofender a integridade pessoal dos visados, o que alerta para o próprio contexto em que o discurso foi proferido, como iremos ver infra. Ora, tendo em conta as alterações legislativas que se verificaram no ordenamento jurídico português, a intenção específica[41] do agente foi desconsiderada. No nosso Código Penal, o discurso de ódio é incriminado por força do artigo 240º sob a epígrafe – que também tem vindo a sofrer alterações – «Discriminação e incitamento ao ódio e à violência». Antes da redação dada pela Lei nº94/2017,[42] o artigo 240º, sob a epígrafe «Discriminação racial, religiosa ou sexual», exigia que a conduta fosse praticada com a «intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar».

Revela-se como fator a considerar ainda os alvos do discurso de ódio. Apesar de, em princípio, todos poderem ser alvos de um discurso de ódio,[43] normalmente, é apenas criminalizado o discurso que se dirige contra certos grupos[44] – os grupos historicamente marginalizados.[45] A discriminação histórica de certos grupos torna-os, desde logo, mais vulneráveis. Assim, facilmente depreendemos que um discurso de ódio dirigido a estas minorias sociais potencia o crescimento dessa vulnerabilidade, podendo conduzir a uma (maior) exclusão, marginalização e isolamento dos membros desses grupos.

Outro fator em consideração é o do contexto em que o discurso é proferido, que está naturalmente relacionado com outro fator – o potencial lesivo do discurso em causa. Como dito supra, a intenção do agente de ofender a integridade pessoal dos alvos depende do próprio contexto em que as declarações são proferidas, uma vez que se estas tiverem lugar, por exemplo, numa conversa privada entre amigos, então, aquela intenção parece não se verificar. O mesmo não se pode dizer quando as declarações são proferidas publicamente, em que várias pessoas, inclusive os alvos desse discurso, têm acesso[46]. Esta variável já está compreendida no artigo 240º do nosso Código Penal quando dispõe «quem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação».

Ademais, o contexto poderá ser entendido de acordo com as circunstâncias históricas e culturais que envolvem o discurso[47], que terá, por fim, relevância na averiguação do potencial lesivo desse mesmo discurso[48]. É com base nestas considerações, que é possível afirmar que o mesmo discurso poderá ser entendido como um discurso de ódio, num determinado local, e já não ser perspetivado como discurso de ódio noutro local, pois depende das tensões sociais[49] que se fazem sentir. É notório que em Portugal um discurso inflamado pelo anti-ciganismo[50] seria considerado discurso de ódio, uma vez que o contexto histórico e social português demonstra uma intolerância relativamente à etnia cigana.[51] Consequentemente, este contexto dita um potencial lesivo significativo desse discurso porque trata-se de um grupo já vulnerável, mas que seria ainda mais marginalizado, excluído e isolado por força das declarações proferidas, uma vez que o dano do discurso será tanto maior quanto maior for o sentimento de exclusão.[52]

Também terá impacto na apreciação do potencial lesivo do discurso, não só o contexto histórico, cultural e social, mas também o próprio orador[53]a posição ou o estatuto do orador pode aumentar o impacto do discurso. A este propósito, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos entende que professores, políticos[54] e até mesmo desportistas famosos têm um especial dever de responsabilidade perante a sociedade, em virtude da influência que exercem. No caso Féret c. Bélgica expõe o Tribunal que «é o dever dos políticos de se abster de usar ou defender discriminação racial e recorrer a palavras ou atitudes que são vexatórias ou humilhantes porque tal comportamento arrisca em fomentar reações no público que são incompatíveis com um clima social pacífico e pode erodir a confiança nas instituições democráticas».

Brussels, BELGIUM: Daniel Feret (L), Chairman of the Belgian FN (Front National) far right party, sits besides Walloon MP Charles Petitjean (R) to hear the sentence at his trial before the appeal court of Brussels, 18 April 2006. HERWIG VERGULT/AFP via Getty Images)

Expostos os fatores a ter em consideração para a classificação de um discurso de ódio, importa, de seguida, avaliar diligentemente o impacto do discurso de ódio numa sociedade democrática e, principalmente, nos membros do grupo-alvo, e apurar se, afinal, deve este discurso ser suprimido, ou, ao invés, admitido ao abrigo da liberdade de expressão.

Suprimir ou proteger?

A questão de suprimir ou proteger, ao abrigo da liberdade de expressão, o discurso de ódio é uma querela que tem conhecido diferentes respostas conforme os ordenamentos jurídicos em análise. Se na Europa há uma tendência para suprimir esses tipos de discursos, já nos Estados Unidos[55] o paradigma é a aceitação. Vejamos isto a partir de uma dupla perspetiva – se, por um lado, temos um discurso a ser proferido que, à partida, seria albergado pela liberdade de expressão, por outro lado, o mesmo discurso ofende o direito à igualdade[56], a dignidade humana e ainda a segurança dos destinatários.

A supressão do discurso de ódio revela-se assustadora para certos autores, que vêem nela o retorno aos tempos negros da censura. Robert Charles Post, jurista norte-americano, acredita que a liberdade de expressão passa por permitir às pessoas, numa sociedade heterogénea, a convivência pacífica porque a ninguém é vedado o seu direito a expressar-se da forma que entender.[57] Nesta senda, a supressão do discurso de ódio obstaculiza essa convivência pacífica. Porém, parece-nos que convocar a convivência pacífica numa sociedade heterogénea para apoiar a proteção do discurso de ódio, ao abrigo da liberdade de expressão, revela-se, em si mesmo, contraditório. A restrição à liberdade de expressão que se procura realizar quando em causa está um discurso de ódio não deve ser observada brandamente, isto é, não se procura oprimir qualquer opinião, por mais conflituosa, ofensiva ou antiética que seja, procura-se sim não permitir um discurso que atenta precisamente à convivência pacífica das pessoas numa sociedade multicultural, que se quer tolerante.

Não se almeja, neste âmbito, qualquer ditadura do «politicamente correto», arma de arremesso, não raras vezes, incorretamente utilizada. Dizia o Ministro Marco Aurélio, relativamente ao caso Ellwanger, que «garantir a expressão apenas das ideias dominantes, das politicamente corretas ou daquelas que acompanham o pensamento oficial significa viabilizar unicamente a difusão da mentalidade já estabelecida, o que implica desrespeito ao direito de se pensar autonomamente». Permitindo-nos discordar, reduzir a supressão do discurso de ódio à imposição do politicamente correto é, a bem ver, reduzir o direito à igualdade e à não discriminação, a segurança, a liberdade e, no fundo, a dignidade humana dos visados a esse fenómeno, o que parece desprovido de sentido. A dignidade humana, raiz de todos os direitos fundamentais[58], é colocada em causa quando confrontada com uma situação de discurso de ódio, pois os membros do grupo visado[59] são estigmatizados, negando-se-lhes a capacidade de viver como membros responsáveis da sociedade, ignorando a individualidade de cada um e as suas naturais diferenças, reduzindo-os somente a uma característica que partilham.[60]

Siegfried Ellwanger em sua casa (BBC Brasil)

