Exílio interior como jogo de reflexos em Antero de Quental: as cartas e as «Poesias lúgubres»

O exílio interior como jogo de reflexos em Antero de Quental: uma leitura das cartas e das «Poesias lúgubres»[1] Texto de Sofia A. Carvalho, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Resumo: Proponho uma intersecção hermenêutica entre a literatura autobiográfica contemporânea e a temática do exílio interior (exilium: desterro) a partir de uma leitura das Cartas e das «Poesias Lúgubres» de Antero de Quental. Pretendo, primeiramente, assinalar o valor da consciência hipervigilante que se constrói no processo da escrita e cujo filtro selectivo metamorfoseia, ficcionaliza e recria, a sua «ipseidade» através de «… marcas da funcionalidade autobiográfica» (Rocha, 1992). Seguidamente, problematizo a construção autobiográfica, entendida como «narração retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz da sua própria vida, quando põe a tónica na sua vida individual …» (Lejeune, 2003). Por fim, analiso o paroxismo da epistolografia poética, a par da aguda distinção entre verosimilhança e verdade no acto de reflexão inerente à construção do «eu» no processo poético. Palavras-chave: alteridade, autobiografia, exílio, ficcionalidade, identidade.

No seu paíz Anthero era como um exilado d’um ceu

distante; era quasi como um exilado no seu século.

(Eça de Queirós, 1896, p. 520)

Alma-testemunha do drama universal das almas …

da eternidade que exigimos à transitividade que somos.

(Leonardo Coimbra, 1991, p. 144)

Relembrando o Ut Pictura Poesis[2] horaciano, pretendo problematizar as relações entre a representação do real e a visão singular da disposição poética que se insinua na experiência efémera da existência evocada pela vanitas[3] enquanto reflexo tanatológico de si e do outro.

É a partir da exortação da finitude, baixo contínuo desta indagação, que se gizará o itinerário exegético acerca de uma das ínclitas figuras da Geração de 70, Antero de Quental, visando esclarecer as intersecções hermenêuticas existentes entre a literatura autobiográfica e o exílio interior (exilium: desterro, degredo).

Ao evocar a epígrafe queirosiana e o sentido leonardino de «alma-testemunha», pretendo assinalar o valor da consciência cimeira, excêntrica e hipervigilante que narra e constrói uma imagem de si para o outro de si mesmo, posto que testemunhar implica a existência de um outro «eu»[4].

Defendo que o caso anteriano, nas suas expressões intelectual e espiritual, poderá ser exemplo de uma construção narrativa que, partindo da memória (processo inscrito na temporalidade)[5], ficcionaliza e recria o já acontecido através de «… marcas da funcionalidade autobiográfica»[6] (Rocha, 1992, p. 130).

Seguidamente, e partindo da premissa de que «Toute doctrine de l’image se double, en miroir, d’une psychologie de l’imaginant» (Bachelard, 1948, p. 9), encontro nas cartas anterianas dirigidas a Carolina Michaëlis de Vasconcelos, a 7 de Agosto de 1885, e a Wilhelm Storck, a 14 de Maio de 1887[7], terreno para fundamentar a presença do sentimento de exílio como forma de «auto-protagonismo mítico» (Quadros, 1992, p. 41) – um sujeito real que se pensa oniricamente e cuja máxima expressão permite, paradoxalmente, que «le rêveur pourra rentrer en soi-même» (Bachelard, 1948, p. 14).

A construção autobiográfica, entendida como «narração retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz da sua própria vida, quando põe a tónica na sua vida individual» (Lejeune, 2003, p. 37), é cerzida, igualmente, por uma apresentação do «eu» ao seu interlocutor e aos seus posteriores leitores[8]. Nesta apresentação cénica, erige-se uma tortuosa e solitária peleja em busca de um Ideal, simulando o mote da peregrinação ou ainda o processo de uma metanoia, enquanto resultado de um compressor desencontro interior, como urde Margaretta Jolly: «But don’t you know that the art of letter writing is dying?» (Jolly, 2008, p. 115).

Com efeito, a expressão epistolar, diferindo do diário, nesse «… je me suis presenté moy-mesmes à moy, pour argument et pour subject» (Montaigne, 1978, p. 385), assume um carácter de maior plasticidade, já que «transcende ambos os correspondentes» e «parte ao encontro do outro» (Mathias, 1997, p. 54), podendo ser entendida «as a bridge and a barrier to communication and poised at the intersections of absence and presence, private and public, artifice and truth.» (Karpinski, 2001, p. 301).

