Evolução do Conceito de Marketing, 1990-2020

Uma análise às mudanças ocorridas na área do marketing quanto ao seu conceito, desde há três décadas para cá. Texto de Cláudia Ribau (linkedin.com, scholar.google.com). Revisão de João N.S. Almeida. Cláudia Ribau é docente no ensino superior, na área do marketing: tem mais de 25 anos de experiência profissional na direção de marketing e comunicação em indústria que atua em contexto B2B.

Depois de duas décadas de grande popularidade (anos setenta e oitenta do passado século), o marketing na década de noventa pareceu estar sobre uma pressão crescente, segundo Doyle (1995); tal é fruto das mudanças sociais que conduziram muitas empresas a adotarem processos de downsizing e reengenharia, ditando cortes e reestruturações, aos quais o marketing e outros departamentos das organizações foram sujeitos.

Mas antes de avançarmos neste âmbito específico do marketing, é conveniente abrirmos um parêntese de forma a tentarmos esclarecer brevemente os conceitos de downsizing e reengenharia, que marcaram a vida de muitos profissionais durante os anos noventa, e particularmente a da autora deste texto, no início da sua carreira profissional.

Com o aumento dos níveis concorrenciais e da turbulência ambiental nos anos noventa, provenientes do desenvolvimento da globalização e do começo de entrada em cena de grandes potências anteriormente sub-desenvolvidas no grande cenário do comércio mundial, como a Índia e a China, tornou-se imperativo no mundo ocidental repensar as estruturas e métodos na tomada de decisões, por forma a aumentar a rapidez de resposta e a capacidade de adaptação da organização. Muitas organizações, com estruturas verticais vincadas, entulharam-se em excessos burocráticos apenas capazes de vincular a morosidade, dificultar a agilidade na tomada de decisões e a adaptação às novas realidades ambientais, que se tornavam cada vez mais rápidas e mais competitivas. Como resposta, as organizações, que teimaram em sobreviver a estas mudanças, premiaram a redução dos níveis da gestão e a redução da sua dimensão, através da anulação de áreas não essenciais, centrando-se no que melhor sabiam fazer (core competence), subcontratando ao exterior (outsourcing) atividades não fundamentais para o seu core business. Tudo em nome de uma maior flexibilidade da estrutura organizacional.

Mas não foi isto uma forma camuflada de justificar despedimentos? – era o que na altura mais se comentava informalmente. A atuação de algumas empresas na aplicação do downsizing—a redução da dimensão das despesas—resvalou num corte de custos em áreas consideradas não essenciais, resultando geralmente no despedimento de numerosos colaboradores. Introduziu-se, desta forma, o conceito de reengenharia, que não procurou admitir melhorias em processos já existentes, mas procurou repensar e redesenhar radicalmente as práticas e processos nucleares da organização—tais como o serviço ao cliente, o desenvolvimento de novos produtos, a cultura organizacional, a resposta às encomendas, entre outras— a fim de aumentar a produtividade através da redução de custos e do aumento do grau de satisfação do consumidor. 

Contudo, os profissionais de marketing não encararam da melhor forma este novo clima competitivo, tentando permanecer autónomos face a tais desenvolvimentos, sendo que para Doyle esta atitude em nada favoreceu quer a área do marketing, quer as organizações empresariais em geral. O autor vai mais longe, ao afirmar que esta atitude limitou a contribuição efetiva dos profissionais de marketing nas organizações, focalizando-se apenas na extensão das gamas de produto existentes e em novas formas de promoção, mais do que no contributo real para o desenvolvimento de novos produtos (análise, investigação e desenvolvimento), processo operacional (design, inputs, produção e entregas) e no estudo do comportamento do consumidor e serviço ao cliente (CRM — Customer Relationship Management), cujo processo de identificação e comunicação com o consumidor envolve estratégia, investigação, comunicação e serviço relacional. Doyle diz-nos, ainda, que esta atitude resultou, na década de noventa, num marketing marginalizado em detrimento da primazia de outras funções—um cenário perigoso para as organizações, já que sem as técnicas de marketing perde-se a orientação e a focalização no consumidor e no mercado, ganhando-se apenas em organização técnica.