Além disso, a própria segurança e liberdade dos membros atingidos pelas declarações são colocadas em causa. As declarações proferidas implicam para os visados um medo constante de verem contra si concretizadas ações violentas. Num exemplo elucidativo, Jeremy Waldron na sua obra afirma que o discurso de ódio (no exemplo dado, dirigido aos muçulmanos) envia uma mensagem bastante clara aos membros da minoria visada – «Não sejas ingénuo a pensar que és bem-vindo. A sociedade à tua volta pode parecer afável e não discriminatória, mas a verdade é que vocês não são queridos e vocês e as vossas famílias serão evitados, espancados e excluídos, sempre que conseguirmos. Podemos ter de ser discretos agora, mas não fiquem demasiado confortáveis».[61] Ainda a este propósito da liberdade e da segurança, o acórdão do Tribunal Constitucional nº479/94 relembrou-nos que a liberdade sem segurança não é liberdade nenhuma, pois «uma liberdade para viver num clima de intranquilidade e de desordem é uma liberdade sem sentido e, por isso, sem conteúdo. O Estado de Direito, que é um Estado de liberdade, para respeitar a pessoa na sua dignidade transcendente, tem de aceitar constrições à liberdade e justamente para assegurar essa liberdade.» Além disto, Owen Fiss[62] considera que a própria liberdade de expressão daqueles visados pelo discurso fica em causa porque «tende a diminuir o senso de valorização das vítimas, impedindo a sua total participação em muitas das atividades da sociedade civil, incluindo o debate público. Mesmo quando essas vítimas falam, as suas palavras são desprovidas de autoridade, é como se elas não tivessem dito nada».[63] Enquanto há autores que defendem que apenas a aceitação de todas as ideias e opiniões, por mais extremas e questionáveis que sejam, é que permite o debate social e político verdadeiramente democrático,[64] o que na realidade acontece, na senda do propugnado por Fiss, é que a permissão de declarações que incitem ao ódio e à violência não promovem um debate político e social democrático, antes pelo contrário, pois o que acontece é o silenciamento dos visados pelas declarações, cuja vulnerabilidade e sentimento de exclusão, potenciados pelo discurso, torna-os a parte mais frágil do debate político e social.

Do lado da proteção do discurso de ódio, há quem considere que a sua supressão, através da condenação criminal, não é a melhor solução e que o combate ao discurso de ódio deve passar por dotar as minorias de melhores condições para expor as suas ideias e convicções e, assim, proporcionar efetivamente um debate público em que todos se encontram em igualdade de condições.[65] Utopicamente falando, sem dúvida que a melhor solução é esta. Porém, confrontando a realidade em que vivemos, em que o discurso de ódio domina cada vez mais o espaço público e as redes sociais, dirigindo-se, principalmente, aos ciganos, aos afrodescendentes, aos homossexuais, aos emigrantes, aos muçulmanos e às mulheres[66], outros instrumentos de combate precisam de ser avocados. Com efeito, parece-nos que o combate ao discurso de ódio deve ocorrer em duas frentes – no domínio educacional, promovendo-se o debate pacífico de ideias, incluindo mesmo as ideias ofensivas e chocantes, porque ainda nos encontramos no domínio de um debate público e pacífico marcado pelas diferentes convicções, fomentando-se, a realização de contranarrativas,[67] sem, no entanto cair na ingenuidade de que todos são dotados do mesmo poder da palavra; e, por isto mesmo, o direito penal é chamado a intervir, perante um discurso que incita ao ódio e à violência, assim sendo, uma intervenção penal afigura-se necessária relativamente a esta conduta que ofende bens jurídico-penais.

É de se concluir que as declarações classificadas como discurso de ódio não devem ser protegidas pelo direito à liberdade de expressão, o que é confirmado por vários instrumentos internacionais[68]. Os tempos voláteis que vivemos não nos permitem ignorar estas declarações que tantos danos fazem aos visados por elas, à sociedade democrática e à ordem social. Proteger o discurso de ódio é anuir com o enfraquecimento da democracia, com a propagação do medo e da insegurança, com o silenciamento de grupos que já foram silenciados por demasiado tempo, com a ideia de que há seres humanos superiores e inferiores e com a manutenção das estruturas discriminatórias e intolerantes que contaminam a nossa sociedade, deixando-a doente. Para terminar este capítulo, Karl Popper, na sua obra «A sociedade aberta e os seus inimigos», dispõe sobre o paradoxo da tolerância[69], através do qual uma tolerância ilimitada levaria ao próprio desaparecimento da tolerância. Alerta, no entanto, que não é o seu objetivo suprimir todas as declarações intolerantes, assim, enquanto for possível contradizê-las através de um discurso racional e combatê-las na opinião pública, censurá-las não seria sensato. É nesta senda que se reitera que não é qualquer discurso que é suprimido, que as declarações intolerantes serão analisadas à lupa, através dos diversos fatores já mencionados, e quando através desse filtro elas são classificadas como discurso de ódio, já nos encontramos noutro campo, em que os oradores de tal discurso já renunciaram a qualquer racionalidade, em que os seus argumentos se transformam em punhos e armas, em que a dignidade daquelas pessoas é rejeitada, desprezada e ignorada e quando esse momento chega é hora de agir.

IV – A jurisprudência de Estrasburgo

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos relembra várias vezes a importância da liberdade de expressão numa sociedade democrática pluralista, que abrange não só as informações ou ideias que são favoravelmente recebidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também abrange aquelas que ofendem, chocam ou perturbam o Estado ou um setor da população.[70] No entanto, quando confrontados com declarações que podem ser classificadas como discurso de ódio, a jurisprudência de Estrasburgo adota duas abordagens conferidas pela CEDH – o artigo 10º, nº2 ou o artigo 17º.

Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, Estrasburgo. Michel Christen. Direitos autorais: ©Council of Europe.

O artigo 10º, nº2 CEDH

Dispõe o artigo 10º, nº2 da CEDH que «o exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial». Com efeito, descortinam-se, essencialmente, quatro condições cuja verificação determina a legitimidade da interferência na liberdade de expressão – a prescrição legal; a prossecução de um objetivo legítimo; a necessidade da interferência numa sociedade democrática para prosseguir tais objetivos;[71] e ainda a proporcionalidade da restrição aplicada ao objetivo legítimo.[72]

No âmbito do artigo 10º, nº2, o TEDH irá ter em conta os interesses da tolerância e da igual dignidade humana, que se afiguram fundamentais numa sociedade democrática e pluralista e, precisamente por esta razão, a proibição de certas formas de expressão, que têm a capacidade de potenciar, promover, ou justificar ódio, em relação a um grupo de pessoas, com base na intolerância, poderá ser justificada porque necessária numa sociedade democrática.[73]

Impera, então, analisar as condições exigidas, invocando-se, para este efeito um dos casos que chegou ao TEDH para uma melhor compreensão da aplicação prática destas condições – Soulas e outros contra a França. Porém, antes de avançarmos para a apreciação das condições, importa traçar os contornos deste caso. Os requerentes deste caso encontravam-se na origem da publicação de um livro com o título «A colonização da Europa. Verdadeiras observações sobre imigração e o Islão». Neste livro[74], o autor aborda sobre a incompatibilização da civilização europeia com a civilização islâmica. O livro começa com uma advertência do autor, que afirma que não se trata de qualquer delírio racista, intolerante ou ofensivo, mas apenas uma prescrição aos europeus para permanecerem eles mesmos. Os requerentes foram condenados por incitar à discriminação, ódio e violência contra as comunidades muçulmanas provenientes do Norte e Centro de África, nos termos dos artigos 23º e 24º, nº6 da Lei de 29 de julho de 1881. O tribunal de recurso condenou o autor do livro e o gerente da editora por incitação ao ódio contra um grupo de pessoas tendo em conta as passagens do livro em causa. No livro, o autor fala de uma guerra étnica a ser travada e que a delinquência que se verifica dos jovens africanos é uma forma de conquistar o território e afastar os europeus, impondo a República Islâmica em França. É também afirmado que a delinquência dos jovens africanos resulta de um desejo de vingança concretizado pelo exemplo da violação ritual de mulheres europeias e que os muçulmanos não cumprem a lei. No último capítulo do livro, o autor sublinha que apenas quando estalar um guerra civil étnica é que a solução poderá ser encontrada. O tribunal francês considerou que ao longo de todo o livro a apresentação que se faz das comunidades muçulmanas é marcada por características negativas, provocando nos leitores um sentimento de rejeição e antagonismo, agravado pela utilização de uma linguagem militar e a designação dessas comunidades como «o principal inimigo» e apelando à guerra de reconquista étnica.