É assim que expressões como «alheamento» (p. 747), «internamento», «espírito agitado» e «cavaleiro andante» (p. 748), encontradas na primeira carta, quando cotejadas com a tessitura da segunda carta, encaminham o leitor para uma viragem diacrónica e aporética onde falham todas as direcções: «caí num estado de dúvida e incerteza»; «Achei-me sem direcção» (p. 834).

Este quadro de mocidade, construído na primeira pessoa, revela o cinzelar consciente de uma imagem de si, cujas «turbulência e a petulância» (p. 834) insinuam um exame de consciência que, nessa demanda entre o Ideal e o Real, permite ao autor empreender o combate, simultaneamente, geracional e individuado, e descer para a «arena … eu que nem sequer estava a meio caminho da formação de mim mesmo!» (p. 834).

Neste combate o símbolo poético finissecular do cavaleiro funda, em Antero, um «… quadro fantasmático de um sonho, alegoria do real que é arena de outras lutas, nas quais um sujeito procura a sua própria face.» (Morão, 2004, p. 15). O arquétipo do cavaleiro surge, assim, como princípio hermenêutico operativo que permite o acesso a um jogo de reflexos lido não somente como processo de auto-gnose (reflexio, onis: reflexão), mas também como testemunho e ficcionalização sobre si mesmo[9].

Esta auto-recriação, entendida como uma «… dialectique réversible d’un masque ôté et remis» (Bachelard, 1948, p. 22), desponta como uma espécie de acto de compunção que acontece num espaço helicoidal onde dentro e fora irrompem como ritmos agónicos da consciência, porquanto o processo de ficcionalização sobre si mesmo implica um «Estar fora sem estar alhures. Dentro e fora do mundo ao mesmo tempo. … Ser e nunca estar; estar à procura de se ser; … .» (Mathias, 2013, p. 13).

Neste sentido, é pelo que se faz reflexão escrita que se sobrelevam os traços de um auto-retrato de desenraizamento, evasão e representação da Identidade como Alteridade (reflecto, is: dobrar, voltar, recurvar)[10]: «Em definitivo, se todo o exílio é descontinuidade, todo o exilado é uma consciência fragmentada.» (Mathias, 2013, p. 17).

Todavia, defendo que esta fragmentação ficcionada não incapacita, antes aguça, a auto-análise do sujeito. Destarte, resgato o agudo exercício de hiper-consciencialização do sujeito perante a transitoriedade e o sentimento de finitude, qual ínsula mitogénica (reflexus, us: enseada, baía) confessada em discurso parentético: «… nesta ilha (que é a minha pátria)» (Quental, 1989, p. 833).

Salienta-se, portanto, a experiência agónica do exílio enquanto ruptura dupla (a ruptura de si e a ruptura no tempo) num ininterrupto desejo de ucronia temporal[11]: «Espaço intemporal, o exílio é um tempo inimigo do nosso tempo conhecido, e todo o exilado personifica uma noção de tempo que lhe é própria» (Mathias, 2013, p. 20).

Aclare-se: partindo das distintas tipologias de exílio[12], importa examinar o que se poderá entender por exílio interior ou genesíaco. Nesta acepção, parece existir uma clara intersecção entre uma falta primordial, entendida como queda de um tempo imemorial e ucrónico, e aquele sentido de nostalgia que não só unifica os diferentes planos de exílio, mas também os não confina a uma estrutura estanque, antes os dinamiza e universaliza, em graus de profundidade e deambulação que em muito se assemelha a esse «… logos qui démontre une certaine épaisseur où peuvent vivre les mythes et les images.» (Bachelard, 1948, p. 26).

Reconhecendo na temática do exílio uma matriz cristã (Viçoso, 1997, p. 173)[13] admite-se que a mesma sobrevém como um dos topos privilegiado na cultura portuguesa, desde Camões a Fernando Pessoa, atingindo o seu acmé com o Romantismo, sobretudo, com Alexandre Herculano e Almeida Garrett (Idem, p. 175). Com efeito, nos vestígios de um escol intelectual oitocentista[14], ainda que contextual e formalmente distintos, dá-se a convergência desse tema em Antero, apesar de um claro afastamento da Geração de 70[15]: «Antero de Quental retoma o tema … o proscrito será o eterno inadaptado já que aí não se reconhece …» (Idem, p. 178).

