No mundo dito secular, a imagem de um prelado da Igreja, nomeadamente a de Joseph Ratzinger, tende a ser descrita de modo pejorativo. Talvez se pense que não se deve poupar em eufemismos quando se trata de enfrentar o cardeal que dirigiu a Congregação para a Doutrina de Fé, herdeira do Santo Ofício, durante o pontificado de João Paulo II; alguém que se mostrou intransigente em relação às posições da Igreja no que concerne a moral e os costumes. À medida que se foi alimentando o tom agressivo, próprio de epítetos tais como ‘‘Panzer Kardinal’’ ou ‘‘Pastor alemão’’, impôs-se na opinião pública o lugar-comum segundo o qual Ratzinger é um conservador ou um tradicionalista, e nada mais.
Contudo, os testemunhos que nos chegam de quem o conhece de perto não corroboram a visão segundo a qual Ratzinger seria alguém incapaz de se adaptar aos progressos da história por estar cristalizado em tradições obsoletas. Apesar das polémicas que o cardeal alemão viveu com Hans Küng ou Leonardo Boff, várias personalidades que tiveram a oportunidade de com ele conviver dizem ter estado na presença de um homem discreto, humilde e cordial. Jürgen Habermas, um filósofo agnóstico, não só se dispôs a frutuosos diálogos com o então prelado romano, como se encantou com sua erudição.
Talvez tenha sido a sua paixão pela cultura, desde a filosofia até à música que as suas mãos fazem soar no piano, a torná-lo num homem capaz de dialogar e de escutar. A clareza das suas posições, que por vezes nos parecem intransigentes, talvez venha do espírito académico e do rigor argumentativo que todos lhe reconhecem.
Foi significativa a sua participação ativa no Concílio Vaticano II (1962-1965) onde, sob a égide do cardeal Frings, apoiou o espírito reformista que pairava entre os jovens intelectuais católicos de então. A relação de Ratzinger, em particular, e da Igreja Católica, em geral, com o Maio de 68 não pode compreender-se sem os ventos de mudança que caracterizam a sociedade da década de sessenta. Enquanto no mundo secular se ouvia o slogan “ventos de mudança”, no meio eclesiástico falava-se de um “novo Pentecostes”.
Foi nesse contexto que Ratzinger, na qualidade de “teólogo do Concílio”, surgiu como um personagem ativo a favor da mudança. Por isso mesmo, muitos viram nele um ‘‘progressista’’, não por ter chegado a Roma de gravata e camisa branca, mas, sobretudo, por trazer consigo uma teologia diferente da escolástica tradicional que delimitava não só o conteúdo doutrinal defendido pela Igreja, mas também (e talvez sobretudo) o modo de o formular e de o transmitir.
De fato, já na sua tese doutoral de 1953, intitulada Povo e casa de Deus na doutrina da Igreja de Santo Agostinho, o jovem teólogo afastou-se da escolástica recorrendo a um dos mais prestigiados Padres da Igreja. Surge, no mesmo sentido, a dissertação que apresentou para a sua Habilitation, em 1957, sobre A teologia da história de São Boaventura. As suspeitas de modernismo que Michael Schmaus levantou sobre este trabalho fazem-nos compreender a qualificação de ‘‘progressista’’ que caracterizava o Ratzinger dos anos sessenta.
A partir de 1968, aquele que ainda era apenas um professor de teologia tornou-se num membro influente da recém fundada Comissão Teológica Internacional, um organismo que procurava aprofundar o diálogo entre o Magistério da Igreja e a comunidade dos teólogos.
Recordando esses tempos longínquos, o atual Papa emérito não deixa margens para dúvidas quando lhe perguntam: “A que grupo é que considerava pertencer nessa altura? O progressista? – Diria que sim. Naquele tempo, ser progressista não significava ainda abandonar a fé, mas sim aprender a compreendê-la melhor e vivê-la mais corretamente a partir das origens.” (Conversas finais, D. Quixote 2016, p. 156).
Ratzinger procurou também, de certa maneira, a autenticidade que caracterizava o espírito do Maio de 68. Autenticidade significa, aqui, o desejo de ser genuíno; o Maio de 68 como “prise de parole” ou “pouvoir de parler”, nos termos do jesuíta francês Michel de Certeau. No fundo, o espírito desta época, e deste evento em particular, revela a vontade de quem procura viver a partir da realidade que é, impedindo dessa forma que a sua vida se determine em função de imposições exteriores que não lhe pertencem autenticamente.
A constituição dogmática Lumen gentium (1964) pode ser lida como a expressão de uma Igreja que, em vez de ser imposta de fora aos fiéis, lhes pertence e brota das suas vidas. Na qualidade de especialista do concílio, Ratzinger colaborou para uma reorientação da concepção de Igreja nesse sentido: em vez da noção de societas perfecta que prevaleceu na teologia católica dos séculos precedentes, o Concílio usa a expressão povo (de Deus) a caminho. Era essa, aliás, a perspectiva que já transparecia nas dissertações ratzingerianas anteriormente referidas.