Desde logo, o requisito da prescrição legal preocupa-se com a previsibilidade da normal legal em causa, isto é, exige-se que esta seja suficientemente precisa, clarificando as consequências que uma ação pode acarretar, permitindo às pessoas que guiem a sua conduta à luz da norma legal.[75] Assim sendo, quando o TEDH avalia a interferência de um Estado no direito à liberdade de expressão de um sujeito irá, em primeiro lugar, aferir se há alguma normal legal interna, previsível, clara e precisa, que proíba esse comportamento. No caso em análise, a normal legal aqui convocada foram os artigos 23º e 24º, nº6 da Lei de 29 de julho de 1881 relativamente ao qual o TEDH entendeu ser suficientemente clara a previsível e, portanto, cumprido o primeiro requisito.

Segue-se o requisito da prossecução do objetivo legítimo subjacente à interferência estadual no direito à liberdade de expressão, que, no caso em análise, foi a proteção da ordem, da reputação e dos direitos dos outros. Em relação à proteção da reputação dos outros, concordamos tendencialmente com os juízes Yudkivska e Villiger na decisão do Caso Vejdeland e outros c. Suécia que afirmam que não devem ser adotada meramente uma perspetiva de um exercício ponderado entre a liberdade de expressão dos requerentes e os direitos do grupo visado de proteger a sua reputação. Parece-nos que considerar como objetivo legítimo a proteção da reputação dos visados é reduzir o problema. Os danos que este tipo de declarações poderão trazer a uma sociedade democrática não devem ser entendidos levianamente e, com certeza não radicam somente na proteção da reputação do grupo. Há muito mais em jogo. Relembram-nos os juízes que «a nossa trágica experiência no último século demonstra que opiniões racistas e extremistas podem trazer mais danos do que as restrições à liberdade de expressão. As estatísticas dos crimes de ódio mostram que a propaganda de ódio inflige sempre mal, seja imediato ou potencial». A proibição do discurso de ódio visa, sobretudo, a proteção da dignidade dos membros do grupo visado, a sua liberdade e segurança e ainda poder-se-á considerar a proteção da paz social[76].

Mandatory Credit: Photo by ADAM IHSE/EPA-EFE/Shutterstock (9793742b) Fredrik Vejdeland (C) of the Swedish neo-Nazi Nordic Resistance Movement (NMR) speaks during an election rally ahead of the Swedish general elections, in Kungaelv, Sweden, 18 August 2018. The Swedish general election, is scheduled to take place on 09 September 2018. Swedish neo-Nazi Nordic Resistance Movemen election rally, Kungaelv, Sweden – 18 Aug 2018

Já a necessidade da interferência numa sociedade democrática requer cuidados acrescidos. O teste da necessidade democrática exige ao tribunal determinar se a interferência estadual denunciada corresponde a uma necessidade social premente,[77] o que significa que a ingerência não precisa de ser considerada essencial, apenas necessária, mas não deve revelar-se apenas oportuna ou razoável.[78] O TEDH, quando aprecia este requisito, reconhece que os Estados são dotados de uma certa, mas não ilimitada,[79] margem de apreciação[80] em avaliar se essa necessidade existe, uma vez que tal necessidade será aferida à luz do contexto em que as declarações são proferidas, e os tribunais nacionais são os que se encontram melhor posicionados para conhecer das tensões sociais, culturais e políticas que se fazem sentir no Estado.[81] Porém, tem de acompanhar a supervisão europeia, adotando tanto o direito como as decisões que o aplicam. Não é objetivo do TEDH tomar o lugar das autoridades nacionais competentes, mas apenas avaliar as suas decisões à luz do artigo 10º,[82] competindo-lhe determinar se os motivados invocados pelos tribunais nacionais para justificar a ingerência são «relevantes e suficientes». Ora, a margem de apreciação[83] dos Estados será menor se estivermos perante um direito que se tem como essencial a uma sociedade democrática, como acontece com o direito à liberdade de expressão, não se deixando ao livre-arbítrio das autoridades nacionais o sufoco dessa liberdade.[84]

No caso em análise, o TEDH entende que os problemas convocados pelo livro são de interesse geral – a instalação e a integração dos imigrantes nos países de acolhimento. Em França este debate é especialmente importante, uma vez que acolheu ao longo dos anos um grande número de estrangeiros, criando estruturas de acolhimento e políticas que visam a sua integração. É evidente que as políticas de integração dos imigrantes variam de Estado para Estado e, consequentemente, o debate público também apresenta as suas diferenças, sendo particularmente aceso em território francês. Essas políticas terão um impacto significativo na população imigrante e na população nacional e também nas relações entre elas, marcadas fortemente por hostilidade. Neste âmbito, o tribunal reconhece que as autoridades nacionais são as que se encontram em melhor posição para conhecer da realidade social do país e, portanto, terá a este propósito uma margem de apreciação suficientemente ampla para determinar se a ingerência que se verificou era, ou não, necessária numa sociedade democrática. O TEDH teve em conta que o livro foi escrito numa linguagem familiar, destinando-se, com efeito, a um público amplo e segue um padrão clássico – analisa a situação; propõe soluções; e realiza previsões. Relembrou, na sua fundamentação, que de acordo com o autor, a delinquência das comunidades imigrantes tem como principal objetivo a conquista da Europa e é a razão do caos em que a Europa se encontra mergulhada, ameaçando a exterminação da civilização, sublinhando que esta guerra étnica é o acontecimento mais sério do que todas as grandes pragas e guerras que já abalaram o continente europeu. Atendendo a tudo isto, o TEDH entende que efetivamente as razões levantadas pelo tribunal de recurso são relevantes e suficientes e que a interferência na liberdade de expressão dos requerentes foi necessária numa sociedade democrática.

Por fim, afere-se da proporcionalidade da interferência na prossecução do objetivo legítimo. Este requisito exige que as vantagens da interferência ao direito à liberdade de expressão sejam superiores às desvantagens, que tal interferência implica para os destinatários e para a sociedade em geral.[85] Neste âmbito, importa aferir da natureza e da severidade das sanções. O tribunal entendeu que a interferência era proporcional, uma vez que apesar de as quantias em que foram condenados serem elevadas, 7500 euros cada um, eles podiam ter enfrentado pena de prisão. No fim, o TEDH ainda refere que as passagens da obra não são suficientemente graves para justificar a aplicação do artigo 17º CEDH. Chegados a este ponto, vejamos a segunda abordagem adotada pelo TEDH.