Encontra-se, assim, a mesma matriz ontológica e metafísica do exílio genesíaco, ora em expressão alegórica, ora em apóstrofe (Serrão, 1989, p. 67), em «Poesias Lúgubres»:

A minha antiga vida pareceu-me vã e a existência em geral incompreensível. Da luta que então combati, durante 5 ou 6 anos, com o meu próprio pensamento e o meu próprio sentimento que me arrastavam para um pessimismo vácuo e para o desespero, dão testemunho, além de muitas poesias, que depois destruí (subsistindo apenas as que o Oliveira Martins publicou na sua introdução aos Sonetos) as composições que perfazem a Secção 4.ª (de 1874 a 80) do meu livrinho. (Quental, 1989, p. 837)

Seguindo o fio de Ariadne cedido pela carta, pode-se considerar que «L’intérieur est conquis dans l’infini de la profondeur pour l’infini des temps.» (Bachelard, 1948, p. 35). Partindo deste pressuposto, a temática do sujeito deambulante recai, justamente, na figura do peregrino[16] e na imagem de cavaleiro[17]: figuras que fundamentam o percurso anteriano como peregrinação ou jornada de errância. O confronto consigo mesmo conduz, por um lado, a prementes polarizações entre as forças interiores e exteriores de um «eu» onírico e de um «eu» real e, por outro, à edificação de um imaginário cuja força anagógica reside, justamente, na visão rara e inigualável de encarar este mundo como sendo o verdadeiro exílio:

Seeing «the entire world as a foreign land» makes possible originality of vision … plurality of vision gives rise to an awareness of simultaneous dimensions, an awareness that – to borrow a phrase from music – is contrapuntual. … Exile is never the state of being satisfied, placid, or secure. Exile, in the words of Wallace Stevens, is «a mind of winter» in which the pathos of summer and autumn as much potential of spring are nearby but unobtainable … a life of exile moves according to a different calendar … Exile is life outside habitual order. It is nomadic, decentered, contrapuntual; but no sooner does one get accustomed to it than its unsettling force erupts anew. (Said, 2001, p. 186)

Será na apreensão de um pathos invernoso regido por uma «… loi que nous appellerons l’isomorphie des images de la profondeur» (Bachelard, 1948, p. 51), que se situam as poesias destruídas de Antero no terceiro e último ciclo, compreendido entre 1877 e 1885 (Serrão, 1989, pp. 29-32). Relembrando o exílio voluntário em Vila do Conde em 1881, o leitor depara-se como uma espécie de exultação do taedium vitae e da solidão, inscritos na imagem de um «eu» agónico, pessimista e deceptivo, cujo sentimento de orfandade genesíaca transporta o autor para o mundo como um sítio ermo: «No matter how well they may do, exiles are always eccentrics who feel their difference (even as they frequently exploit it) as a kind of orphanhood» (Said, 2001, p. 182).

A este sentimento de orfandade une-se uma função litúrgica e reveladora, ainda que apocalíptica, da poesia e do pensamento num «alo-retrato» do autor (Morão, 2011, p. 59): «Um filósofo manqué, talvez porque, afinal, ainda não revelei ao mundo o meu Apocalipse, nem sei se chegarei a revelá-lo…» (Quental, 1989, p. 748).

Na verdade, não pretendendo levar a cabo uma análise estilística e retórica das «Poesias Lúgubres», noto que a expressão literária reitera o clima dramático adstrito à experiência do exílio interior, enquanto testemunho genesíaco da condição humana e marca de uma consciência desiderativa e agónica:

Les images matérielles de l’intimité querellée trouvent un appui bien dans les intuitions vitalistes que dans les intuitions alchimiques. Elles obtiennent une adhésion immédiate de «l’âme gastrique». (Bachelard, 1948, p. 65)

É nesta atmosfera de devastação de si, do outro e do mundo, lembrando a simbólica do Vale das Lamentações[18], que se esculpe o políptico alegórico (à excepção de Hino da Manhã), cujo primeiro andamento se dá com «Os Captivos» (p. 35), nome que fixa e concede abertura hermenêutica aos propósitos desta indagação.

Ora, no zénite de uma ambiência crepuscular contrastante com a lividez dos «pallidos captivos» que «Olham o céo» (p. 35), assiste-se a uma encenação brumosa e remota da queda da tristeza «das cousas, lentamente» (p. 35). A marca da passagem do tempo, acompanhando a consciência cimeira, torna-se descoincidente com o ritmo vivo e lesto dos «Bandos de aves / Passam velozes, passam apressados» (p. 36). Este movimento de contradição entre o dentro e o fora permite autenticar que «… tous les dynamismes des forces qui naissent de la division de l’être … se désignent comme un pessimisme de la matière» (Bachelard, 1948, pp. 73-74).

Será, então, através de uma apologética ucrónica, resultado de uma distopia interior, que se marcará, por um lado, o compasso antitético daqueles dois ritmos tensionais e, por outro, se atingirá o ápice da encenação telúrica que percorre todo o poema (p. 36):

… Que tristezas,

Que segredos antigos, que desditas,

Caminheiro de estradas infinitas,

Te levam a gemer pelas devezas?