Joseph Ratzinger também se horrorizou, no entanto, com certos aspectos do Maio de 68, sobretudo com tudo o que ele significou de ruptura radical. Quando estudantes impediram o normal funcionamento das instituições académicas ou destruíram inúmeros objetos, incluindo crucifixos, por os considerarem uma espécie de culto sadomasoquista, Ratzinger mudou a sua atitude em relação aos “ventos de mudança”. Segundo o seu colega Hans Küng, ele terá passado para a ala mais conservadora da Igreja como reação aos excessos do Maio de 68.
Certos acontecimentos parecem confirmar esta tesa de uma viragem no percurso ratzingeriano. Refiro-me, por exemplo, ao facto de ter deixado a revista Concilium, onde colaborava desde 1965, em prol de uma nova revista teológica, a Communio, onde, juntamente a personalidades tais como Henri de Lubac e Hans Urs von Balthasar, procurou defender o regresso à letra dos textos do Concílio em vez de seguir o seu espírito; o tão falado ‘‘espírito do concílio’’. Também é verdade que, enquanto Papa, Bento XVI insistiu na condenação da “ditadura do relativismo”, algo que considerava ser um perigo real para as sociedades contemporâneas (cf. Homília da Santa Missa “Pro elegendo Romano Pontifice”, 18 de abril de 2008).
Apesar disso, em relação ao ambiente dos anos sessenta, creio que Ratzinger guardou o anseio por uma maior autenticidade na prática da fé cristã. Nesse sentido, seria injusto reduzir o Maio de 68 a um conjunto de ações levadas a cabo por anarquistas. A diversidade e riqueza do Maio de 68 traduzem-se na ação de agentes, tanto ateus como cristãos, provenientes de movimentos radicais e de outros mais moderados, pelo que se torna difícil de conferir uma unidade a este evento sem cair em clichés reducionistas.
Talvez a chave de leitura que nos permite sintetizar o Maio de 68 resida no abandono das grandes narrativas, às quais devia adaptar-se a vida de cada indivíduo, bem como o sentido de toda a História. Foi precisamente por isso que as instituições clássicas e as formas tradicionais de organização social caíram em descrédito e, com elas, também a Igreja. O Maio de 68 significou a rejeição de uma autoridade que impõe regras desde fora. Os homens e as mulheres dessa geração já não são capazes de reconhecer uma autoridade que se exerce de cima para baixo.
Apesar desta crise de autoridade afetar profundamente a Igreja, Ratzinger também viu nela uma oportunidade para anunciar um cristianismo mais autêntico. 1968 é, também, a data da publicação de Einführung in das Christentum, uma obra que já atingiu o estatuto de clássico. Procurando “nos dias de hoje (…) falar sobre a fé cristã”, o teólogo alemão afirma a “estrutura dialógica da fé” (cf. Introdução ao cristianismo, Principia 2005, pp. 27, 65). E já mesmo enquanto Bento XVI, Ratzinger continua a insistir que, antes de quaisquer princípios morais, a fé começa por um “encontro” pessoal com Cristo (Deus caristas est, §1).
Na sua obra de 1968, Ratzinger sente-se como o palhaço da parábola de Kierkegaard. Reza a história que um palhaço, devidamente aperaltado para entrar em cena, se apercebeu de um incêndio que ameaçava toda a vila. Mas por mais que gritasse apavorado ao público que se reunia no circo, ninguém se preocupava em ir apagar o fogo. Alimentando cada vez mais as gargalhadas da plateia, o discurso do palhaço em pânico não evitou a catástrofe (cf. Introdução ao cristianismo, p. 27-28).
Sensível à impotência do palhaço de Kierkegaard, Ratzinger revela-se consciente da impossibilidade de comunicar uma mensagem quando se adopta trajes não conformes às exigências das circunstâncias. O prelado alemão previne, por isso, os teólogos no sentido de adaptarem os seus discursos ao mundo em que se encontram. É preciso falar a linguagem de hoje para se fazer compreender e para que uma tradição possa ser transmitida.
Ratzinger não se refere, além disso, apenas à forma, mas também ao conteúdo, tendo colaborado ativamente, nesse contexto, na mudança do discurso e das posições da Igreja. Em 1968, o Papa Paulo VI instituiu o dia mundial da paz, como festa católica a celebrar no primeiro dia de cada ano. A partir de então, os discursos oficiais do Magistério Católico, bem como a ação diplomática do Vaticano, têm deixado de insistir na defesa teórica da “guerra justa”, em benefício da defesa da paz e do desenvolvimento justo das nações. No mesmo sentido, abandonando a nostalgia pelas velhas monarquias e pelos estados oficialmente católicos, a Igreja tem sabido defender a democracia e a liberdade de consciência de cada pessoa humana.