O artigo 17º CEDH

Diz-nos o artigo 17º da CEDH, sob a epígrafe «Proibição do abuso de direito», o seguinte – «nenhuma das disposições da presente Convenção se pode interpretar no sentido de implicar para um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de se dedicar a actividade ou praticar actos em ordem à destruição dos direitos ou liberdades reconhecidos na presente Convenção ou a maiores limitações de tais direitos e liberdades do que as previstas na Convenção.» Nesta abordagem, as declarações proferidas são excluídas do âmbito de proteção da Convenção, pois deturpam os seus objetivos, isto é, procuram «usar as garantias da Convenção, o benefício daqueles direitos, porque o seu objetivo é desafiar os valores que a Convenção protege»,[86] isto é, invocam-se os direitos conferidos por este mecanismo internacional, para prosseguir fins ou objetivos alheios aos pensados aquando da consagração desses direitos.[87]

Pavel Ivanov contra a Rússia foi um dos casos que chegou ao TEDH e que foi tratado à luz do artigo 17º da CEDH. O requerente, Pavel Ivanov, fundador, proprietário e editor do jornal Russkoye Veche, foi condenado por incitamento público ao ódio étnico, racial e religioso pela autoria e publicação de uma série de artigos que retratavam os judeus como fonte de todo o mal na Rússia. Ivanov acusou todos os judeus de conspirar contra o povo russo, atribuindo a ideologia fascista à liderança dos judeus. Perante estas declarações, o TEDH considerou que não restam quaisquer dúvidas quanto ao seu conteúdo marcadamente antissemita, concordando com os tribunais russos que entenderam que tais declarações incitam ao ódio contra o povo judeu. Deste modo, um ataque tão geral e veemente a um grupo étnico contradiz os valores fundamentais da Convenção, nomeadamente, a tolerância, a paz social e a não discriminação. Com efeito, o Tribunal entende que Ivanov não pode abrigar-se na proteção do artigo 10º da CEDH, não podendo, portanto, invocar o seu direito à liberdade de expressão. Desta forma, parece que o que aqui está em causa é um aparente duelo de titãs, visto que o direito à liberdade de expressão nem sequer é chamado à ponderação.

Facilmente se depreende que o artigo 17º não deve ser aplicado de ânimo leve, assim sendo, o objetivo das declarações proferidas deve ser o de incitar violência ou ódio, recorrer a métodos ilegais ou anti-democráticos, encorajar o uso de violência, minar o sistema político democrático e pluralista da nação ou prosseguir objetivos racistas ou suscetíveis de destruir os direitos e as liberdades dos outros.[88] Normalmente, o TEDH quando é confrontado com discursos negacionistas[89] invoca o artigo 17º, defendendo que «disputar a existência de eventos históricos claramente estabelecidos, como o Holocausto, não constitui pesquisa histórica semelhante a uma busca pela verdade. O verdadeiro propósito de tal trabalho é reabilitar o regime nacional-socialista e, como consequência, acusar as vítimas do Holocausto de falsificação da história. Disputar a existência de crimes contra a Humanidade é, portanto, umas das formas mais graves de difamação racial e de incitação ao ódio de judeus. A negação ou reescrita deste tipo de facto histórico mina os valores sobre os quais a luta contra o racismo e o antissemitismo radica e constitui uma séria ameaça para a ordem pública».[90]

O artigo 17º deve conhecer uma utilização excecional, uma vez que exclui o discurso em causa da proteção do artigo 10º, nº1 da CEDH, puramente com base no conteúdo, havendo uma desconsideração do contexto desse discurso[91], eliminando, portanto, a necessidade da realização de um «processo equilibrado» que caracteriza a abordagem do Tribunal à luz do artigo 10º.[92] Contudo, Hannes Cannie e Dirk Voorhoof, numa apreciação crítica da aplicação deste artigo[93], alertam-nos que a disposição em causa fora pensada como uma arma legal necessária para que a história não se repita, protegendo a democracia do crescimento eventual de regimes totalitários, porém, aquilo que se observa é a aplicação do artigo 17º pelo TEDH nos casos de racismo, antissemitismo e islamofobia. Não obstante, reconhecem que estas doutrinas – racistas, antissemitas e islamofóbicas – estão frequentemente na origem dos regimes totalitários. Neste âmbito, sublinha-se que este artigo deve somente ser aplicado nos casos em que o conteúdo das declarações proferidas é flagrantemente violador da dignidade dos membros daquele grupo e mesmo nestes casos há uma reticência quanto à sua exclusão categórica do artigo 10º da CEDH.

A este propósito, afigura-se relevante fazer um reparo, pois parece-nos que a solução mais cautelosa e segura seria a de submeter qualquer situação potencial de discurso de ódio às condições do artigo 10º, nº1 da CEDH. Se é certo que o artigo 17º deve ser aplicado somente aos casos mais flagrantes, em que as próprias palavras revelam logo a necessidade de interferência na liberdade de expressão, seria mais seguro, tendo em conta o direito à liberdade de expressão de todos os cidadãos, fazer operar aquelas condições, pois se o discurso é tão flagrantemente violador da dignidade humana e da integridade pessoal dos visados, não será a operação daquelas condições que impedirá essa ingerência. Deste modo, o resultado será o mesmo, limitando-se a liberdade de expressão, mas este direito não será desvalorizado na apreciação do caso.

V – Considerações finais

A luta pela tolerância e pela igualdade nos tempos modernos terá de passar pela supressão do discurso de ódio. Se à primeira vista poderá ser assustador limitar a liberdade de expressão, mais assustadores se revelam os potenciais efeitos de um discurso de ódio livre e sem consequências. Num esforço de não repetir os erros do passado, outras vias têm de se impor quando a possibilidade de os cometer se revela cada vez mais próxima. Porém, e como estamos perante um duelo de titãs, esta é uma situação que exige uma apreciação cuidada. Não podemos limitar sem limites o direito à liberdade de expressão, mas também não podemos livremente aceitar o discurso de ódio ao abrigo dessa liberdade. Deste modo, só uma ponderação através dos diversos fatores irá revelar a solução mais segura e razoável, ponderação esta que é confirmada pelo Tribunal de Estrasburgo quando faz funcionar as condições do artigo 10º, nº1 da CEDH. É neste sentido que a aplicação do artigo 17º poderá assumir uma feição mais radical, ao desconsiderar por completo o contexto do discurso, atendendo somente às palavras proferidas. Não tendo como propósito desvalorizar a força das palavras, num terreno tão volátil e sensível como aquele com que somos confrontados na presente exposição, a ponderação caso a caso, com o auxílio dos diversos fatores, permite a resposta mais segura e mais garantista dos direitos que duelam entre si.

Por fim, e apesar de não ter sido o foco do paper, não podemos deixar de referir que a punição do discurso de ódio, não devendo ser generalizada a todos os discursos preconceituosos sob o risco de uma banalização do instituto e do ressurgimento da censura, deve conhecer efeitos práticos. Não basta a mera previsão da punição do discurso de ódio na legislação, mas depois não se conhecer uma persecução séria e real, dado que tal cenário levaria a um direito penal simbólico, que aparenta apenas proteger os visados pelos discursos, mas não os protege efetivamente.

Retrato de Voltaire, autor francês do séc. XVIII, a quem foi atribuída a citação apócrifa “I disapprove of what you say, but I will defend to the death your right to say it” por Evelyn Beatrice Hall em The Life of Voltaire, 1903. D’après Maurice Quentin de La Tour, Portrait de Voltaire (c. 1737, musée Antoine Lécuyer)

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Jurisprudência

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO

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TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS

(55/1997/839/1045); Case of Lehideux and Isorni v. France

Application nº64496/17; Case of Garaudy v. France

Application nº33348/96; Case of Cumpana and Mazare v. Romania

Application nº46669/99; Case of Periçek v. Turkey

Application nº35222/04; Case of Pavel Ivanov v. Russia

Application nº64016/00; Case of Giniewski v. France

Application nº69698/01; Case of Stoll v. Switzerland

Application nº30160/04; Case of Dzhavadov v. Russia

Application nº15948/03; Case of Soulas and others v. France

Application nº15615/07; Case of Féret v. Belgium

Application nº18788/09; Case of Le Pen v. France

Application nº1813/07; Case of Vejdeland and others v. Sweden

Application nº41288/15; Case of Beizaras and Levickas v. Lithuania

TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

Acórdão nº479/94, Processo nº208/94.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

18/06/2018; proc. 1132/15.6JABRG.G1, rel. Alda Casimiro

  1. Do preâmbulo da Constituição da República Portuguesa.

  2. Jorge Miranda; Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Volume I, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2º edição, 2017, p.615.