Tu que procuras? que visão sagrada

Te acena da soidão onde se esconde? …

Na senda de uma «biografia interior» (Oliveira, 2004, p. 164), a imagem da eterna peregrinação votada ao vazio da falha assinala em amplificatio afectiva (Lausberg, 2011, p. 166) a triádica resposta dos «captivos»: «A noite, a escuridão, o abysmo, o nada! –» (p. 37). O cenário evoca: primeiro, a noite sulfúrica e dantesca; segundo, a escuridão trevosa que empece os membros; terceiro, o sentimento de vertigem face ao precipício cosmogónico e, por fim, o vórtice desse vazio – o nada, o não-ser – lembrando que «… pour un authentique rêveur de l’intérieur des substances, un coin d’ombre peut évoquer toutes les terreurs de la vaste nuit» (Bachelard, 1948, p. 76).

Concorde com a leitura segundo a qual «… a alegoria dos homens cativos desvenda o seu germinal “segredo” …» (Serrão, 1989, p. 68), dir-se-ia que o eixo aumentativo do exílio genesíaco conduz o leitor para uma abordagem ôntica e gnosiológica de uma «… congénita aflição da ignorância absoluta acerca do que é e não é.» (Idem). O grito, elevado e subterrâneo, da consciência condenada à errância torna-se marca metafísica de um desenraizamento originário – essa falta primordial[19] – do mítico Homo Viator.

Avance-se para o segundo momento com «Os Vencidos» (p. 37): «Tres cavalleiros seguem lentamente» (p. 37). Próximo da marca temporal de «Os Captivos», não se pode deixar de referir a carga simbólica inscrita no número três, enquanto cifra da Santíssima Trindade, a par do exílio interior ou genesíaco: «Por uma estrada erma e pedregosa» (p. 37).

Partindo do elemento temático do estranhamento, na forma radicalizante do taedium, fastidium (Lausberg, 2011, p. 112), a experiência da transitoriedade temporal verte-se por inteiro num topos da solidão e da dor, esse caminho estreito[20] de iniciação in illo tempore:

A crise opera uma cisão irremediável entre o lá mítico e o aqui e agora. Assim se compreende a oscilação romântica entre uma tradição idealizada … e a apologia da modernidade. … A dor (algos) do regresso (nostos) – um dos seus arquétipos literários estaria na viagem de Ulisses em direcção a Ítaca – conduz o prófugo para uma postura de melancólica solidão que apenas acha refrigério no diálogo patético … (Viçoso, 1997, p. 174)

Encontra-se, por conseguinte, o desventurado desfecho da excursão cavaleiresca: «Das feridas lhes cae o sangue, em gotas» (p. 37). Ainda que antecipada pelo título, a derrota assume expoente máximo com a imagem da temporalidade inscrita no estilar vitalista do sangue: «… carregam … um passado que paradoxalmente dá sentido à sua busca da Ventura mas a condena ao falhanço irremissível dos que partem já sem esperança …» (Morão, 2004, p. 15).

A partir daí o que é revelado tragicamente ao leitor são as diferentes causas da derrota: o primeiro cavaleiro prova o «calix purpurino» (p. 38) do desejo, maculando a estratosfera «Onde vivem as almas que se adoram» (p. 38) e cuja punição será vagar «incerto e fugitivo» (p. 38) – temática cujos ecos platónicos do érōs lembram o Banquete. O segundo cavaleiro, na demanda «Pela justiça heroica» (p. 38), é traído pelo «gladio em meio do combate»[21] (p. 39) e todas as sementes lançadas em «areia movediça!» (p. 39) decifram o seu fatum: morrer «á mingua» e «ingloriamente» haurido pela «areia adusta» (p. 39). De notar ainda a alusão ao tópico da semente, marca temática no Antigo e no Novo Testamento, sobretudo, numa das parábolas do Reino (a da colheita dificultosa)[22], reiterando o sentido de provação e de áspero caminho, inerente ao sentimento de exílio genesíaco. O terceiro cavaleiro, em prédicas de «ancia e sobresalto», invoca «a Deus» (p. 39), mas o «Tedio reçuma a luz dos dias vãos…» e os três cavaleiros, avassalados, posto que derrotados, erram «na selva impenetrável / E no palor da noite silenciosa» (p. 40).