Esta focalização, aliás, não é novidade, já que dez anos antes, Zeithaml e Zeithaml (1984) reforçaram a premissa de que o marketing é uma força ao dispor das organizações, capaz de criar mudança e influenciar o meio envolvente, sendo um meio facilitador da relação entre a organização e a envolvente externa, sobretudo das organizações que são objetivamente orientadas para o lucro. Esta relação não é restrita e limitada (ao contrário do que alguns teóricos mais tradicionais pudessem julgar), mas na prática esta atitude proactiva de interligação acontece e tem sucesso, segundo Zeithaml e Zeithaml (1984), como reflexo da aplicação das variáveis de actuação do marketing (marketing-mix). O ponto de partida das atividades de marketing, e os esforços de investimento, começam nos estudos que cruzam variáveis para prever a tendência do mercado e permitir às organizações tempo de adaptação.

Voltando aos anos noventa, novamente com Doyle (1995), reforça-se o interesse nos outputs em detrimento dos inputs, mais na rede de ligações externa das organizações do que nas hierarquias internas, sendo que a organização passa de uma estrutura vertical, baseada em funções, para dar lugar a uma estrutura horizontal, numa abordagem com processos inter-relacionados, que se reflete não só dentro da organização como também fora dela. Nesse novo paradigma, o marketing não pode ser mais encarado como entidade e prática autónoma, tanto dentro como fora da organização, mas sim existindo em absoluta cooperação com os restantes colegas de trabalho dentro da organização e partilhando processos com outras organizações e entidades fora da organização. Este trabalho em conjunto, tendendo sempre para um objetivo comum—a satisfação do consumidor—permite às organizações solidificarem vantagens competitivas, já que assenta numa dinâmica e dialogante rede de interações que gera conhecimento, sendo para isso fundamental uma organização aberta entre si e entre outras organizações. A área do marketing tem aqui um papel fundamental na identificação das necessidades do mercado, porque quem não dominar este conhecimento será ultrapassado por organizações com uma rede de ligações mais forte. Neste seguimento, não se declara, de modo algum a morte ao marketing, antes pelo contrário: Doyle indica-nos uma nova forma de estar para os profissionais de marketing, que vêem a sua carreira evoluir, não na disposição vertical de ligação directa entre o produto e o apelo ao consumidor, como tradicionalmente se ditava, mas na horizontal, trabalhando projeto a projeto, interligados em processos de forma transversal na organização. Hoje é isso que se verifica.

Doyle reforça, assim, a importância do marketing para as organizações, quando destaca a premissa de que o objetivo é criar relacionamentos com os clientes e os consumidores, formando laços duradouros capazes de suportar lucros futuros e deixar espaço para crescimento. A existência de clientes e consumidores com altos níveis de satisfação e lealdade depende do valor que os mesmos recebem da parte da organização. Tal valor não depende unicamente da atuação dos departamentos de marketing, mas resulta também do relacionamento de modo interno entre os próprios colaboradores da organização e desta com outros públicos ou organizações na sua envolvente externa. As organizações que não são capazes de conhecer as necessidades do mercado, composta por fortes interligações entre os departamentos e pela criação de laços duradouros entre as actividades das organizações e os seus diferentes públicos, serão dominadas por outras com conhecimentos superiores. 

As funções do marketing devem incluir um propósito maior, o de educar toda a organização para orientar os seus procedimentos na direcção do consumidor e do mercado, identificando os mercados e os segmentos mais atrativos, determinando a estratégia base (core strategy)—de forma a levar o consumidor a escolher um produto em detrimento do da concorrência— e promover a rede de interacções interna (o trabalho de equipa) e externa, assim como a motivação e relacionamento interpessoal, baseados no compromisso e na confiança. 

Coviello, Brodie e Munro (1997) também refletem sobre a definição de marketing no ambiente do final da década de noventa. Focalizada que estava a disciplina em facilitar e manter relacionamentos com o consumidor, era comum referir o conceito de marketing relacional como conceito contemporâneo da área, embora não existisse uma noção comummente aceite pela comunidade científica. Desenvolveu-se um esquema de classificação, identificando duas perspetivas tendo em conta o seu contexto prático: o transacional (4 “P”) e o relacional (database, interaction e network marketing). Cada uma destas variantes de marketing tem características únicas que podem ter mais ou menos aplicação tendo em conta o tipo de organização e o mercado que serve.