  3. Jeremy Waldron, The Harm in Hate Speech, Harvard University Press, 2012, p.4.

  4. Neste sentido, o Ministro Marco Aurélio, no acórdão do Supremo Tribunal Federal sobre o caso Ellwanger, de 17/09/2003, p.878: «a sociedade civil e política beneficia-se da garantia do livre exercício do direito de opinião como forma de concretizar o princípio democrático».

  5. Acórdão TEDH de 14/05/2020, case of Beizaras and Levickas v. Lithuania.

  6. Judit Bayer; Petra Bárd, Hate speech and hate crime in the EU and the evaluation of online content regulation approaches, Policy Department for Citizens’ Rights and Constitutional Affairs, 2020, p.20. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2020/655135/IPOL_STU%282020%29655135_EN.pdf.

  7. Acórdão TEDH 10/12/2007, case of Stoll v. Switzerland.

  8. Francisco Teixeira da Mota, «Liberdade de expressão: os tribunais nacionais e o TEDH – convergências e dissonâncias» in Conferência sobre Liberdades de imprensa e de expressão: que papéis, que efeitos, que fronteiras e limites?, Instituto Miguel Galvão Telles, 2017, p.9.

  9. Decisão de admissibilidade do TEDH, case of Le Pen v. France.

  10. Neste sentido, e fazendo também referências às desvantagens que uma proteção multinível acarreta, Jefferson Lima de Souza, «O diálogo entre o Tribunal Constitucional português e o tribunal europeu dos direitos do homem e seu impacto na proteção dos direitos fundamentais» in Ana Maria Guerra Martins (coord.), A Proteção Multinível dos Direitos Fundamentais. Estudos sobre diálogo judicial, Lisboa: AAFDL Editora, 2019, p.14-16.

  11. Catarina Santos Botelho, «O tribunal de Estrasburgo, o Tribunal de Justiça da União Europeia e os Tribunais Constitucionais nacionais: perigo de um “Triângulo das Bermudas”? – A complexa interacção multinível entre as instâncias jurisdicionais de protecção dos direitos fundamentais» in Eduardo Paz Ferreira; Heleno Taveira Torres; Clotilde Celorico Palma (org.), Estudos em Homenagem do Professor Doutor Alberto Xavier. Assuntos Europeus, Direito Privado, Direito Público e Vária, Vol. III, Coimbra: Almedina, 2013, p.126.

  12. Jefferson Lima de Souza, «O diálogo entre o Tribunal Constitucional…», p.16.

  13. Esta ideia de que a liberdade de expressão não é absoluta e que conhece limites, como iremos ver infra, já remonta ao século XVIII, pelo que não nos parece correto remontar esta discussão ao fenómeno que se tem assistido do «politicamente correto».

  14. Artigo 19º «Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.»

  15. Artigo 10º «Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.»

  16. Artigo 19º «Toda a pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e ideias de toda a índole sem consideração de fronteiras, seja oralmente, por escrito, de forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo que escolher.»

  17. Artigo 11º «Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.»

  18. Jorge Miranda, «Os direitos fundamentais na ordem constitucional portuguesa» in Revista Española de Derecho Constitucional, ano 6, nº18, 1986, p.122. Acrescenta José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra: Almedina, 1º edição, 1987, p.144-145: os direitos, liberdades e garantias não se esgotam na sua feição individualista, isto é, a posição do indivíduo perante o Estado, mas são dotados também de uma feição comunitária, pois cuidam de valores e fins que a comunidade deve respeitar e concretizar.

  19. Jónatas Eduardo Mendes Machado, Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Studia Iuridica 65, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p.237 e ss.

  20. Ibidem, p.238: silenciar uma opinião ou ideia poderá ter efeitos nefastos para a descoberta da verdade, pois a opinião ou ideia silenciada poderá corresponder à verdade, ou a partes importantes dela. Também neste sentido, John Stuart Mill, On Liberty, Yale University Press, 2003, p.87: «a peculiar malvadez de silenciar a expressão de uma opinião é de que está a roubar a raça humana (…) se a opinião [silenciada] estiver correta, serão privados de trocar o erro pela verdade; se errada, eles perdem (…) uma clara perceção e uma impressão mais viva da verdade, por colisão com o erro» Especialmente crítico da descoberta da verdade como finalidade da liberdade de expressão, Eric Barendt, Freedom of Speech, Oxford University Press, 2º edição, 2007, p.10 e ss.

  21. Jónatas Machado, «Liberdade de expressão…», p.247: «a teoria do mercado livre de ideias, com uma imagética em que se incluem temas como “concorrência publicística”, “competição de ideias”, “debate robusto”, ou “confrontação espiritual”. (…) Se da procura da verdade se trata, então está-se perante uma verdade “legitimada através do procedimento”, qualquer coisa como o produto casual de uma luta pela sobrevivência da ideia mais apta». Apesar das várias falhas apontadas ao mercado livre de ideias, tais como aquelas que recaem nas diferenças económico-sociais e, portanto, impedem que todos tenham exatamente o mesmo acesso aos meios de comunicação social, o mercado livre de ideias «chama a atenção para o facto de que a iniciativa nos processos de criação, discussão e divulgação das ideias (produção e colocação das ideias no mercado) deve caber em primeira linha aos indivíduos e aos grupos, que não aos poderes públicos», p.254. John Stuart Mill, op.cit., p.180 debruça-se sobre a importância do debate livre de ideias, que promove a descoberta da verdade, pois mesmo que os intervenientes não mudem as opiniões já anteriormente assumidas, pelo menos, desse debate saem com uma maior convicção da sua verdade. Se as ideias começarem a ser silenciadas uma a uma, aquilo que resta é uma imposição de qualquer coisa que se diz verdade.

  22. Jónatas Machado, «Liberdade de expressão…», p. 260: «todas as formas de participação política democrática perdem o seu sentido útil, se não existir liberdade de expressão». Repare-se que a opinião pública movimenta a sociedade democrática, no sentido em que tal opinião irá encontrar projeção nas urnas mediante o sufrágio universal e secreto. Ora, se a liberdade de expressão não existir, o princípio democrático não se concretiza na sua plenitude. Juan Luis Cebrián, «Estado democrático, seguridad y libertad de expresión» in Derechos y Libertades Revista Del Instituto Bartolomé de Las Casas, 1999, p.89-90.

  23. Jónatas Machado, «Liberdade de expressão…», p.266: «Este direito fundamental tem como objetivo a deteção e a denúncia pública das patologias do exercício do poder, como sejam a prepotência, o arbítrio, a corrupção, o nepotismo, a ineptidão e a incompetência dos titulares de órgãos públicos, atuais ou prospetivos, e de todos os atos por eles praticados que infrinjam as normas jurídicas vigentes ou que lancem dúvidas importantes sobre o seu caráter e a sua idoneidade moral».

  24. Ibidem, p.278: «só a existência de uma opinião pública autónoma pode funcionar como garantia substantiva da democracia, sendo certo que o direito fundamental à liberdade de expressão é um dos instrumentos substantivos fundamentais de uma tal autonomia».