A derrota assume, então, a expressão indefectível da atmosfera de desenganos anteriana, posto que: «… a poesia não podia senão ser concorde com as obsessões mais fundas de quem a construiu.» (Morão, 2004, p. 17), donde o «carácter autobiográfico»[23] (Serrão, 1989, p. 69) de um certo tipo de poesia:

Com efeito, os três cavaleiros, conquanto todos vencidos, alegorizam de forma exemplar três fases da essencial caminhada anteriana: a atitude lírica, a revolta ante a justiça, a consciência de que, irremissivelmente, morrera o Deus da sua infância e juventude. (Idem)

Adensa-se a atmosfera tumular com o poema «Entre Sombras» (p. 40) e, tratando-se, igualmente, de uma alegoria apresenta, não só pelo ónus continuado da dupla adjectivação «erma e triste», uma estrutura mais intrincada e proteica, como denota Joel Serrão[24]:

É que a «noite» que ali metaforiza a morte surge com duas conotações distintas, a saber, a morte … como realidade simbólica e mítica e a morte como estado anímico de quem já nada espera da vida. (Idem, p. 69)

O leitor é, assim, convocado por «Uma visão, com azas de setim…» (p. 40) que «habita a região distante» (p. 41). Ora, que «região distante» (p. 41) será essa? Distante do poeta, da sua visão? Distante, porque inatingível neste mundo? Promessa indefectível de um outro porvir? Ou chamamento socrático de um aprender a morrer em vida? Não se conseguiria determinar as qualidades dessa região mítica se, por complementaridade, não se acedesse à atitude indolente e descrente do poeta que habita as duas Noites, a noite física e a noite eterna: «escuto-a immovel, somnolento» (p. 41).

Lembre-se que Thanatos surge na Ilíada como irmão de Hypnos (Grimal, 1999, p. 332), um dos elementos concebidos pela Noite, filha do Caos na Teogonia hesiódica (Idem, p. 427), o que permite aclarar o significado da postura dúplice e janúsica do poeta: por um lado, o abaixamento dos sinais vitais e corpóreos, enquanto abatimento físico que tudo suspende para que seja possível o enlevamento interior, propício a estados de alheamento; por outro, a dramaturgia sorumbática do sujeito, símile da pose tumular.

É esta uma construção cénica de um sujeito que repousa e cujo repouso é já antecâmara do último sono. Examinem-se outras duas transfigurações ou, melhor, revelações: a noite «clarão que offusca» torna-se «erma como campa enorme –»; e o poeta alheado, «n’ um pasmo doloroso absorto», depõe: «Bem sabes que estou morto !» (p. 41).

O avolumar de exemplos da «vivência poética anteriana» (Serrão, 1989, p. 70) como exílio genesíaco atinge a sua sublimação com «Hymno da Manhã» (p. 42): «… o Antero do Hino da Manhã situa-se a meio caminho entre Herculano e Pascoaes» (Idem).

Com «Hymno da Manhã», essa «… apóstrofe … cuja eloquência e cuja autenticidade a situam nos cimos da ininterrupta cordilheira portuguesa …» (Idem), precipita-se o movimento da consciência poética alternada entre as díades de negatividade e positividade, à maneira dos dois Anteros, o apolíneo e o dionisíaco, de que nos fala Sérgio (Sérgio, 1972)[25]. O cântico distópico e elegíaco – «Porque nasce mais um dia?» (p. 43) – materializa, por um lado, o alheamento contínuo face a um mundo onde nada seduz e, por outro, consubstancia a desolação e o ensimesmamento, qual «crypta monstruosa… … Surges em vão, e em vão, por toda a parte» (p. 46).

Dá-se, assim, a urdidura agónica da inextrincável aliança entre o taedium e a noção de culpa e de pecado, tornando-se aquele a imagem convexa desta última:

«É ela que, mais forte que a própria razão, inviabiliza que o sujeito se liberte do que parece ser um destino inelutável, e faz com que ele acabe, num movimento como de involução, voltando-se para si mesmo, numa auto-reflexividade abismal.» (Morão, 2004, p. 166)

Entendendo o homem como «un drame de symboles» (Bachelard, 1948, p. 90), a imagem anteriana da «crypta monstruosa» (p. 46) permite a confluência de dois espaços, a princípio dicotómicos e, posteriormente, subsumidos em proteica dialéctica por um «eu» agónico que ora se expande, ora se contrai, em movimento de sístole e diástole:

… les images de la grotte relèvent de l’imagination du repos, tandis que les images du labyrinthe relèvent de l’imagination … du mouvement angoissant. (Idem, p. 185)

Ante o desejo de regresso a uma «demeure sans porte» (Idem, p. 186), o peregrino cavaleiro encontra-se numa encruzilhada entre o nascer e a eterna agonia a que está votado, simultaneamente, como «… sujet et object conglomérés en être perdu» (Idem, p. 212). O poeta exaurido do vortex de danação desfere as últimas e condenatórias palavras: «Symbolo da existencia, sê maldito !» (p. 46).