Por tudo isso, parece-me injusto que se qualifique Joseph Ratzinger como um “conservador tacanho”. É verdade que ele rejeitou o espírito do Maio de 68 no sentido de movimento revolucionário, essencialmente de ruptura. Por isso, ao conciliar a dimensão autêntica e individual da fé, como um encontro pessoal, com uma dimensão mais comunitária, Ratzinger assumiu a importância das instituições. Sem o seu caráter iminentemente institucional, a Igreja corre o risco de se dissolver no mundo, perdendo assim o seu carisma e a sua capacidade de se tornar num lugar de encontro com Deus. Além disso, sem fidelidade à tradição, facilmente se impõe a ideologia do presentismo que nos cristaliza no imediato impedindo, assim, a construção de um futuro com sentido.
Então, para além de genuinidade na vivência da fé, autenticidade também significa regressar às origens da tradição cristã. Tal como o Concílio não se reduz apenas ao aggiornamento por ser também ressourcement, a fé também não pode ser apenas um sentimentalismo pessoal dado que se funda numa doutrina transmitida desde os Apóstolos. Essa é, aliás, a interpretação do Concílio que nos é dada a partir da “hermenêutica da reforma” na “continuidade”, que Bento XVI opôs à “hermenêutica da descontinuidade e da ruptura” (Discurso aos cardeais na apresentação dos votos de Natal, 22 de dezembro de 2005).
A rejeição da ruptura caracteriza a posição de Ratzinger tanto diante do Maio de 68 como perante os exageros de certas teologias pós-conciliares, sejam elas tradicionalistas ou excessivamente progressistas. É interessante notar que tanto os integristas como os liberais mais radicais leem o Concílio a partir de uma hermenêutica de ruptura; leitura esta que Ratzinger procura evitar. Trata-se, no fundo, de procurar um equilíbrio entre tradição e novidade, no qual é possível gerar um saudável progresso.
Ao procurar ser fiel à origem da tradição e ao rejeitar a ruptura das novidades do tempo hodierno, Ratzinger adequa-se, talvez, a um certo conservadorismo. Mas será possível progredir a partir de um começo absoluto em total ruptura com tudo o que vem da história passada? De fato, Ratzinger considera que as revoluções radicais conduzem as sociedades ao niilismo que caracterizou certas correntes e atitudes do Maio de 68.
A alternativa não é cristalizar-se numa concepção estática de tradição, mas adoptar a dinâmica da reforma permanente; uma reforma que se faz sempre regressando às origens da tradição da qual fazemos parte e a partir da herança recebida. Parece-me, por isso, que o maniqueísmo implícito nos rótulos de “conservador” e “progressista” não nos ajuda a avaliar Ratzinger na sua relação com o mundo do Maio de 68.
Assumindo-se um grande admirador do Papa inaugurador do Concílio, Bento XVI afirma que “o entusiasmo, despertado por João XXIII, estava lá. O seu caráter completamente alternativo fascinou-me desde o princípio. Agradava-me ele ser tão direto, tão simples, tão humano” (Conversas finais, p. 153).
Hoje, este estilo “alternativo”, que tanto fascinou o jovem teólogo Ratzinger, facilmente nos recorda os gestos que caracterizam o atual pontificado de Francisco. Esta Igreja, de líderes simples próximos das pessoas e marcada pelos seus gestos carismáticos, vai ao encontro da autenticidade que também pairava no espírito do Maio de 68.
Mais do que conservadorismo, a reação negativa de Ratzinger em relação a este evento revela prudência. Para um homem verdadeiramente sábio, a Igreja não pode cristalizar-se em práticas e normas imutáveis, nem pode simplesmente seguir as modas do tempo que hoje sopram numa determinada direção. Se o primeiro dos caminhos faria da Igreja uma ‘‘sociedade à parte’’ e irrelevante na história dos homens e das mulheres hodiernos, ao adoptar o segundo a Igreja perder-se-ia numa espécie de fusão com o resto do mundo. Ao evitar uma via meramente conservadora ou puramente progressista, Ratzinger nunca foi politicamente correto.
Tal como já sucedera com João XXIII, o Papa que convocou o Concílio, Bento XVI começou por ser tido como um “papa da continuidade”. À imagem do “Papa bom”, Ratzinger surpreendeu com o gesto da sua renúncia e com o título que se auto-atribuiu de “Papa emérito”.
Se hoje, sobretudo para a minha geração, muitos dos gestos revolucionários do Maio de 68 nos parecem exagerados e incapazes de mudarem substancial e positivamente as sociedades futuras, a renúncia de Bento XVI inaugurou uma mudança na Igreja da qual talvez muitos ainda não se tenham apercebido. É belo ver um intelectual como Ratzinger, alguém que passou grande parte da sua vida em bibliotecas a ler e a escrever, marcar indelevelmente a história da Igreja com um gesto; o gesto com que conclui o seu pontificado; um gesto realmente capaz de fazer avançar a Igreja e a história através de uma maneira nova, ainda que sem ruptura, de nos relacionarmos aos líderes das instituições que amamos.