  25. Ibidem, p.279: «(…) um segmento da doutrina interpreta a liberdade de expressão a partir da necessidade de apoiar a diversidade de opiniões, de forma a proteger o dissenso e a assegurar de forma permanente a riqueza do debate público».

  26. Ibidem, p.282: «Um Estado baseado na liberdade de expressão e no estabelecimento de relações de confiança com os cidadãos é mais forte e menos propenso a convulsões sociais do que um Estado autoritário, estruturado sobre a repressão, o ressentimento e o medo. A liberdade de expressão permite às minorias darem o seu contributo para o governo da comunidade política, precludindo a sua marginalização do processo político-democrático».

  27. Eric Barendt, op.cit., p.13: «restrições naquilo que somos permitidos a dizer e escrever ou ouvir e ler, inibe a nossa personalidade e o seu desenvolvimento». No entanto, como bem denota Jónatas Machado, «Liberdade de expressão…», p.287, problemas colocam-se quando uma determinada expressão, que se fundamenta na autodeterminação individual do orador, coloca em causa a dignidade e o desenvolvimento de personalidade de outrem. Levanta-se, com efeito, o problema do discurso de ódio.

  28. Jónatas Machado, «Liberdade de expressão…»., p.288: «(…) algumas finalidades substantivas do direito à liberdade de expressão em sentido amplo têm em vista primordialmente as liberdades de imprensa ou de radiofusão, como sucede com a promoção do diálogo democrático ou do controlo democrático da atividade estadual».

  29. Nevita Maria Pessoa de Aquino Franco Luna; Gustavo Ferreira Santos, «Limites entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio: controvérsias em torno das perspetivas norte-americana, alemã e brasileira» in Género & Direito, volume 3, nº2, 2014, p.178.

  30. Paulo Ferreira da Cunha, «Direito à palavra & crime de palavra. Breve reflexão constitucional-penal» in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 24, nº4, 2014, p.499.

  31. José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra: Almedina, 5º edição, 2016, p.263.

  32. Monica Beltrán Gaos, «Tolerancia y derechos humanos» in Politica y cultura, nº21, 2004, p.180.

  33. Bhikhu Parekh, «Is there a case for banning hate speech?» in Michael Herz; Peter Molnar (ed.) The Content and Context of Hate Speech: Rethinking Regulation and Responses, Cambridge University Press, 2012, p.40-41.

  34. Parekh explica que a declaração por parte de alguém de que odeia todos os assassinos e que estes deviam ser presos ou executados não é discurso de ódio, pois apenas está a advogar uma política e não incita à ação e não é baseada numa característica identitária normativamente irrelevante, mas sim naquilo que aqueles indivíduos fizeram.

  35. Repare-se que neste âmbito analisamos apenas a suscetibilidade do discurso para promover e espalhar o ódio, sendo que, por definição, o discurso não tem de resultar necessariamente em violência ou desordem pública. Bhikhu Parekh, «Is there a case…»., p.41. Também neste sentido, a jurisprudência de Estrasburgo no caso de Beizaras e Levickas contra a Lituânia de 14/05/2020: o Tribunal afirma que incitar ao ódio não apela necessariamente a um ato de violência ou outro ato criminoso. Os ataques a pessoas cometidos através de insultos, ridicularizações ou calúnias de grupos específicos da população podem ser suficientes para as autoridades favorecerem o combate ao discurso racista perante uma liberdade de expressão irresponsavelmente exercida.

  36. No Plano de Ação de Rabat, não é a aptidão do discurso que é analisada. Aquilo que deve ser levado em consideração para que o discurso seja punido, é a probabilidade razoável de o discurso conseguir incitar uma ação real contra o grupo-alvo. Fala-se aqui de uma probabilidade iminente. No presente paper, alinhamos com a ideia da aptidão do discurso, que deverá ser aferida à luz dos critérios, pois a probabilidade do discurso torna muito mais difícil a punição desse discurso. Além de que o discurso que deverá ser punido é aquele que incita ao ódio ou à violência, logo, não se exige necessariamente uma ação real violenta, basta-se com o mero incitamento nos ouvintes do ódio aos visados pelas declarações.

  37. O ministro Marco Aurélio no acórdão do Supremo Tribunal Federal sobre o caso Ellwanger alerta-nos para esta questão: «(…) não é correto se fazer um exame entre liberdade de expressão e proteção da dignidade humana de forma abstrata e se tentar extrair daí uma regra geral. É preciso, em rigor, verificar se, na espécie, a liberdade de expressão está configurada, se o ato atacado está protegido por essa cláusula constitucional, se de facto a dignidade de determinada pessoa ou grupo está correndo perigo, se essa ameaça é grave o suficiente a ponto de limitar a liberdade de liberdade ou se, ao contrário, é um mero receio subjetivo ou uma vontade individual de que a opinião exarada não seja divulgada, se o meio empregado de divulgação de opinião representa uma afronta violenta contra essa dignidade».

  38. Aprendizados resultantes do curso de formação de aprendizagem – discurso de ódio: conceito, limites à liberdade de expressão e responsabilidade criminal e disciplinar por Alexandre Guerreiro e Artur Flamínio da Silva; e ainda da conferência: Discurso de ódio e liberdade de expressão por Maria Clara Sottomayor.

  39. Bhikhu Parekh, «Is there a case…», p.40.

  40. Ver nota 37. Cf. Alexander Brown que também assinala a motivação do agente, referindo que o discurso seria motivado pelo ódio do orador em relação a um determinado grupo, o que leva a que este discurso motivado pelo ódio do orador fosse identificado através do estado emocional e mental do orador in «What is hate speech? Part 1: the myth of hate» in Law and Philosophy, volume 36, 2017, p.455-456.

  41. O acórdão da Relação de Guimarães de 18/06/2018 versa sobre um caso em que um indivíduo a 10 de setembro de 2015, publicou na sua página do Facebook um vídeo em que aparece vestido com uma túnica bege comprida, barba comprida, exibindo um objeto de aspeto semelhante a uma metralhadora, dizendo «Olá povo português. Sou o primeiro sírio a chegar a Portugal e vou-vos avisar, vou foder-vos a todos, trá-tá-tá-tá-tá.» A Relação reitera que para o preenchimento do tipo subjetivo de ilícito, o agente devia atuar com um dolo específico, consubstanciado na intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual ou de a encorajar. «Não se ignora que o dolo específico deixou de constar do tipo legal, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº94/2017 de 23/08. No entanto, a entrada em vigor daquele diploma legal verificou-se em momento posterior ao da ocorrência dos factos pelos quais o arguido se encontra acusado, circunstância que, face ao disposto no artigo 1º, nº1, do Código Penal, inviabiliza a aplicação ao caso concreto desta nova versão do ilícito».

  42. A exposição de motivos da Lei nº94/2017 dispõe que a ampliação e reformulação do artigo 240º responde às imposições da Decisão-Quadro nº2008/913/JAI do Conselho de 28 de novembro.

  43. Agata de Latour, Nina Perger, Ron Salaj, Claudio Tocchi, Paloma Viejo Otero, Alternativas. Agir contra o discurso de ódio através de contranarrativas, Instituto Português do desporto e juventude, 2018, p.38.