O derradeiro painel alegórico é «A Fada Negra» (p. 46) que matiza a razão decrépita e putrefacta, isto é, «… o outro “lado” da “Razão, irmã do amor e da justiça”, cantada no soneto Hino à Razão …» (Serrão, 1989, p. 71). É essa mesma razão que o poeta toma «sobre o seio ermo e vazio» (p. 46), à maneira de um regresso invertido ao colo materno. Numa agónica logomaquia, aquela esparge o seu hálito de morte e tudo inutiliza, vence e abole: desde a alma que «se estorcia» (p. 47), aos ossos quebrantados, ao «coração inerte e exangue» (p. 47) até à contaminação do mundo como «Um grande mar de nevoa, de illusão, / E a luz do sol como um luar de mortos…».

O abalo do Ideal pelo qual tanto propugnara esvai-se e o seu desmoronamento integral (p. 47) escava uma cova funérea no lugar do coração, esse «abysmo» (p. 47). O leitor abeira-se, assim, do fundamento do sentimento de exílio genesíaco – «Vi de que noite é feita a luz do dia !» [26] (p. 48).

Esta dramaturgia surge potenciada pelo cismar melancólico, entendido enquanto iniciação de si e resultado directo da experiência do exílio genesíaco[27], aqui pressentido como hostil passagem: «Nunca a poesia portuguesa conhecera uma tal capacidade de confissão, acompanhada de meditação abstracta.» (França, 1993, p. 1046).

A deambulação errante e incerta contamina a mundividência poética e intensifica o jogo de reflexos que se dá nessa espécie de desdobramento de si como «arena» e plateia: «A minha alma curva-se dentro de mim, / e por isso eu me lembro de Ti … / Grita um abismo a outro abismo …»[28].

Antero: cativado pelo abismo, testemunhou-o. E assim permaneceu, cativo, porém, impregnado d’ luz.

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  1. Texto publicado, pela primeira vez, em A Escrita do Eu. A Literatura como Laboratório da Vida., Maria Helena Jesus, Paulo Jesus, Gonçalo Marcelo (Eds.), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2020, pp. 321-342. Foram feitas alterações de estilo pontuais, mas não de conteúdo.

  2. É neste sentido que se lê: «non plus qu’un mien pourtraict chauve et grisonnant, où le peintre auroit mis, non un visage parfaict, mais le mien.» (Montaigne, 1978, p. 148).

  3. Evoque-se: «Tu és pó, e ao pó voltarás» (Gn 3:19).

  4. A esta excentricidade de si não é estranha a hermenêutica autobiográfica, senão veja-se: «… a auto-análise consiste em tomar-se a si próprio como objecto, pensar-se para se constituir em retrato – e neste sentido todo o auto-retrato é um alo-retrato, uma alografia … em que se cumpre um projecto de reconhecimento … ou como escreveu Louis Marin, a auto-bio-grafia é auto-bio-thanato-grafia …» (Morão, 2011, p. 59). Este processo analógico entre pintura e escrita na representação do «eu» amplia a ambiguidade do auto-retrato: «… o “som das palavras” e as suas diversas variações constituem o contexto teórico que permite compreender a “história” dos dois auto-retratos: duas variações modais da expressão do eu» (Marin, 2007, p. 297).

  5. Note-se a importância da díade memória-tempo na escrita autobiográfica: desde as Confissões (cf.: Santo Agostinho, 2001, Livro X, XIV, pp. 21-22; XV, p. 23; Livro XI, XIV, p. 17) até às reflexões hodiernas: «The primary material of the autobiography is memory … and of his or her power of exclusion and choice» (Cockshut, 2001, p. 78). Frisando a clara conexão entre exílio e memória, atente-se: «exile and memory go together, it is what one remembers of the past and how one remembers it that determine how one sees the future» (Said, 2001, p. XXXV).

  6. Tais como: o processo de autojudicação e a marca testamentária.

  7. Quental, 1989. Seguir-se-á esta edição, respeitando as suas grafia, acentuação e pontuação.

  8. Ainda que no caso anteriano exista uma nítida consciência de publicação (pelo menos no que se refere ao conteúdo da carta autobiográfica a Wilhelm Storck), isso não só é significativo para a exegese autobiográfica, mas também para o que ficou conhecido como «pacto autobiográfico» onde o leitor emerge enquanto «objecto de um pedido de amor. … testemunha, como se fosse membro do júri de um tribunal criminal ou de recurso.» (Lejeune, 2003, p. 50). Dir-se-ia que a escala de heterodoxia da epistolografia no contexto autobiográfico assume aqui o seu apogeu: «… epistolary poetry … is entrenched in a paradox. It is private, intimate communication to a distant addressee; however, if published, the letter poem is intended for public consumption. These self-revelatory and voyeuristic qualities of epistolary poetry make it akin to life writing.» (Karpinski, 2001: 302).