Dez anos mais tarde, Brodie e Coviello (2008) abordaram estas duas perspetivas, apresentando-nos um estudo que pretendeu analisar tanto o marketing mais conceptual como o marketing mais prático. Este estudo, que acabou por envolver mais de quinze países, trouxe uma contribuição única no campo do conhecimento do marketing, aproximando a teoria da prática. O objetivo inicial deste trabalho foi de perfilar as práticas da área no ambiente contemporâneo e examinar a relevância do marketing relacional em diferentes contextos organizacionais, culturais e económicos. Dá-nos a perceber como as organizações se relacionam com o seu mercado, integrando a concepção tradicional do marketing com as mais modernas práticas que na altura vigoravam.

A seguinte ilustração mostra a rede de ligações das organizações com os seus diferentes públicos, que funciona numa co-dependência contínua, interna e externamente, em que alguns actores são mais próximos do que outros, mas todos são importantes para fazer evoluir a estrutura da organização de modo horizontal, transversal a todos os seus departamentos.

Fig. 1 Rede de ligações de uma organização com os seus diferentes públicos. Fonte: Elaboração própria, da autora Cláudia Ribau

Se houve tempo em que as organizações podiam sentir-se tranquilas, pensando que tinham um bom produto e só tinham que o envolver de forma adequada (produção, venda, comunicação) para assegurar a sua sobrevivência, hoje isso deixou de ser verdade. Hoje as organizações não são nada sem o consumidor, que é cada vez mais exigente, que é cada mais vez mais informado e pede que cuidem dele com dedicação.

As organizações passaram pela orientação para a produção (produzir sem preocupação com as vendas, altura em que a preocupação do marketing era essencialmente entregar o produto), pela orientação para as vendas, aquando da inversão da lei da oferta e da procura (com os excessos de produção e o aumento do ambiente competitivo), pela orientação para o mercado (desde 1930 que tem vindo a ser reforçado cada vez mais e de formas diferentes nas organizações) em que a organização deixa de estar focalizada apenas na produção e venda e orienta-se para a satisfação do consumidor (consultando-o, com recurso a técnicas de estudo do mercado) e, por fim, em finais dos anos 90 a organização como que toma uma orientação social, em que não são só as necessidades e os desejos do consumidor que estão em causa, mas também os seus interesses, de forma a proporcionar ao consumidor um valor superior capaz de lhe garantir o seu bem estar na sociedade[1].

Na década de noventa, a Internet começa a dar os primeiros passos. Este avanço tecnológico naturalmente que teve impacto em várias áreas, inclusive no marketing: as inovações permitidas nos serviços de relação com o consumidor (CRM) e nos de atendimento tornaram possível uma gestão do relacionamento com diferentes actores relacionados com a marca numa escala global. De seguida, a chegada do século XXI e a proliferação no uso da ferramenta deu ao consumidor um poder e um acesso de informação desconhecido até então, o que influenciou naturalmente a maneira como o mercado interage com as organizações, que por sua vez também potenciam os avanços tecnológicos a favor dos seus objetivos, de forma a melhor conhecer o potencial do consumidor[2].

No Fórum Mundial de Marketing e Vendas, em 2009, Philip Kotler reforçou a orientação das organizações para o marketing de vertente holística, destacando a necessidade de se ter uma visão integral do consumidor, o que requer vontade da parte das organizações em construir uma base de conhecimento que permita a concepção dos mesmos como entidades complexas, recuperando o que já tínhamos abordado em relação a Doyle. Neste fórum, Kotler dá-nos um exemplo: ao chegar a um hotel, o cliente, já devidamente reconhecido e interpretado pela empresa, é automaticamente hospedado no quarto que mais gosta, onde encontra também as suas frutas preferidas. Este tipo de marketing exige, mais do que os outros, a constituição de várias parcerias com outras organizações que permitem a uma determinada entidade ter perfis mais abrangentes dos seus clientes. A estrutura do marketing holístico foi, assim, definida por Kotler como explorar valor, criar valor e oferecer valor.