  44. Aernout Nieuwenhuis, «A positive obligation under the ECHR to ban hate Speech?» in Public Law, 2019, p.328.

  45. Jeffrey W. Howard, «Free Speech and Hate Speech» in Annual Review of Political Science, volume 22, 2019, p.94.

  46. Ver nota 37.

  47. O Ministro Marco Aurélio, sobre a importância das circunstâncias históricas e culturais, no caso do Supremo Tribunal Federal, p.891: «o conteúdo de um livro somente possui o condão de proliferar-se a partir do momento em que uma comunidade política tenha, minimamente, tendência para aceitar aquelas ideias, ou seja, se existir ambiente propício à proliferação do que nele registado. (…) ele não viabiliza, por si só, uma alteração de pré-compreensões, muito embora, somando a condições sociais, políticas, económicas e culturais, possa incentivar ou se tornar conjuntural às modificações que já estiverem em andamento».

  48. Bhikhu Parekh, «Is there a case…», p.41.

  49. Judit Bayer; Petra Bárd, Hate speech and hate crime in the EU…», p.57.

  50. Relatório da ECRI sobre Portugal (quinto ciclo de controlo) de 19 de junho de 2018, p.19. Em 2010, a preocupação pela inclusão dos ciganos levou à elaboração do The Strasbourg Declaration on Roma, condenando inequivocamente o racismo, a estigmatização e o discurso de ódio contra ciganos, particularmente no discurso público e político.

  51. Memorando sobre o combate ao racismo e à violência contra mulheres em Portugal, 2021, p.2: «Há muito que a população de etnia cigana é visada no discurso de ódio racista, continuando, em Portugal» e na p.7: «A Comissária manifesta preocupação quanto ao aumento do número de crimes de ódio com motivação racial e do discurso de ódio, mas também da discriminação, especialmente contra ciganos, afrodescendentes e pessoas percecionadas como estrangeiras em Portugal, sendo a existência de racismo nas polícias um fenómeno particularmente preocupante.»

    Não se esquece também o discurso de ódio disseminado contra afrodescendentes. A título de exemplo, a 28/12/19 um filho de um inspetor da PJ morre esfaqueado na resistência a um assalto. Dias depois, um canal de notícias divulgou os rostos dos agressores, que eram negros. A «Associação Portugueses Primeiro» publicou na sua página do Facebook «está na hora de dizer que o multiculturalismo africano não pode continuar a crescer. Já são demasiados os oriundos de África que fizeram dos subúrbios de Lisboa colónia. Este regime de fronteiras abertas está a destruir a nossa segurança, ainda para mais agora que nem registo criminal vão ter que apresentar. Travar a entrada de africanos. Deportar os criminosos. Mão pesada com os que cá estão».

  52. Robert C. Post, «Legitimacy and Hate Speech» in Constitutional Commentary, 2017, p.657.

  53. Judit Bayer; Petra Bárd, «Hate Speech and Hate crime in the UE…» p.57.

  54. Memorando sobre o combate ao racismo e à violência contra mulheres em Portugal, 2021, p.2: «Acresce que, na arena política, é crescentemente usada retórica racista, nomeadamente pelo partido político “Chega!”, constituído em 2019, cujos representantes, segundo consta, dão frequentemente mostras de xenofobia, afrofobia e anticiganismo para concitar apoio e votos populares; graças a frequentes diatribes racistas, homofóbicas e sexistas e por vezes propostas políticas extremistas».

  55. O sistema norte-americano protege tendencialmente o discurso de ódio ao abrigo da Primeira Emenda. Conhecido por Teste de Brandenburg ou Imminent Lawless Action Test, só haverá condenação se se provar que o discurso em causa conduziu a uma ação ilegal iminente e concreta. Desta forma, o discurso que apresenta somente um perigo relativo e abstrato e que depende das circunstâncias envolventes para ser caracterizado não será punido, mas somente aquele discurso que revela já a probabilidade e a iminência de uma ação ilegal concreta. Para mais desenvolvimentos, Watachos Arrivabene de Freitas Queiroz, Liberdade de expressão e o caso Brandenburg v. Ohio: a evolução da teoria do perigo real e iminente nos julgados da Suprema Corte dos EUA, 2019.

  56. Rui Pereira, «O princípio da igualdade em Direito Penal» in O Direito, ano 120, I-II, 1988, p.113 apud Francisca Van Dunem, «A discriminação em função da raça na lei penal» in Jorge de Figueiredo Dias; Ireneu Cabral Barreto; Teresa Pizarro Beleza; Eduardo Paz Ferreira (org.) Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Volume I, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p.942: «a igualdade entre os homens começa, pois, por se impor ao Direito na medida em que resulta da própria natureza das coisas e não de um ato de vontade do legislador. A simples referência à espécie humana encerra em si mesma, o reconhecimento de que os homens são iguais na sua essência, isto é, naquilo que nos autoriza a qualificá-los como homens».

  57. Robert C. Post, «Legitimacy…» p.656.

  58. Leonardo Martins, Tribunal Constitucional Federal Alemão. Decisões anotadas sobre direitos fundamentais, volume 2, São Paulo: Konrad Adenauer Stiftung, 2018, p.116.

  59. Miguel Salgueiro Meira, «Os limites à liberdade de expressão nos discursos de incitamento ao ódio» in Verbo Jurídico, 2011, p.10: «De facto, os indivíduos nascem, crescem e desenvolvem-se dentro de um determinado grupo social adquirindo uma identidade própria associada a esse mesmo grupo. Qualquer lesão no estatuto de um determinado grupo e no seu posicionamento no interior da sociedade acabará por afectar os sujeitos que o compõe, influenciando o seu próprio estatuto e dignidade individuais.» Disponível em: https://www.verbojuridico.net/doutrina/2011/miguelmeira_limitesliberdadeexpressao.pdf.

  60. Bhikhu Parekh, «Is there a case…», p.44. Também sobre a dignidade dos membros visados pelo discurso, Jeremy Waldron, op.cit., p.5: [a dignidade da pessoa] é a sua condição social, o fundamental de uma reputação básica que lhes permite serem tratados como iguais nas mais vulgares operações da sociedade. (…) o seu objetivo [do discurso de ódio] é comprometer a dignidade dos visados, tanto aos seus olhos como aos olhos dos restantes membros da sociedade (…) procura manchar o básico da sua reputação ao associar características como a etnia, a raça ou a religião com condutas ou atributos que devem desqualificar alguém de serem tratados como um membro da sociedade».

  61. Jeremy Waldron, op.cit., p.2.

  62. Owen M. Fiss, The irony of free Speech, Harvard University Press, 1998, p.16.

  63. Em sentido semelhante, Maria Clara Sottomayor in Discurso de ódio e liberdade de expressão: «a repressão do discurso de ódio visa proteger grupos que tenham sido silenciados, procurando proteger a liberdade de expressão de outros grupos. Na verdade, quando falamos de proteção da liberdade de expressão temos de perguntar sempre – a liberdade de expressão de quem? Dos grupos dominantes, que já influenciaram a história, s política, as instituições e que tiveram o poder de definição de conceitos ao longo da história? Porque se é a liberdade de expressão deles, vai servir para esmagar os outros. Daí que esta liberdade de expressão tem de ser limitada para se dar lugar à liberdade de expressão daqueles que têm sido silenciados ao longo da história».

  64. Rafael Alcácer Guirao, «Discurso del odio y discurso político. En defensa de la libertad de los intolerantes» in Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, 2012, p.19.

  65. Samantha Ribeiro Meyer-Pelug, «O discurso do ódio e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal do Brasil» in Marcelo Rebelo de Sousa; Fausto de Quadros; Paulo Otero; Eduardo Vera-Cruz Pinto (coord.), Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda, volume III, Direito Constitucional e Justiça Constitucional, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p.683.