  9. Interessante é notar a actualíssima agudeza de Oliveira Martins: «É verdade que dentro de si tem permanentemente um espelho facetado que representa e critica as modalidades do seu pensamento; mas, por isso mesmo, vê ou inventa faces de mais ás coisas, e tambem por vezes o cristal embacia.» (Martins, 1886, p. 10). Esta ficcionalização do «eu» assume um carácter sistémico nos Sonetos anterianos, posto que a sua «estrutura organizativa» se justapõe à «matriz poética» e à «matriz narrativa» (Buescu, 1995, p. 234). Aliás, na literatura autobiográfica a matriz especular (speculum) assume contornos centrais não apenas no indício da auto-contemplação, a seu tempo nocturna e solar, mas, sobretudo, como espelho, ora reflectindo a identidade e a diferença (Chevalier e Gheerbrandt, 1994), ora “descentrando-se para melhor se observar” (Morão, 2011, p. 56). Por fim, note-se que esta tessitura de encenação de si poderá ainda ser lida como «personal performance» (Gratton, 2001, p. 86).

  10. Notem-se as expressões anterianas: «diário íntimo»; «autobiografia de um pensamento»; «memórias de uma consciência» (Quental, 1989, p. 839). E ainda as palavras de Oliveira Martins: «Esta collecção de Sonetos é, portanto, ao mesmo tempo biographica e cyclica. Conta-nos as tempestades de um espirito; mas essas tempestades não são os quaesquer episodios particulares de uma vida de homem: são a refracção das agonias moraes do nosso tempo, vividas, porem, na imaginação de um poeta» (Martins, 1886, p. 14).

  11. Não poderia deixar de evidenciar a importância da temporalidade na consciência do exilado: «Ter consciência do tempo é já uma forma de exílio» (Mathias, 2010: 68). É neste sentido que «Exile crosses borders, breaks barriers of thought and experience … what is true of all exile is not that home and love of home are lost, but that loss is inherent in the very existence of both.» (Idem, p. 185).

  12. Especifique-se: o exílio real, voluntário ou não; o exílio interior, enquanto cisão dentro do próprio país, e o exílio psicológico, tido como afastamento da comunidade (André, 1997, p. 439). Importa aqui o exílio como expressão de «solitude and spirituality» (Said, 2001, p. 181).

  13. A par dessa referência cumpre mencionar a teologia do exílio em Dt 30: 3-4.

  14. Da relação imediata entre o tédio e a «… urbanização em larga escala …» resulta, inexoravelmente, a «… instabilidade, o desajustamento, acre percepção da solitude» (Serrão, 1980, p. 146).

  15. Tamanho é o relevo do contexto geracional em Antero, que se encontram nas Cartas expressões polimórficas para a sua designação: «revolução intelectual e moral»; «agitação intelectual de um centro» (p. 833); «correntes do espírito moderno»; «geração»; «velha estrada da tradição» (p. 834); «geração ardente»; «mocidade»; «fermentação intelectual» (p. 835); «velho Portugal»; «espécie de revolução»; «modelo de prosa moderna»; «nova era do pensamento português» (p. 836); «geração nova» (p. 837); «espírito moderno»; «pensamento moderno» (p. 839). Segundo Inocêncio, o Autor encontra-se no seio de uma «escola ultra-idealista», cuja batalha, conhecida como «A Questão Coimbrã» (cf.: Machado, 1977), se reviu numa «… luta entre dois romantismos.» (França, 1993, p. 867). Acerca da Geração 70 e da sua ligação com o exílio, atente-se: «Exílio que é, ao mesmo tempo, o excesso na criação estética em si, como absoluto, e a sua relação com o sentido histórico da cultura» (Machado, 1980, p. 389). A este respeito, surge a referência a um certo dandismo e a sua ligação com o exílio no que se entende por «dilema narcísico», verificado no paradigma romântico e na estética modernista (Morão, 2008, pp. 347-348).

  16. Esta figura reúne quer a imagem do espírito inquieto e desenraizado, qual homo viator que «… empreende uma busca, e mais, que recebe desde logo os estigmas da impossibilidade de atingir o que procura … » (Morão, 2004, p. 159); quer a marca de transitoriedade e efemeridade, sem exceptuar um «certo irrealismo», inerente às «ideias de expiação, de purificação» (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 520).