O marketing é decisivo na vida das organizações nesta orientação para o mercado, sempre no sentido de identificar e conhecer cada vez mais e melhor o perfil do consumidor, tal como enalteceu Doyle, mas continua a passar por um processo de contínua transformação e adaptação às tendências contextuais, que não dependem só da mudança dos hábitos sociais mas são também muito marcadas pela evolução tecnológica, que não pára. O ciclo desta área da gestão de organizações fica apenas completo quando se consegue captar o consumidor, vender-lhe o nosso produto e/ou serviço e fidelizá-lo, criando valor para o consumidor e para a marca, gerir todas as interacções com o consumidor, de forma a conseguir alcançá-lo e envolvê-lo na sua relação com a marca, na política da organização e no seu produto e/ou serviço.

A partir de 2010, as organizações começam a prestar mais atenção ao digital e à sua presença online; consequentemente os técnicos de marketing alteram a sua forma de atuar, de usufruir das plataformas disponíveis e de escolherem os métodos mais rentáveis para a implementação das suas estratégias. Nesta nova era, a inovação na área do marketing assenta numa abordagem diferente às políticas disponíveis, mas que visam sempre o mesmo: a satisfação do consumidor e o objetivo último de tornar a marca sustentável (conforme o que está definido nos critérios da OCDE, 2022). A American Marketing Association, particularmente, revê a definição de marketing de três em três anos e reforça, na última resolução aprovada, em 2017, o valor que deve ser garantido: criar, comunicar, entregar e trocar ofertas que tenham valor para os consumidores, para os clientes, para os parceiros e para a sociedade em geral (AMA, 2017). As ferramentas ao dispor dos profissionais de marketing podem assumir uma componente mais digital em detrimento das formas mais tradicionais de comunicar a marca, mas o conceito basilar do marketing permanece o mesmo: o valor que o público-alvo alcança quando adquire um produto/serviço, que fundamenta a adesão contínua do mesmo a uma marca. E é isto que torna a marca e a organização uma entidade sustentável.

Fig. 2 Esquema integrativo do desenvolvimento histórico do conceito de marketing. Fonte: Elaboração própria, da autora Cláudia Ribau

Este foi um breve panorama da evolução do conceito e da prática desde as últimas três décadas. Resta-nos terminar interrogando sobre quais serão as mudanças expectáveis num futuro próximo para a área do marketing, e como é que a evolução que foi aqui descrita se pode adaptar a eventuais novas circunstâncias que surjam. É provável que o sistema horizontal de actuação do marketing que leva à fidelização e identificação do consumidor com a marca se mantenha e se desenvolva, embora também seja possível que abordagens do marketing mais clássicas se imponham e suscitem um revivalismo de práticas de outras eras.

Referências:

AMA: American Marketing Association (2017), https://www.ama.org/, consultado em 10 de Março de 2022, às 16h12.

Brodie, Roderick J. and Coviello, Nicole E. (2008), “Contemporary Marketing Practices research program: a review of the first decade, Journal of Business & Industrial Marketing, 23/2, 84-94.

Coviello, Nicole E., Brodie, Roderick J. and Munro, Hugh J. (1997), “Understanding Contemporary Marketing: Development of a Classification Scheme”, Journal of Marketing Management, 13, 501-522.

Doyle, Peter (1995), “Marketing in the new millennium”, European Journal of Marketing, Vol. 29, Nº 13 (1995), 23-41.

OCDE: Organisation for Economic Co-operation and Development (2022), https://www.oecd.org/, consultado em 21 de Fevereiro, às 20h05.

Zeithaml, Carl P. and Zeithaml, Valarie A. (1984), “Environmental Management: Revising the Marketing Perspective”, Journal of Marketing, 48 (Spring), 46-53.

Notas:

  1. A satisfação do consumidor e a opinião pública, facilitado que estava o acesso à informação, começam a dar atenção às iniciativas sociais das organizações, sendo que para estas passaram a ser consideradas vantagens competitivas. Aspeto que aliás no estudo apresentado por Brodie e Coviello (2008) foi identificado como uma prática de marketing (marketing social) não muito explicitamente considerada.

  2. Surgem-nos conceitos como buzz marketing, marketing viral, marketing digital, entre outros, apoiados nas redes sociais.