  66. Maria Clara Sottomayor in Discurso de ódio e liberdade de expressão alerta-nos para o facto de que o TEDH não tem reconhecido como discurso de ódio o discurso sexista e misógino, assim, este discurso não tem sido objeto de soluções repressivas por parte do Tribunal. No entanto, em 2019 foi emitida uma Recomendação pelo Comité de Ministros para os Estados-Membros para prevenir e combater o sexismo, que estabelecia o seguinte: «as agressões através da Internet não só afetam a dignidade das mulheres como podem impedi-las, mesmo no local de trabalho, de expressar a sua opinião, e acabam por as empurrar para fora da Internet, minando o direito à liberdade de expressão e de opinião numa sociedade democrática, limitando as oportunidades profissionais e reforçando o défice democrático com base no género. Acresce que a era digital veio aumentar o escrutínio a que são sujeitos o corpo, o discurso e o ativismo das mulheres. Mais, o abuso sexista das redes sociais – por exemplo, a publicação de material visual íntimo sem autorização das pessoas representadas – constitui uma forma de violência que exige toda a nossa atenção. (…) Enquanto o discurso de ódio racista é reconhecido como contrário às normas europeias e internacionais em matéria de direitos humanos, nem sempre se verifica o mesmo relativamente ao discurso de ódio sexista ou misógino, e até hoje as políticas e legislação a todos os níveis não souberam lidar com o assunto da forma adequada. Em consequência, os Estados são encorajados a assumir a responsabilidade de combater o discurso de ódio e a garantir que, no que se refere à aplicação de sanções penais, o discurso de ódio sexista é regido pelas mesmas normas que as concebidas para o discurso de ódio racista.»

  67. «As narrativas alternativas e as contranarrativas combatem o discurso de ódio, ao desacreditá-lo, ao desconstruir as narrativas violentas que o justificam e mostrando, de várias maneiras, visões do mundo que promovam a inclusão, baseadas nos valores de Direitos Humanos, como a compreensão, o respeito pela diferença, a liberdade e a igualdade.» Para mais desenvolvimentos, ver Agata de Latour, Nina Perger, Ron Salaj, Claudio Tocchi, Paloma Viejo Otero, Alternativas…p.77 e ss.

  68. Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Intolerância e discriminação baseadas na religião ou convicção; Recomendação nº (97) 20 do Comité de Ministros relativa ao discurso de ódio; Recomendação de Política Geral nº7 da Comissão Europeia contra o racismo e a intolerância; Recomendação nº 1805 (2007) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa sobre discriminação e ódio com base na religião; Decisão-Quadro nº 2008/913/JAI relativa à luta por via do direito penal contra certas formas e manifestações de racismo e xenofobia; Recomendação de Política Geral nº15 da Comissão Europeia contra o racismo e a intolerância relativa ao combate ao discurso de ódio; Recomendação CM/REC (2019) do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre prevenção e combate ao sexismo; Resolução do Parlamento Europeu de 18 de dezembro de 2019 sobre discriminação pública e o discurso de ódio contra as pessoas LGBTI, nomeadamente as «zonas sem LGBTI»;

  69. Karl Popper; E.H. Gombrich; e Alan Ryan, The Open Society and its enemies, Princeton University Press, 2013, p.581.

  70. Le Pen v. France.

  71. Hannes Cannie; Dirk Voorhoof, «The abuse clause and freedom of expression in the European Human Rights Convention: an added value for democracy and Human Rights protection?» in Netherlands Quarterly of Human Rights, volume 29/ 1, 2011, p.64.

  72. Judit Bayer; Petra Bárd, Hate speech and hate crime in the EU…p.34.

  73. Aernout Nieuwenhuis, «A positive obligation…» p.330.

  74. Capítulo I: os mecanismos de colonização e submersão demográfica; Capítulo II: Europa inconsciente; Capítulo III: A utopia comunitária e multiétnica; Capítulo IV: O Islão conquistando a Europa; Capítulo V: Da delinquência à guerra civil étnica; Capítulo VI: a emigração e a destruição da escola pública; Capítulo VII: A nova questão racial e étnica; Capítulo VIII: Tabus e mentiras; Capítulo IX: As soluções – o princípio da reconquista; as soluções impraticáveis e tardias; a necessidade de uma grande crise; os cenários possíveis; o cenário da reconquista; Conclusão: a exortação aos jovens europeus.

  75. Caso Dzhavadov v. Russia.

  76. A incitação ao ódio e à violência poderá ser catastrófica à convivência pacífica das pessoas e, portanto, catastrófica à manutenção da ordem social e da paz pública. Punir o discurso de ódio com fundamento na paz pública é proteger preventivamente este bem jurídico, discernindo-se os perigos à paz pública que poderão ser concretizados e proibindo-os. Leonardo Martins, Tribunal Constitucional Federal Alemão…,p.134.

  77. Caso Cumpana e Mazare v. Romania.

  78. Isabel Serrano Maíllo, «El derecho a la libertad de expresión en la jurisprudencia del tribunal europeo de derechos humanos: dos casos españoles» in Teoría y Realidad Constitucional, nº28, 2011, p.583.

  79. Caso Giniewski v. France.

  80. Caso Perinçek v. Suíça.

  81. Judit Bayer; Petra Bárd, Hate speech and hate crime in the EU…, p.38.

  82. Caso Perinçek v. Suíça.

  83. A margem de apreciação conferida aos Estados radica nas várias diferenças, a vários níveis, que se verificam nos diversos Estados-Membros. Neste sentido, Jorge Rosas de Castro, «Em torno da margem de apreciação dos Estados na aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem» in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, nº86, 2010, p.282: «do ponto de vista sócio-cultural encontramos povos de raízes latina, germânica, anglo-saxónica, nórdica e eslava; no plano político há modelos federais e modelos unitários; a nível religioso estão representados povos de tradição católica, protestante, ortodoxa e muçulmana; no que concerne à construção geral do sistema jurídica há países de civil law e common law; os Estados membros apresentam estádios de desenvolvimento económico muito díspares, com recursos disponíveis consequentemente diferenciados; e os próprios sistemas democráticos não têm a mesma vivacidade em todos os quadrantes».

  84. Isabel Serrano Maíllo, «El derecho a la libertad de expresión…», p.584.

  85. Ibidem.

  86. M. Oetheimer, «La Cour européenne des droits de l’homme face au discours de haine» in Rev. Trim. Dr. H., 2007, p.68 apud Françoise Tulkens, «When to say is to do. Freedom of expression and hate Speech in the case-law of the European Court of Human Rights», 2012, p.3-4. Disponível em: https://www.ejtn.eu/Documents/About%20EJTN/Independent%20Seminars/TULKENS_Francoise_Presentation_When_to_Say_is_To_Do_Freedom_of_Expression_and_Hate_Speech_in_the_Case_Law_of_the_ECtHR_October_2012.pdf.

  87. Augusto da Penha-Gonçalves, «O abuso do direito», p.476. Disponível em: https://portal.oa.pt/upl/%7B07707f49-1789-43f6-b5fc-83fa1f5f64d6%7D.pdf.

  88. Caso Lehideux and Isorni v. France, opinião concorrente do Juiz Jambreck.

  89. Caso Lehideux and Isorni v. France: «As such, it does not belong to the category of clearly established historical facts – such as the Holocaust – whose negation or revision would be removed from the protection of Article 10 by Article 17.»

  90. Caso Garaudy v. France.

  91. Hannes Cannie; Dirk Voorhoof, «The abuse clause and freedom of expression…», p.58.

  92. David Keane, «Attacking hate speech under article 17 of the European Convention on Human Rights» in Netherlands Quarterly of Human Rights, volume 25/4, 2007, p.643.

  93. Hannes Cannie; Dirk Voorhoof, «The abuse clause and freedom of expression…», p.62-63.