  17. Figura que perpassa variadas culturas e religiões, bastando recordar os cavaleiros do Apocalipse e os da Távola Redonda (Morão, 2004, pp. 11-12), inscrevendo-se «num complexo combate e numa intenção de espiritualizar o combate» (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 170).

  18. Contextualize-se: «Felizes os que encontram em Ti a sua força / ao preparar a sua peregrinação: / quando atravessam vales áridos, / eles transformam-nos em oásis, como se a primeira chuva os cobrisse de bênçãos.» (Sl 84: 6-7). Topos do sentimento de exílio genesíaco entendido, simultaneamente, como caminho de provações e sítio ermo onde se trava o combate entre a luz e as trevas; e, outrossim, como locus de cativeiro, posto que o ser humano se encontra afastado da unção da luz divina (cf.: Sl 85: 2).

  19. Leonel Ribeiro dos Santos aprofunda a questão do desterro físico e psicológico em Antero, a par da sua desinstalação intelectual, social, cultural e ontológica, partindo de duas balizas temporais: a ruptura com a figura paterna e a fé em que fora educado. Considerando esta «metafísica da existência» (Santos, 1993, p. 687) como um dos alicerces da presente investigação, pretendo, porém, encontrar um conceito plástico que aglomere todos os diferentes tipos de exílio, a saber: o exílio interior, entendido como genesíaco.

  20. Note-se que são múltiplas as passagens bíblicas que apontam para uma exegese do caminho e das provações: o caminho que conduz à vida e à morte em Dt 31: 15-19 e em Prov 14: 12-13; os caminhos comuns e os desertos em Jz 5: 6; o caminho da porta estreita e o da larga em Mt 7: 13-14 e em Lc 14: 24; as moradas do Pai e o Caminho do Filho, da Vida e da Verdade em Jo 14: 2-6; o caminho da Luz e das Trevas em Jo 1: 4-5 e 8-12; e, por fim, o caminho dos justos e dos ímpios (Sl 1: 6) correlacionado com o caminho recto (o da direita) e o caminho sinistro (o da esquerda), simbolizando a passagem «do incriado ao criado» ou com o «olhar à direita» – o dos Eleitos em contraposição ao dos Condenados (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 267). Ainda acerca do estreitamento do caminho, acrescente-se: «… ce n’est pas parce que le passage est étroit que le rêveur est comprime – c’est parce que le rêveur est angoissé qu’il voit le chemin se resserrer» (Bachelard, 1948, p. 215).

  21. Assinale-se que o gládio é tido por um «instrumento da luta arquetípica entre o Bem e o Mal pela posse de um Poder-síntese colocado sob o signo cavaleiresco e hermético.» (Júdice, 1983, p. 11).

  22. Mt 13: 3-9. Esta temática é resgatada nos seguintes versos de «Hymno da Manhã»: «O sol, inexoravel semeador» e «As sementes innumeras da Dor!» (p. 44).

  23. A íntima relação entre autobiografia e poesia poderá ser encarada como uma amplificação ficcional da primeira, através das epístolas em análise, e um drama literário dessa mesma ficção, pelas «Poesias Lúgubres»: «… where the author denotes a clear referential connection between the drama of the work and the drama of his or her own life» (Abbs, 2001, p. 82).

  24. Note-se que a análise de Serrão aponta para uma correlação entre o poema «Entre Sombras» e «Anima Mea», acentuando a unissonância temática e o nivelamento estético do período crítico compreendido entre 1879 e 1881 (Idem, p. 70).

  25. Parece legítima a visão de Joel Serrão ao afirmar o reducionismo da leitura de dois Anteros, propondo a de um Antero, ainda que dividido e contraditório, cuja máxima expressão surge na complementaridade ou hesitação entre esses mundos, aparentemente, opostos (Serrão, 1989, pp. 32 e 65). A este respeito, advoga Nuno Júdice uma «… circularidade em que os pólos positivo e negativo se vão alternando …» (Júdice, 1985, p. 5). Também França exprime esta «oscilação» como causa irresoluta das angústias do Poeta (França, 1993, p. 1040). Esta alternância encontra-se, ainda, na carta a Carolina Michaëlis de Vasconcelos, quando afirma: «… o meu pensar e o meu sentir (coisas que em mim andam sempre muito irmãs …» (Quental, 1989, p. 747).

  26. Ecos anterianos a lembrar a lamentação de Job: «Converta-se esse dia em trevas!» (Job 3:4).

  27. Determine-se: «Vós não sois do mundo…» (Jo 15:19).

  28. Sl 42: 7-8.